49 Congreso Internacional del Americanistas (ICA) |
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Quito Ecuador7-11 julio 1997 |
Maria Cristina Bohn Martins
CABEÇALHO
TÍTULO DO SIMPÓSIO: Las misiones jesuiticas en la América Latina colonial, siglos XVI al XVIII.
TÍTULO DA PONÊNCIA:
Tempo, festa e espaço na Redução dos Guaranis
AUTOR: Profª Ms. Maria Cristina Bohn Martins.
RESUMO
As reflexões apresentadas neste texto tem como alvo imediato os chamados Trinta Povos onde foram aldeados, entre 1609 e 1767, parcialidades indígenas da nação guarani, a mais numerosa daquelas que então habitavam a Província do Paraguai.
Elas fazem parte de um trabalho mais amplo que propõe-se a investigar o processo de integração dos guarani à sociedade colonial em sua vertente missioneira.
Perguntamo-nos, neste contexto, como viram os guarani sua própria redução? Como vieram eles a assumir a condição de índios das missões? Por onde atuou a conquista espiritual no sentido de transformar as pautas da cultura tradicional?
Interessa-nos refletir em torno da questão da aculturação dos guaranis reduzidos, discutindo como esta sociedade reorganiza elementos essenciais da sua cultura, mesmo sem confrontar-se diretamente com o mundo colonial.
Reconhecendo a abrangência de uma proposta que pretende investigar este fenômeno de transculturação operado no seio da sociedade guarani ao longo do período reducional, houvemos por bem delimitar três categorias de análise como aquelas de interesse específico. Sendo assim, é através das categorias de tempo , festa e espaço que conduzimos estas reflexões.
Tempo, Festa e Espaço na Redução dos Guarani
Maria Cristina Bohn Martins *
"...chamamos de reduções aos "povos" ou povoados de índios que, vivendo à sua antiga usança em selvas, serras e vales, junto a arroios escondidos, em três, quatro ou seis casas apenas, separados uns dos outros em questão de léguas, duas, três ou mais, "reduziu-os" a diligência dos padres a povoações não pequenas e à vida política e humana, beneficiando algodão com que se vistam, porque em geral viviam na desnudez, nem ainda cobrindo o que a natureza ocultou". (P. Antônio Ruiz de Montoya, 1634).
As reflexões apresentadas neste texto são parte de uma pesquisa que tem como objetivo final a elaboração de uma Tese de Doutoramento cujo Projeto vimos desenvolvendo junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Seu objeto imediato são os chamados "Trinta Povos das Missões" onde foram aldeados entre 1609 e 1767, sob a orientação dos jesuítas, parcialidades indígenas da nação guarani, a mais numerosa daquelas que então habitavam a Província do Paraguai.
O estudo destas "reduções de índios" tem sido a temática que desenvolvemos dentro da Linha de Pesquisa denominada "Populaçòes Indígenas e Missões Religiosas na Iberoamérica" no Programa de Pós Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), sendo que, neste Projeto em particular, estamos interessados em investigar o processo de integração dos guarani à sociedade colonial em sua vertente "missioneira". Isto na tentativa de definir as possibilidades de transformação interna de determinadas pautas culturais dentro de limites que permitiram a manutenção de uma identidade cultural muito específica destes índios, mesmo que sob a forma de um novo "modo de ser" ou, como dizem os próprios guaranis, "teko piahu" .
A história destas reduções estabelecidas na antiga Província do Paraguai pode ser lida como a história do sucesso da implantação de uma nova ordem cultural que todo projeto colonial tem como ideologia subjacente.
De acordo com Bartolomeu Meliá:
"De una manera o otra hay en el proyecto colonial una voluntad decidida de substituir y suplantar un pueblo por otro pueblo - o nueva masa de hombres" .(2)
Cabe esclarecer que nosso pressuposto de cultura como categoria de análise insere-se numa perspectiva que entende-a enquanto processo social constitutivo de um modo de vida, um campo em que a sociedade inteira participa, elaborando seus símbolos e signos, suas práticas e valores.
A atividade missionária tinha então no Paraguai e em todo território colonial, um sentido "totalizante", de politizar e "civilizar", um projeto que, como definiu o Padre Montoya, um dos mais ativos missionários da Companhia de Jesus no Paraguai, tocava de cheio a estrutura tribal guarani.
Neste sentido, nossa proposta do trabalho desenvolvendo reside, justamente, em analisar os mecanismos por onde atuou o sistema colonial no sentido de arrefecer a resistência de um grupo que, confrontado pelas armas, procurava afirmar sua irredutibilidade.
Com efeito, nos finais do século XVI a conquista guarani estava num impasse. O rompimento da " aliança " baseada no parentesco ( cuñadazgo ) que sustentara a presença espanhola na região, impunha um novo tratamento à questão das relações dos indígenas com a sociedade colonial.
O trabalho de evangelização sistematizado nas "reduções", conduzido no Paraguai desde finais do século XVI pelos franciscanos e pelos jesuítas desde princípios do XVII, pretendeu ser um resposta a esta situação. Tratava-se agora da " conquista espiritual ", e ela atuava atacando a cultura guarani em sua essência, trazendo uma nova morfologia social, modificando o sistema de parentesco, perturbando a ecologia tradicional, dispondo do espaço segundo intenções específicas e negando as formas religiosas tribais.
Desta forma, se a redução inseriu-se dentro de um projeto político de integração do índio ao sistema colonial, já a partir de 1580 com o trabalho dos franciscanos, operou-se, de fato, um abrandamento dos conflitos que opunham na região, os guarani aos colonos espanhóis.(3)
Os guarani porém, e podemos percebê-lo através do pronunciamento de alguns de seus líderes, manifestam seu receio e mesmo sua oposição para com as drásticas transformações que seu " ñande reko " (modo de ser) sofreria com as novidades. Seus discursos não obstante, os quais apelam contra a nova ordem que os impede de viver segundo os costumes de seus antepassados, não serão capazes de obstaculizar a poderosa atração representada por um espaço alternativo ao serviço pessoal nas encomiendas . E esta será justamente a proposta que lhes será acenada a partir das aldeias dos missonários da Companhia de Jesus.
A sociedade guarani, tal como a conheceram e registraram os conquistadores e colonos espanhóis, "forjou-se" em suas características principais ao longo de um processo migratório iniciado em princípios da era cristã e que conduziu estes índios da região amazônica em direção ao sul, à bacia platina, onde encontram-se estabelecidos no século XV.(4)
Por volta do século VII a formação de um "modo de ser" guarani pode ser dada como plasmada em seus aspectos fundamentais, alcançando o que pode ser definido como seu "período clássico" em torno do IXº século d.C.
As evidências arqueológicas (especialmente a localização de antigas aldeias e a descoberta de cerâmica) apontam para o fato de que em tempos históricos a migração permaneceu sendo uma das características fundamentais deste povo que se movimenta em uma ampla geografia, com migrações eventuais a regiões distantes e deslocamentos periódicos dentro de uma mesma região.
A migração guarani está provavelmente ligada a motivos de ordem social, como o incremento demográfico e as disputas entre lideranças por exemplo, e também religiosos, na busca da " terra sem mal ", mas também deve-se considerar que esta busca podia derivar ainda de fenômenos naturais e de desgaste ecológico.
A necessidade de buscar uma "terra boa", garantidora de uma agricultura que proporcionava a "divina abundância" da qual falou o mercenário alemão Ulrico Schmidl que conheceu os guarani nos momentos iniciais da expansão européia na região,(5) fazia deles "colonos dinâmicos.(6)
E de fato, eles ocupam historicamente terras de um horizonte ecológico bem definido, cujos limites dificilmente são rompidos; bosques e selvas típicas da região subtropical, em áreas de clima úmido, com temperatura média entre 18 e 22ºC, preferencialmente às margens dos rios e lagoas, em locais que não ultrapassam os 400m sobre o nível do mar.(7)
"Se puede incluso hablar de una tierra guarani" que procuraban conscientemente, a la que se adaptaban, pero que ellos mismos trabajaban para que sustentara su identidad cultural".(8)
Esta seria a "terra boa", capaz de sustentar o trabalho agrícola e a instalação da aldeia, um espaço existencial que os guarani definem como " tekoha ", aquele em que dão-se as condições que possibilitem o seu " tekó" , que traduzimos como " modo de ser ". É o lugar, como diziam eles próprios, " onde vivemos segundo nossos costumes ".
" O tekohá como toda sua materialidade terrena, é sobretudo uma inter-relação de espaços culturais, econômicos, sociais, religiosos e políticos ".(9)
A descrição do jesuíta Marcial de Lorenzana de 1620 dá conta deste " dinamismo guarani ": " Es gente labradora, siempre sienbram en montes y cada tres años mudan chacra ".(10)
É da articulação entre o mato para caça e coleta, uma área de terras férteis para lavoura, e um espaço habitável onde será erguida a casa comunal com seu grande pátio aberto, que emerge aquilo que os guarani entendem como seu espaço privilegiado de vivência.
E a "vida boa" só poderá ser garantida a partir deste jogo de espaços (mato-roça-aldeia) que proporcionasse não apenas o desenvolvimento das atividades econômicas indispensáveis, mas também de uma vida social plena, firmada através das festas.
"Los bienes producidos en abundancia, gracias al trabajo en comun - potyrõ - eran distribuidos a los convidados que los aceptaban conforme a las reglas de reciprocidad - jopói - que conferían prestigio y renombre al donador, mientras el consumo se hacia entre cantos y danzas que podían durar días y semanas".(11)
O espaço de vivência dos guarani é portanto, aquele que fundamenta a economia de reciprocidade e que se manifesta de modo pleno nas festas: é boa a terra que, nas ocasiões propícias, permite boas e concorridas festas.
Elas estão também ligadas de forma íntima à noção de trabalho coletivo - potyrõ - sendo, neste aspecto, a materialização de um ideal de vida social: a dança ritual e seus cantos simbolizam aí o modo como a sociedade se une, trabalha e alegra.
O potyrõ " economicamente " é trabalho comum e " socialmente " é pepy , convite. Forma privilegiada de trabalho mas, também, manifestação de vida social, tal como foi registrado constantemente nas crônicas jesuíticas.
Em uma ânua de 1611, O Provincial Diego Torres Bollo observa ainda a estreita ligação entre as " festas de chicha " e os trabalhos comunitários: "... y todas las veces que han de ir a caza, o a otra cosa de comunidad, hazen borrachera comun, que dura dos o tres dias ".(12)
Diante do farto consumo de comida e bebida, as festas tribais foram vistas pelos religiosos como a exteriorização de um comportamento imoral e de práticas condenáveis:
"En viniendo de alguna caza o pesca y tiempo de labrar sus chacras todos se juntaban a beber y enborracharse y en acabando el vino de una casa pasan a otra con mucha plumage, muy pintados y embijados , con una fiereça que parecen demonios (...)".(13)
Assim os regostros do caráter religioso e de sociabilidade destes acontecimentos em que superam-se os limites do parentesco para generalizar-se o dom por toda a sociedade.
No entanto, se as antigas " cauinagens " deveriam ser combatidas por irreconciliáveis quer eram com o ideal de vida civilizada e cristã, as festas seriam adotadas, inclusive como expediente pedagógico.
Grande parte do sucesso que tiveram os jesuítas em apresentar ao guarani os " pueblos " como um espaço de vivência possível, esteve ligado à habilidade com que os padres reificaram neles traços da vivência dos índios.
Por certo, se em 1753, na defesa dos povoados ameaçados pelas reformas ilustradas do século XVIII, os índios aldeados falam das reduções como a "sua terra", é porque lhes foi possível identificá-las como uma "terra boa que lhes permitisse viver com guaranis.
As festas religiosas, momento importante do calendário das Reduções, parecem querer retraduzir os festivais tribais históricos, certo que naqueles aspectos que não afrontassem o ideal civilizador e evangelizador proposto pela vida em redução:
Esta em vigor la antigua costumbre de juntar-se los domingos y fiestas mayores para la instrucción del catecismo y para oír el sermón que les predica su Padre(...). Celebrarón el día de San Ignacio con gran solemnidad. Mencionando sino del paso los juegos populares, ejercicios a cabalo, música, arcos triunfales(...).(14)
Os missionários avaliavam bem a importância assumida pelas festas entre seus catecúmenos, entendendo que todas esta (...) sirven para honesto entretenimiento en sus pueblos, para que no les venca tentación de huir-se y para que por los ojos y con (...) deleite del alma y cuerpo les entren las cosas de Dios.(15)
Como antes, agora também elas são revestidas de solenidade e preparadas cuidadosamente.
Y assi procuran los maestros quando su probreza les permite celebrar las festividades de las Pascuas y outras con toda solemnidad, con danzas, musicas y regocijo publico al modo que usamos (...). Y para festas de los Patronos y titulares de los pueblos se conbidan los maestros unos a otros de los pueblos y reducciones vecinas, llevando consigo sus musicas y danzas(...).(16)
Pode-se perceber que mesmo os convites, caros por conferirem honraria na cultura tradicional do grupo, continuam sendo valorizados. A generalização pelo dom aparece aí, identificada como caridade cristã, num caso típico de comportamento tradicional valorizado.
Os missionários mostraram ter percebido que a manutenção das formas tradicionais de trabalho coletivo e festivo eram condição necessária para a aceitação pelo grupo das tarefas implicadas no sustento da vida dos aldeamentos.
A medio dia hay varios convites en las casa de los más principales(...). Dales el padre por la mañana una o dos vacas para convite. Previnen ellos de sus sementeras cantidad de batatas y de maiz, y tanbién, aves caseras (...). Y ponen en el suelo unos muy grandes calabazos de chicha o de vino del maiz, (...) y alredor de ellos varios barreñones y cestos, para que se llenen (...) de miel y de frutas secas como molecotones, (...). Los barreños y cestos se los llena el mayordomo por ordem del Padre con abundancia, que para regalar a sus hijos en estas y otras fiestas, y convites de entre año, lo buscan los curas, aunque sea con mucho trabajo, sino lo hay de cosecha en el pueblo. Suelense juntar a veces en estas fiestas 30 y 40 mesas de otros tantos convites, que ocupan todo patio.(17)
Como as bebedeiras tradicionais não poderiam ter lugar na vida em redução, o vinho nunca lo hacen fuerte y así, por más que beban, nunca embriaga.(18)
Ao lado dos convites e da farta distribuição de comida e bebida, as festas na Missão preservam a importância dos cantos e danças, emprestando-lhes também um caráter religioso:
(...) conducen éstas a su gobierno eclesiástico, pues solo se usan el lo perteneciente al culto divino. No se usa entre ellos jamás danza ni baile ningueno en sus casas o en particulares como se usan en Europa entre mozos y mozas.(19)
Certamente que, em um novo contexto, as festas celebram datas e motivos cristãos, embora possamos reconhecer nelas aspectos que seguem repousando nos velhos modelos aldeões: a importância conferida aos convites, o consumo desregrado de alimentos e bebida, as danças e cantos.
O expediente de recorrer às festas e solenidades como recurso de atração e envolvimento dos indígenas foi fartamente utilizado pelos jesuítas em seu trabalho catequético:
(...) y juntaron los Pes. todo el pueblo y con el fueron a dar principio y lebantar una hermosa cruz que ya estaba aparejada. Hallaronse alli otros dos Pes. de las reducciones cercanas que avian y do celebrar la fiesta con sua musica y chirimias, las quales començaron a tocar al lebantar de la cruz y luego todos los niños del pueblo juntos começaron a entornar una cancionita en su lengua(...) despues desto explicó en breve un Pe. las causas porque ponian cruz en los pueblos (...) y logo detras dellos todo el pueblo con mucha griteria y algazarra en señal de regozijo (...) se les dió una comida muy buena de limosna (...). (20)
Parece estar tudo aí: a algazarra, a música, as danças, o transbordamento das emoções intensas, as bebedeiras e também o trabalho comunitário em que os bens produzidos coletivamente redistribuem-se na comunidade.
No entanto, a festa da redução apresenta elementos que fazem dela outra festa , uma festa reduzida , elementos estes presentes na idéia de reunião a fim de sujeição, fixação e educação .
Submetidas a um novo tempo e ritmo, oficializadas, numa teatralidade que diríamos barroca pelo seu sentido didático, a festa reduzida comporta um novo sentido, mas que abrigou ainda formas tradicionais que podem fazer-nos perceber nelas a festa guarani.
A humanização destes índios implicava também a sua participação num novo padrão sócio-econômico que dependia de uma crescente racionalização das tarefas produtivas, o que passava pela necessidade de uma acomodação aos padrões modernos de trabalho.
Na Europa moderna a valorização cada vez mais acentuada do trabalho regular processa-se de forma paralela à condenação do ócio. Tal consciência do dia de trabalho é realçada pelos mecanismo que medem, cada vez com maior precisão, a passagem do tempo.
O discurso dos jesuítas revela que sua obra catequética objetivava assim, acomodar os guarani a esta nova dimensão do tempo e do trabalho.
A vida em redução, inclusive, procurou rodear o labor produtivo de uma aura modeladora da personalidade.
No caso das reduções jesuíticas esta interferência consistiu na passagem de um `todo tempo livre na selva a um `tempo para tudo marcado pelo relógio.(21)
O ritmo de trabalho tradicional marcado por um tempo próprio e não orientado pelo sentido de acumulação, teria que ser reconvertido por novos padrões:
En cada pueblo hay uno o dos reloges de rueda, unos hechos por los indios, otros comprados en Buenos Aires, por los cuales nos governamos en la distribucción religiosa. (22)
A redução dos guarani a uma nova temporalidade era tão importante para o projeto missionário, que chegou-se a escrever um livro sobre o perfeito uso do tempo: Ara Poru Aguiyey Hába.
Nele:
Enseña el autor a los indios, punto por punto, como pasar el día íntegro santa y dignamente, ya sea trabajando en casa, cultivando el campo, ora camino a la Iglesia o asistiendo a la Santa Misa, ora recitando el Santo Rosario o Haciendo cualquier otra cosa.(23)
Assim cada povoado deveria ter aomenos um relógio pelo qual o cotidiano diário era dividido em momentos dedicados ao culto e outros às atividades produtivas, introduzindo os guarani em no universo padronizado da precisão.
Os desvios nesta vivência padronizada do tempo eram reprimidos por um sempre presente aparato simbólico:
No libro tanbién un gentil que trabajava en un dia de fiesta porque le mordió una bivora y todos los indios lo atribueron que era castigo de Dios porque se ocupava cuando aia de estar en la Yglesia (...) .(24)
Os limites encontrados pela tarefa a que se propuseram os missionários podem no entanto ser discutidos a partir da evidência de que os guarani dificilmente se adaptaram a esta nova temporalidade, evidência encontrável fartamente nos relatos jesuíticos em que são constantes as queixas contra a preguiça, a indolência e imprevidência dos índios.
Esta redução a um tempo novo , complementava a redução a um espaço novo , objetivo explícito do projeto missionário: aldear para civilizar e evangelizar.
Se os primeiros povoados erguidos em princípios de século XVI marcavam pela simplicidade, com construções de esteira e couro, ao serem expulsos os jesuítas em 1767, as aldeias haviam adquirido uma nova conformação: construções de pedra, amplas praças e imponentes igrejas barrocas.
Ao se concretizar, em fins do século XVII, um novo modelo urbano configurado sobre a base pragmática da experiência jesuítica, é possível constatar a confluência dos modelos teóricos de Vitrúvio, São Tomás de Aquino e as Ordenanzas de Población (1573) no tocante à seleção das paragens e localizações e às idéias estruturais de sacralização dos espaços urbanos presentes nas reduções. (25)
Segundo Ramón Gutierrez, as missões jesuíticas do Paraguai constituem o único sistema de povoados que adota planificadamente uma tipologia diferenciada daquela definida pelas Ordenanzas de 1573, já que combinam o ordenamento legal às experiências recolhidas da sua atividade missionária o que os levava a contemplar as formas tradicionais de assentamento indígena.
Ao lado do traçado regular de ruas amplas, insere-se uma vasta praça central que permite o estender-se do olhar. Ela recria o espaço da vida comunitária representado anteriormente pelo pátio da aldeia. A praça vem a ser o elemento ordenador do novo espaço, e onde pode firmar-se um princípio básico do barroco contra-reformista: o da participação.
Os registros dos missionários jesuítas sobre os jogos e danças, sobre a ritualização das diversas atividades cotidianas testemunham o valor simbólico e efetivo assumido pela praça na vida dos povoados. Nelas os índios recriam um espaço público que lhes era familiar.
Ao longo dos séculos XVII e XVIII, a redução passou a ser para os guarani, a terra boa , lugar onde foi possível plasmar um novo tekohá , algo que a sociedade colonial hispana, via mestiçagem e trabalho compulsório não permitia.
Os índios tem plena consciência de que as aldeias são fruto do seu trabalho, e o expressam, por exemplo, na sua defesa diante da ameaça dos acertos diplomáticos entre as Coroas portuguesa e espanhola para a confecção do Tratado de Madrid de 1750, o qual transladaria parte dos povoados para território de Portugal.
Nosso Santo Rei certamente não sabe o que é o nosso povoado nem o muito que nos custou. Olhai Senhor, mais de cem anos trabalhamos nós, nossos pais e nossos avós, para edificá-los.(26)
Porventura quereis tratarnos como animais (...) afastando-nos da terra em que Deus nos criou?.(27)
Os sentimentos assim expressos manifestam uma profunda mudança quanto à percepção dos guarani quanto as reduções, visto que, quando da entrada dos primeiros padres, eles consideravam-nas como um dissimulado cativeiro.
É um modo de vida que está sendo defendido, plenamente assumido, a ponto de os guarani não temerem de ir a guerra para defendê-lo.
Este novo modo de ser estrutura-se e exprime-se agora através da vida na redução, que é, antes de uma redução jesuítica, uma redução de índios guaranis.
Desta forma, a Guerra Guaranítica (1753-1756) oferece-nos elementos importantes para a análise do resultado do processo de transculturação operada no seio da sociedade guarani. A resistência em aceitar as disposições do Tratado põe de manifesto o grau de interiorização da nova realidade social, cultural e religiosa, e especifica um novo modo-de-ser.
La tierra en la que ahora están, es ante todo la tierra en donde Dios nos puso, la tierra que Dios nos dio, donde Dios nos crió, donde Dios nos reunió.(28)
Costuma-se dizer que a redução proporcionou a sobrevivência dos guarani ao longo do período colonial ao tê-lo livrado do serviço pessoal na encomienda . Cremos que, porém, mais do que isto, os guarani viveram a redução , onde puderam transformar conflito em convivência.
A murta parceria ter-se deixando moldar sem resistência, numa abertura ao outro que foi, no caso dos Tupinambá, alvo da reflexão de Viveiros de Castro.(29)
No entanto, ainda segundo este autor, a murta possui razões que o mármore desconhece , entre elas, talvez, a de perceber ao outro não como um espelho, mas como um destino.
Consideramos oportuna esta proposta no sentido de que ela nos remete a uma reflexão sobre os próprios conceitos correntes de cultura, imprimindo-lhe um sentido que vai ao encontro da idéia de circularidade cultural.
Para nós ainda, abre a possibilidade de discutirmos e investigarmos os processos de integração, resistência e transformação cultural resultantes desta relação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 - Profª da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, RS, Brasil.
2 - MELIÁ , Bartomeu. El Guarani. Conquistado y Reducido. Ensayos de Etnohistória . Asunción: Centro de Estudios Antropológicos de la Universidad Nuestra Señora de la Asunción. 1987, p. 160.
3 - Ver NECKER , Louis. Indios guaraníes y chamanes franciscanos. Las primeras reducciones del Paraguay . (1580-1800). Asunción: Biblioteca Paraguaya de Antropología, 1980.
4 - Conforme BROCHADO , José Proença. An ecological model of the spread of pottery and agriculture in to eastern south American. Tesis (Doctor of Philosophy at Anthropology). College of the University of Illinois at Urbana -Champaign, 1984.
5 - SCMIDL , Ulrico. Relación del viaje al Río de la Plata . In: FEDERMANN, N. e SCHMIDL, U. Alemanes en América . Edición de Lorenzo E. López. Madrid: Historia 16, 1985. (Crónicas de América 15).
6 - MELIÁ , Bartomeu . La tierra sin mal de los Guaraní. Economia y Profecia . Suplemento Antropologico . Asunción, v. XXII, n.2, p. 81-98, dec. 1987.
7 - idem, ibidem.
8 - MELIÁ , Bartomeu . El Guarani. Experiência Religiosa. Asunción: Biblioteca Paraguaya de Antropologia, 1991, p. 04.
9 - MELIÁ , Bartomeu. O rosto indio de Deus . In: MARZAL, M.(org.) O rosto índio de Deus . Petrópolis: Vozes, 1989, p. 293-349, p. 336.
10 - MCAI , p. 336.
11 - MELIÁ , Bartomeu . op. cit, 1991, p. 08.
12 - idem, ibidem.
13 - idem, ibidem.
14 - MCAI , p. 349.
15 - Cit. por FURLONG. Guillermo. Misiones y sus pueblos de Guaraníes . Buenos Aires: Imprenta Balmes, 1962, P. 170.
16 - MCAIII , p. 35.
17 - Cit. por FURLONG. Guillermo. Misiones y sus pueblos de Guaraníes . Buenos Aires: Imprenta Balmes, 1962, P. 170.
18 - idem, ibidem.
19 - idem, ibidem.
20 - MCAIII, p. 67.
21 - CHAMORRO ARGuELLO, Candida Graciela. Kurusu Ñe engatu. Ou palavras que a história não poderia esquecer. Dissertação de Mestrado . UNISINOS, 1993.
22 - Cit. por FURLONG. Guillermo. Misiones y sus pueblos de Guaraníes . Buenos Aires: Imprenta Balmes, 1962, P. 134.
23 - Cit. por CHAMORRO ARGuELLO, Candida Graciela. op. cit., p. 134.
24 - MCAI , p. 225.
25 - GUTIERREZ , Ramón. As missões jesuíticas dos guaranis . Rio de Janeiro: UNESCO, 1987, p. 24.
26 - Cit por MELIÁ , Bartomeu. O guarani reduzido . In: HOORNAET, Eduardo (org.) Das reduções latino-americanas às lutas indígenas atuais . IX Simpósio Latino-Americano da CEHILA . São Paulo: Ed. Paulinas, 1992, p. 228-241, p. 237.
27 - idem, p. 238.
28 - MELIÁ , Bartomeu. op. cit., 1987, p. 183.
29 - VIVEIROS DE CASTRO , Eduardo Batalha. O mármore e a murta. Sobre a incostância da alma selvagem . In: Revista de Antropologia . São Paulo: USP, v. 35, p. 21-74, 1992.
30 - idem, ibidem, p. 26.
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VIVEIROS DE CASTRO , Eduardo Batalha. O mármore e a murta. Sobre a incostância da alma selvagem . In: Revista de Antropologia . São Paulo: USP, v. 35, p. 21-74, 1992.
ABSTRACT
* Maria Cristina Bohn Martins
As reflexões apresentadas neste texto são parte de uma pesquisa que tem como objetivo final a elaboração de uma Tese de Doutoramento cujo objeto imediato são os chamados Trinta Povos das Missões, onde foram aldeados, sob a orientação dos jesuítas, parcialidades indígenas da nação guarani. Interessa-nos em particular investigar o processo de integração dos guarani à sociedade colonial na sua vertente missioneira e, para este estudo, privilegiamos a análise de três categorias de análise, a saber, tempo, festa e espaço.
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