49 Congreso Internacional del Americanistas (ICA) |
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Quito Ecuador7-11 julio 1997 |
Vera Lúcia Silveira y Botta Ferrante.
SIMPÓSIO: Desenvolvimiento rural sustentado en la agricultura familiar (GEO 01)
TITULO: Estratégias familiares: reverso possível ao modelo estatal de assentamento?
AUTORA: Vera Lúcia Silveira Botta Ferrante.
Estratégias Familiares: reverso possível ao modelo estatal de assentamento?
Proponho-me a discutir o tema a partir da análise de experiências concretas de assentamentos rurais, confrontando a política estatal traçada para tais projetos e o que vem sendo efetivamente a constituição desse novo modo de vida que tem desafiado previsibilidades e estilhaçado categorias teóricas. Tomo como material analítico assentamentos formados em sua maioria por ex-bóias-frias, localizados no decantado paraíso da modernização da agricultura paulista. Proponho-me a mostrar, passo a passo, que, no enfrentamento do Estado da questão agrária, na produção do discurso sobre os que lutam por terra, na teia de relações constitutivas dos assentamentos, na difícil transição de bóias-frias a assentados, nas formas de estranhamento presentes nesse novo modo de vida, nas discriminações sofridas pelas mulheres, manifestam-se dimensões diferenciadas de violência, explícitas, programadas, simbólicas.
Expressões de violência programada, por parte do Estado se contrapõem à estratégias familiares que têm criado condições para se viver melhor na terra. A cultura da dádiva continua alimentando a atuação do poder público local face aos assentamentos. Os assentados com frequência se submetem à despolitização atribuida à condição de beneficiários, ainda que existam exceções. Procurando estabelecer um equilíbrio entre duas lógicas que se fazem presentes na organização do projetos de assentamentos, uma presidida pelo imperativo da integração na racionalidade capitalista, outra constituída pelos assentados na orientação de suas ações, o Estado busca orquestrar uma relação de clientelismo que parece presidir a interação entre os trabalhadores assentados e os demais agentes sociais envolvidos nas experiências de assentamentos. Tal empreendimento não se dá sem tensões e/ou expressões de recusa ao modelo estatal. Há estratégias familiares que se contrapõem aos padrões de sociabilidade e de organização política que deveriam idealmente reger os projetos de assentamentos. Contribuem, através de formas de auto-organização, muitas vezes recuperando dimensões de uma sociabilidade própria de comunidades rurais de outros tempos, para quebrar a concepção presente na idealização estatal de que o assentado é um desenraizado, que deveria ser modelado segundo uma determinada lógica atribuida ao futuro agricultor. Há expressões de violência de gênero que atingem diretamente a estrutura familiar, a demonstrar que o assentamento não significa necessariamente um espaço de iguais. O fato das mulheres serem excluídas da titulação, ser seu trabalho no lote produtivo ou como assalariadas encarado como ajuda, sem dar-lhes condições de interferir nas decisões a serem tomadas no assentamento, acrescido de atos opressivos dos maridos, pode descaracterizar as estratégias familiares.
Há outras perspectivas a despontar no horizonte. Estratégias familiares podem não estar em rota de colisão com os princípios de integração e racionalidade capitalista, o que não significa a reprodução de uma relação de subordinação. Estratégias familiares podem ter expressão política e se fizeram representar em uma experiência piloto de orçamento participativo coordenada pelo Instituto de Terras do Estado de São Paulo. Na expressão de suas reivindicações, os assentados, em grupos, não necessariamente organizados por relações de parentesco, demostraram perspectivas de inverter a situação de beneficiários apassivados que lhes é atribuida pelo ideário programado pelo Estado, construindo espaços para a politização conjunta de decisões que afetam seu presente e seu futuro.
Assentamentos, relações de poder, formas de violência, estratégias familiares não são pois situações pré-definidas. Delineiam-se perspectivas de construção de trajetórias sociais possíveis para os assentados ex-bóias-frias, homens e mulheres, para os agentes do Estado presentes nesse campo de lutas enquanto virtualidades, não definidas por critérios estruturais ou identidades naturalizadas.
INTRODUÇÃO: contextualizar é preciso
Proponho-me a discutir o tema a partir da análise de experiências concretas de assentamentos rurais, confrontando a política estatal traçada para tais projetos e o que vem sendo efetivamente a constituição desse novo modo de vida que tem desafiado previsibilidades e estilhaçado categorias teóricas. Parto do princípio de que os assentamentos, processos sociais complexos (Ferrante, 1995) 1 apresentam à análise, em seus diferentes momentos constitutivos, formas variadas de violência. Tomo como material analítico assentamentos formados em sua maioria, por ex-bóias-frias, localizados no decantado paraíso da modernização da agricultura paulista. Proponho-me a mostrar, passo a passo, que, no enfrentamento do Estado da questão agrária, na produção do discurso sobre os que lutam por terra, na teia de relações constitutivas dos assentamentos, nos atributos impostos aos bóias-frias de serem dóceis herdeiros da modernização, na naturalização desse processo, usualmente apresentado como um dado irreversível, desvinculado de uma discussão sobre o caráter violento da expropriação, na difícil transição de bóias-frias a assentados, nas formas de estranhamento presentes nesse novo modo de vida, manifestam-se dimensões diferenciadas de violência, explícitas, programadas, simbólicas, que têm, significativamente, a marca da dissimulação.
Parto do princípio analítico de que os assentamentos, entendidos como um processo pleno de rupturas, desconstruções, reconstruções oferecem condições privilegiadas para um outro olhar sobre o campo, não comprometido com modelos teóricos unívocos e unidades de análise naturalizadas.
Os assentamentos, como expressão de uma violência programada, representam uma política estatal definida pelo jogo das forças sociais, dos interesses e relações de poder das classes envolvidas.
Basta lembrar que a luta pela Reforma Agrária entra na Nova República como elemento contraditório das estratégias de conciliação, pactos e recomposições firmados em um momento em que exigia-se a reabilitação institucional do Estado e, ao mesmo tempo, impunha-se a adoção de estratégias que, sem ferir os limites fixados pelos proprietários rurais, pudessem ter um efeito anestésico sobre o crescimento acirrado das lutas dos trabalhadores rurais.
No plano político de enfrentamento entre as diversas classes, tanto no campo direto de disputa pela terra, como na arena de greves e negociações, os trabalhadores rurais avançavam, apesar das formas de violência, consubstanciadas em mortes, despejos, prisões que tiveram em 1985, uma marca histórica significativa em termos do recrudescimento dos movimentos e do circuito ampliado de repressão.
Sob a justificativa da necessária defesa à referida violência, os proprietários rurais assumiram posições autoritárias - dissimuladoras da violência política - cristalizadas na estratégia adotada pela União Democrática Ruralista e na utilização progressiva de milícias armadas, guardiãs de sua segurança e da defesa de sua propriedade.
Nesse processo, no campo de disputas, a relação entre trabalhadores rurais, forças anti-reformistas, Estado, é tensa e movediça. A política de assentamentos, proposta no âmbito de arranjos e rearranjos do Plano Nacional de Reforma Agrária, transformada em alternativa viável nesse contraditório jogo de forças, não pode ser unicamente interpretada como um elemento de controle acionado para fortalecer a reabilitação institucional do Estado e alimentar a bem "protegida" pressão dos proprietários rurais, mas deve ser discutida no processo instituinte de conflitos ligados à posse da terra. (Ferrante e Silva, 1988) .2
Nesse processo, o programa de assentamentos idealizado pelo Estado não corresponde com frequência ao que é posto em prática, nem implica no atendimento às necessidades de reprodução social dos assentados.
Em um jogo de expectativas e idealizações, no campo do Estado, à reestruturação formal do aparato institucional - prática que vem reeditar atos de uma cultura de desqualificação de organismos viciados como tentativa de justificar a falta de vontade política e as irrealizações no campo da reforma agrária (Neves,1995) 3 - segue-se uma complexa metodologia dirigida à construção dos assentados e à orientação dos padrões de sociabilidade e de organização política que deveriam reger os projetos de assentamentos.
Tais proposições buscam dissimular práticas autoritárias: ao Poder Público corresponde o direito de deslocar pessoas ou de fundar uma nova vida social iniciada da estaca zero. Os beneficiários, apagados como atores sociais, conformar-se-iam à objetivação plena da vontade política dos idealizadores da boa sociedade. (Neves, 1995). 4
Dez anos após a implantação dos projetos de assentamentos, a experiência de pesquisa nos tem revelado desencontros e ambiguidades nas ações dos agentes responsáveis pela direção técnica e por fazer cumprir metas concebidas a partir do modelo idealizado de reforma agrária. Por trás dos princípios anunciados no discurso competente - racionalidade, objetividade, participação, produtividade e eficácia - pudemos acompanhar a intervenção do Estado e sua falta de vontade política em construir efetivamente um projeto para os assentamentos, no qual os assentados fossem respeitados em seus direitos e reivindicações.
Expressões de violência programada, por parte do Estado se contrapõem à estratégias familiares que têm criado condições para se viver melhor na terra. A cultura da dádiva continua alimentando a atuação do poder público local face aos assentamentos. Os assentados com frequência se submetem à despolitização atribuida à condição de beneficiários, ainda que existam exceções. Procurando estabelecer um equilíbrio entre duas lógicas que se fazem presentes na organização do projetos de assentamentos, uma presidida pelo imperativo da integração na racionalidade capitalista, outra constituída pelos assentados na orientação de suas ações, o Estado busca orquestrar uma relação de clientelismo que parece presidir a interação entre os trabalhadores assentados e os demais agentes sociais envolvidos nas experiências de assentamentos.
Os Bóias-Frias na Contra-mão das Idealizações do Estado
A transformação possível dos bóias-frias, sua constituição social em proprietários ou candidatos a uma área de terra na condição de assentados não estaria nas previsões traçadas pelo Estado para o que deveriam ser os assentados, em termos de padrões esperados para maximizar a eficiência material nos programas de assentamentos
Os bóias-frias não teriam o perfil desejado para se habilitar econômica e políticamente para o acesso a um lote ou parcela de terra, nem reuniriam, em princípio, condições para viabilizar sua constituição como produtores agrícolas. Assentamentos formados por bóias-frias estariam, por tais atributos, destinados ao fracasso, pré-determinação que procuramos contrariar pelo acompanhamento de experiências concretas de inserção de bóias-frias no movimento de demanda por terra e na construção de alternativas de um novo modo de vida no assentamento. O desinteresse pela terra, atributo imposto como parte da cultura do ser bóia-fria, tem sido contrariado pela sua crescente inserção em cadastros ou movimentos dirigidos à ocupação de novas terras.
Os bóias-frias aparecem como protagonistas do movimento de luta pela terra a partir de 1984/1985, mostrando, na prática, que a proletarização não tem cartas marcadas, e que se faz necessário aceitar o desafio de rediscutir interpretações usualmente dadas ao processo de modernização/expropriação no campo.
Tendo como princípio analítico a contestação à referência aos bóias-frias como consequências naturais do processo de modernização da agricultura, discuto sua inserção no movimento de luta pela terra no interior de uma pesquisa que procurou, reconstruir suas formas de ser através de suas lutas 5
Submetidos à expropriação a partir da década de 50, que vai resultar em um intenso processo de proletarização, legalizada pelo Estatuto do Trabalhador Rural, cujas consequências traumáticas são dissimuladas, como se a condição de "herdeiros" desse aos bóias-frias garantia de emprego e de direitos, situação que efetivamente não se concretizou. Ao longo desses 40 anos, sob formas diferenciadas de expropriação acionadas por estratégias patronais - sob o acompanhamento vigilante do Estado - nutridos pela violência direta e/ou simbólica, os bóias-frias têm lutado por fazer valer seus direitos, ainda que essas lutas tenham, até 1980, pouca visibilidade.
Na condição de bóias-frias, cuja história compõe-se de muitos lugares percorridos, de relações vividas, de trajetórias forçadas, a violência impõe-se explicitamente em seu viver. Na reconstituição de sua trajetória, os bóias-frias relatam fatos e relações de uma memória coletiva progressivamente esfacelada nas fronteiras vigiadas de seu tempo de vida e de trabalho. Referem-se as suas condições de bóias-frias como uma mudança forçada, provocada, destino sobre o qual não poderiam interferir, nem imprimir outras vozes ou em distinto comando. Em suas falas, imbricam-se a referência ao passado - tempo de sossego e de fartura - a recusa ao atributo e às marcas negativas imprimidas à condição de bóia-fria e a representação do presente como palco de violência, privações, necessidades.
As formas de violência impostas aos bóias-frias no sistema de medição e ordenação do seu trabalho, nos embustes e disfarces detectados nas planilhas de produção, no descumprimento dos direitos trabalhistas, na insegurança do seu transporte, agravadas, se considerarmos relações de gênero e de origem - dada a discriminação sofrida pelas mulheres e migrantes - são referidas brevemente nesse texto como parâmetros para uma análise comparativa, face à perspectiva de sua transformação em assentados. Entram igualmente como elementos explicativos do significado que tem para os bóias-frias a demanda por terra, como contraponto possível ao viver sob estratégias de controle e dominação em seu espaço produtivo-reprodutivo orquestradas pelas práticas empresariais e pela violência institucionalizada dos aparelhos do Estado.
Não se pode, evidentemente dizer que toda categoria de bóias-frias tem um projeto de vida razoavelmente explicitado de lutar pela terra ou pela seleção em um assentamento. Entretanto, a terra não se põe como algo absolutamente estranho as suas necessidades. Vontade de defesa, necessidade de sobrevivência. Não existe homogeneidade no sentido que a terra passa a ocupar na visão do mundo dos assentados ex-bóias-frias. Para muitos, a decisão de adesão a um movimento de invasão da terra foi motivada pela fuga de estratégias patronais, punitivas, como a inclusão, nas listas negras, de nomes dos bóias-frias grevistas. Nesse caso, aparece a expectativa de viver, no assentamento, relações não construídas pela violência. Aparecem igualmente representações da terra como canal de acesso a um melhor tempo, identificado no plano da possibilidade de defender comida, de poder ter criação e da desnecessidade do dinheiro.
Aparece fortemente, no presente, a terra como alternativa ao desemprego estrutural crescente na região. A referência é dada por alguns trabalhadores a partir de uma situação já vivenciada, na qual as relações sociais são ditadas pela solidariedade, por um outro tempo social. Para os que nunca viveram ou tiveram uma relação de cultivo da terra, a forma como se referem a ela não implica uma idealização do passado, mas em um querer mudar face às privações sofridas. A disciplina imposta pelo relógio, a medida da produtividade, os roubos do pagamento, a discriminação por ser mulher, são ingredientes compulsoriamente inseridos no ciclo de vida dos bóias-frias. Entretanto são outras as marcas que parecem pesar mais, justamente as responsáveis pelo acúmulo de privações: apesar de falarem com saudosismo de um tempo em que o dinheiro não era necessário, é a falta dele, as incertezas do ganho no presente que nutrem suas expectativas de lutar pela terra.
A análise das experiências concretas de assentamentos mostra-nos que os significados embutidos no querer a terra podem ser violados no projeto traçado pelo Estado para os assentamentos. Há novas necessidades geradas na situação de assentamentos. As novas condições que dariam aos assentados, ex-bóias-frias elementos para encontrar na defesa da terra, a defesa da regularidade de seu trabalho, de sua moradia, a garantia de decidir sobre seu destino não podem ser pensadas em abstrato. Exigem, dentre outras, mudanças na correlação de forças dos assentamentos no conjunto da economia regional.
Esta possibilidade está posta na conjuntura do momento. Entretanto, elementos do abandono dos projetos de assentamentos por parte do Estado são claramente perceptíveis e a pressão dos complexos agroindustriais da região tem se mostrado no interior dos vários núcleos de assentamentos. Por outro lado, a dinâmica de modernização da agricultura, que prossegue a passos largos na região repõe a problemática da luta pela terra.
A intensificação da mecanização do corte da cana, crescente nos últimos anos, é um fator de instabilidade social na região. Enquanto informações oficiais apontam para um índice de quase 50% de mecanização dessa atividade no Estado de São Paulo, em alguns estabelecimentos da região, esse índice chega a 80%. O desemprego estrutural está presente e a diminuição de postos de trabalho não qualificado na agro regional não se reflete imediatamente no fluxo migratório que ocorre à chamada Califórnia Brasileira. Cresce o estigma e a discriminação do migrante nas cidades da região, mas a dinâmica da economia regional ainda atrai muitos trabalhadores, sazonais ou que não descartam a possibilidade de permanecer em São Paulo.
A luta pela terra, neste aspecto, se coloca como consequência do processo selvagem de descarte de mão-de-obra. Em 1992/93, 700 famílias voltam a ocupar o horto da FEPASA em Pradópolis e lá permanecem acampadas como um sinal vivo de que os conflitos pela terra não arrefeceram. Há no presente, terras ociosas na região, que poderiam estar sendo ocupadas por cerca de 800/1000 famílias, processo que não se apresenta como isento de tensões e contradições. Há no presente, cerca de 300 famílias cadastradas no Sindicato Assalariados Rurais de Araraquara, à espera de uma área de terra. Demonstrações de que o projeto regional de Reforma Agrária ganha fôlego. Os trabalhadores procuram ocupar os intertícios dos canaviais e laranjais, espaços vazios, geralmente em terras públicas sub-utilizadas, desafiando o monopólio da posse da terra na região.
O querer a terra: o discurso produzido no circuito da violência
Os bóias-frias inseridos na construção de uma nova ordem social, enfrentam, no processo, a denominação atribuída aos que lutam por terra: invasores desordeiros, baderneiros. Passar do atributo de dóceis herdeiros da modernização ao de invasores não lhes permite escapar das formas nem sempre sutis da violência simbólica. Impõe-se sobre os assentados ex-bóias-frias outro elemento de violência dissimulada: além de ameaçarem a comunidade, passam a ser "olhados" como únicos responsáveis pelo sucesso ou fracasso dos assentamentos. Estigmas utilizados para criar ideologicamente a imagem de sua incompatibilidade com o cultivo da terra, como se a condição de bóia-fria fosse absolutamente incompatível com o saber/querer a terra. Estigmas produzidos para reforçar a tese, a nosso ser equivocada, de que a violência no campo teria sujeitos pré-determinados.
Inserida em um processo complexo de legalidade/ilegalidade, a demanda pela terra parece ter, no presente, um perfil ímpar, aglutinando trabalhadores rurais e urbanos. Suas ligações com problemas de desemprego, de habitação, de revigoramento de estratégias patronais, de fortalecimento das organizações empresariais, lhe dão a configuração de uma alternativa buscada para o suprimento das necessidades de reprodução social.
Desafios a se impor ao pesquisador, a exigir o reconhecimento de que a relação expropriação/proletarização tem que ser pensada em movimento, a mostrar que a luta pela terra pode ter novas matizes. Não há como apagar a presença da terra no horizonte dos bóias-frias, o que não se pauta por um "dever ser" homogeneizador da categoria ou por qualquer comprometimento com afirmações de tendências niveladoras. Dos expropriados pela modernização, há sem dúvida, os que não querem voltar à terra, decisão indissociável de suas condições de existência social. No presente, o querer a terra pauta-se pelas necessidades decorrentes de uma situação de exclusão e de miséria social, podendo não ter ligação com os caminhos percorridos por sujeitos que vivenciaram diferentemente a expropriação.
De formas várias, a conquista ou reconquista de um modo de vida e trabalho está presente na reivindicação dos assalariados rurais em converter-se em assentados. No caso dos assentamentos investigados, temos a predominância de ocupações negociadas em terras públicas, o que não significa a ausência de confrontos e impasses entre o querer dos assentados e a falta de vontade política por parte do Estado.
O entrar na terra: a construção do assentado ou o plano jurídico-formal de ocultamento da violência
A transformação dos invasores em assentados, "protegida" por uma seleção e pontuação discutíveis, coordenadas por órgãos governamentais poderia ser vista como uma tendência dissimulada de ocultamento das contradições e expressões da violência, na qual ao Estado, encarado como regulador imparcial acima dos conflitos, como centro legítimo do poder, caberia resolver as formas de violência presentes no espaço agrário brasileiro.
Na idealização estatal do programa de assentamento, o assentado é concebido como um sem raiz (Neves,1995) 6 que deveria ser modelado segundo uma determinada lógica atribuída ao futuro agricultor. Tratando-se de bóias-frias, cuja socialização originária já se deu dentro do intenso processo de migração campo-cidade, o fato de não se apresentarem com uma história de agricultores vivida em comum, mas terem vindo de um mercado de trabalho competitivo, enquanto individualidades separadas os desqualificaria dos atributos idealizados pelo Estado para os assentados. Sua inexperiência na atividade agrícola, a perspectiva de não saberem tocar a terra, a sedução pelos valores da vida urbana seriam fatores suficientemente fortes para eliminá-los da condição de assentado. No entanto, as tensões constitutivas de uma realidade excludente têm mostrado a possibilidade dos bóias-frias desmontarem tais atributos, sendo protagonistas não subalternos do processo de construção dos assentados.
Cabe ressaltar que os assentamentos nem eliminam a violência em suas formas diferenciadas de expressão, assim como a própria transformação de invasor ou demandante de terra em assentado, não se faz acompanhar de um atendimento das novas necessidades de reprodução que se apresentam, ou da produção do silêncio. Há nessa transformação, cujos desdobramentos apresentam-se como um campo aberto de possibilidades, novas formas de expressão de violência a sinalizar que a construção pelo Estado do projeto de assentamento e da figura do assentado não dissolvem ou domesticam as contradições.
A passagem da condição de assalariado para a de assentado, sua inserção em novas relações sociais, em uma teia de situações até então desconhecidas e não vivenciadas, não podem ser enquadradas em modelos teóricos classificatórios.
Se, no momento anterior, a condição de demandante ou ocupante parecia estruturar um espaço de iguais, nos momentos seguintes, a partir da entrada na terra, esse espaço pode desestruturar-se, recompor-se ou ser ampliado à medida em que, na implementação dos assentamentos, introduz-se a vontade do Estado a legislar sobre o "direito das famílias à ocupação das terras, a escolha inicial da forma constitutiva de implantação das famílias, enquanto escolha das relações nas quais elas vão produzir" (ROY,G, 1991). 7
Concretamente, projetos de Estado e desejo de querer a terra não são ou podem não ser compatíveis.Na fase de assentamento ocorre, às vezes, uma relação de "estranheza" com a terra que lhes é atribuída.
Ao ser cadastrada, a família de trabalhadores rurais passa a sujeitar-se a uma série de regras fixadas para ela e não por elas. A escolha das culturas, a construção da moradia e da agrovila, a forma de se explorar a terra são colocadas pelos "outros". O fato de se terem postos como iguais no momento da luta não significa necessariamente sua disposição de estruturarem-se coletivamente para a organização social da produção, mesmo porque a perspectiva de construção de uma coletividade rural de produtores em cooperação não é necessariamente produto da vontade dos trabalhadores, mas resposta a uma decisão ao modelo cooperativo forjado nas instâncias do poder.
Ser cadastrado e adentrar a terra confere ao trabalhador um novo estatuto que lhe é atribuído. Mais uma vez, a recriação de uma cidadania regulada de cima, na qual as mulheres, especialmente, sentem barreiras concretas. Ao mesmo tempo, adquiriram o direito, ainda que provisório, de ter a posse, de permanecer na terra, o que não os isenta de enfrentar problemas, não só econômicos, mas políticos.
Obtida a terra, a partir de certo momento, coloca-se a provisoriedade. Ao mesmo tempo em que os trabalhadores estão estruturados como cidadãos legitimamente ocupantes da terra, adentram numa rede de dificuldades, anseios, expectativas que podem ser frustrados no seu dia-a-dia e atingem diretamente a estrutura familiar, a relação de homens e mulheres no tocante à disposição de espaços masculinos e femininos no interior do assentamento.
Categorias de incerteza impregnam seu viver. Apesar de se sentirem "donos", "terem a terra", revelam em suas práticas, a impotência advinda de não poder interferir no ciclo de produção/reprodução, cujas determinações transcendem sua vontade e experiências individuais. Impotência que não significa silêncio ou obediência à regras modeladas.
O anseio pela terra, compartilhado pelos demandantes da terra, não sustenta, em si mesma, um espaço de iguais, nem a condição de assentado implica na sujeição a uma lógica que lhe é estranha e pode entrar em rota de colisão com as expectativas de seu querer.
O viver na terra: a construção do espaço entre dificuldades, confrontos. Recriação de formas de sociabilidade e manifestações de violência
Segundo dados do Censo de Assentamentos Rurais do Estado de São Paulo (Ferrante e Bergamasco, 1995), 66,5% dos assentados nestes núcleos vieram da condição de assalariados rurais (os bóias-frias das lavouras de cana e laranja) 8 . Entre os vários núcleos, a maior frequência de ex-bóias-frias ocorre nos núcleos IV e III da fazenda Monte Alegre, onde 90% e 83% dos agricultores assentados, respectivamente, foram assalariados rurais; a seguir, encontra-se o núcleo I do mesmo assentamento, com 71% de frequência e o núcleo II, este com 65% de ex-assalariados rurais. No projeto Bela Vista do Chibarro, 50% dos assentados vieram do assalariamento rural 9 Neste último projeto, a participação de trabalhadores com passado de agricultor é bem maior, dado que se explica pelo fato de a Bela Vista ter recebido vários grupos de trabalhadores oriundos de outras regiões do Estado de São Paulo, onde a proletarização não é tão intensa, e até de outros Estados, como Minas Gerais e Paraná.
A busca de recriar as condições de vida e trabalho num espaço novo e, muitas vezes, numa ocupação diferenciada são importantes fatores no processo de constituição de uma identidade social para os assentados. Esses trabalhadores, na sua maioria fugindo do assalariamento, da carestia das cidades-dormitório, vindos, em boa medida, das primeiras experiências de greve dos bóias-frias - ocorrências violentamente reprimidas nos anos de 1984 e 1985 - percorreram diferentes trajetórias até sua instalação nesses projetos.
A forma de organização e a maneira de se encaminhar o processo que os levou até a condição de assentados varia desde um processo de seleção realizado pela Secretaria Especial de Assuntos Fundiários (SEAF) e INCRA, até a ocupação seguida de algum conflito, com pouca ou quase nenhuma orientação das entidades de mediação mais conhecidas nos processo de luta pela terra. Destaca-se nesse processo, a atuação do sindicato de Araraquara, um STR (Sindicato de Trabalhadores Rurais) que em 1989 lidera o movimento de criação da FERAESP (Federação dos Assalariados Rurais do Estado de São Paulo), tornando-se Sindicato dos Assalariados Rurais. Respondendo a diferentes demandas, esta entidade organiza os trabalhadores e intermedia, quase que exclusivamente, os processos de negociação para regularização tanto do projeto Monte Alegre quanto do projeto Bela Vista do Chibarro.
A trajetória do Sindicato dos Assalariados Rurais de Araraquara, que por um lado procura dar conta da demanda pela terra advinda dos trabalhadores da região (muitos destes desempregados da cana e laranja) e, por outro, premido pelas tensões da modernização na agricultura e pelas divergências da estrutura sindical, rompe com o modelo da CONTAG e funda uma novo sindicato, exclusivo dos assalariados rurais é uma síntese da complexa realidade vivida no campo paulista. As idealizações programadas pelo Estado para os programas de assentamentos não dão, efetivamente, conta da complexidade desse novo espaço social.
Instalados a partir do ano de 1985 (o último núcleo só foi regularizado no ano de 1992), a trajetória dos assentamentos da Fazenda Monte Alegre compõe um panorama complexo devido às dificuldades na organização interna e às pressões sofridas por parte de representantes do setor agroindustrial sucro-alcooleiro, no sentido de se implantar a cultura da cana-de-açúcar em larga escala no projeto como um todo.
A situação adquiriu novos contornos. Os assentamentos da Monte Alegre começam a mostrar, na diversificação da produção que estão reinvertendo o atributo de favelas rurais lhes era imposto pelos outros.
Segundo os funcionários do Departamento de Assuntos Fundiários, é muito difícil precisar com exatidão quantas famílias estão realmente vivendo nos assentamentos, bem como controlar todos os lotes ocupados irregularmente. A ocupação irregular de lotes (invasões individuais, ocupação por agregados ou por outro cadastrado, venda ilegal de direitos) - a expressar a continuidade da rotulada "ilegalidade" na luta pela terra - é um dos maiores problemas que o Departamento enfrenta, o que denota a falta de instrumentos ágeis e eficientes de acompanhamento da vida do assentamento. É comum, por parte dos assentados, a crítica ao abandono do assentamento. Os técnicos, por sua vez, reagem com desânimo, apontando a falta de apoio do governo aos projetos de assentamentos como um todo. "Falta até combustível para nossa locomoção", desabafa um agrônomo.
Esclarece-se que em determinados anos o registro de entrada de novas famílias pode camuflar o cálculo das evasões. Em 1990, novas famílias foram incorporadas aos projetos já instalados. A partir daí pode-se falar em "novos" e "antigos" assentados.
De antemão, o núcleo IV é o que se comporta de forma mais estável no decorrer dos anos, o que lhe confere um "status" de melhor grupo, na opinião dos técnicos..A investigação acerca das alternativas de produção nos assentamentos revelaram, a partir da ótica dos agricultores assentados, um certo desânimo devido às grandes dificuldades enfrentadas. Segundo informações coletadas junto a vários assentados, o número de famílias que subsistem exclusivamente do trabalho no lote é muito baixo.
De maneira genérica, a busca de se priorizar a produção de grãos, presente nos primeiros anos de trabalho na terra, foi cedendo terreno para outras alternativas. Hoje, a produção que parece mais lucrativa nos assentamentos é a pecuária (sendo que a de leite supera a de corte), estando presente em todos os núcleos, inclusive no de número V, o mais recente. Pouquíssimas famílias se dedicam à horticultura, já que esse trabalho depende da abundância de água e da capacidade de se instalar algum sistema de irrigação. A sericicultura (produção de casulos de bicho-da-seda) também está presente, se bem que mais localizada no núcleo IV. A fruticultura vem ganhando crescente espaço.
No tocante à produção de grãos, ela se dá sobretudo para a subsistência, embora a soja ainda esteja presente - se bem que, em sua maioria, seu cultivo seja realizado por sitiantes da região que arrendam os lotes das famílias assentadas (prática irregular mas persistente em todos os núcleos). Além dessas culturas, apenas a mandioca aparece como relevante, sendo parte para o consumo e parte para a venda.
Alguns assentados se assalariam fora do projeto, algo que é admitido por todos os informantes e denunciado pela observação de alguns caminhões de turma circulando nos assentamentos. O assalariamento entra como parte das estratégias de permanência na terra utilizadas pelo grupo.
A "alternativa" cana-de-açúcar: expressão de violência programada?
A busca de soluções alternativas para a viabilidade econômica do projeto de assentamento rural na fazenda Monte Alegre sempre foi o grande desafio dos técnicos e agentes políticos que acompanham essa realidade. Dentre inúmeras tentativas e projetos não realizados, destaca-se, já em 1990, uma proposta de cultivo de cana-de-açúcar nos assentamentos.
Essa proposta, aventada pelo próprio D.A.F., vislumbrava a utilização alternativa dos sub-produtos da cana como forma de se "escapar" do controle absoluto das usinas. Assim, o aproveitamento do bagaço para a transformação em ração ou a confecção de vasos para plantas ornamentais era visto com entusiasmo pelo então coordenador do Departamento. Arquivado esse "projeto", como muitos outros, a questão do cultivo da cana-de-açúcar volta à tona em 1993 - tendo outros personagens como protagonistas - e numa conjuntura bastante diferenciada, através de um consórcio, que levaria os assentados, sob o rótulo de cadastrados, a voltar à condição de assalariados. No presente, as alternativas de diversificação da produção dificultavam efetivamente a implantação do consórcio como havia sido idealizado pelas usinas e poder local.
Na Bela Vista do Chibarro (constituída em 1989) os problemas têm contornos distintos. Sua trajetória é marcada pelas dificuldades de convívio, pela diferenciação de portas de entrada - interferência de órgãos do Estado em transferir famílias de outros locais em lugar da convocação das famílias classificadas - pelas divergências que ainda hoje parecem separar "os do lugar" e os "de fora", somadas às disputas para direção política do assentamento. O sindicato de assalariados rurais, na condução da luta e organziação para a entrada na terra parecia não ter concorrentes. No momento da entrada das famílias de Promissão pelas mãos do Incra, teme-se uma possível invasão do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o que poderia criar um paralelismo na direção dos assentamentos. Isso não chega a acontecer, mas a partir de 1992, a Comissão Pastoral da Terra passa a ter importância no processo organizativo, o que vai estimular conflitos e concorrência.
A existência de várias associações e de uma Cooperativa expressa a diversidade que persiste na construção dessa novo espaço de vida. Os assentados dividem-se igualmente no tocante às decisões sobre produção: se o convênio com a indústria Refinação de Milho Brasil é comemorado como o principal acontecimento de 1993, as promessas não cumpridas caracterizam, nas palavras do presidente da Federação dos Assalariados Rurais do Estado de São Paulo, uma armadilha político-eleitoreira.
A complexa discussão da parceria com a iniciativa privada para o plantio de cana se faz presente igualmente no Bela Vista. Denúncias de que havia assentados plantando cana em parceria com Usinas detonaram conflitos, tais como a decisão de embargar a plantação de cana, através da destruição de mudas já plantadas e das que estavam por plantar, a ocupação de escritórios do D.A.F. às dificuldades de ordem financeira, nas quais conta a falta de vontade política do Estado expressa na ausência de suportes institucionais e de orientação técnica - acrescentaram-se manifestações de uma prática clientelista que tem levado os assentados a sujeitarem ao querer social e político de representantes do poder local. A reativação da Usina Tamoio no próprio espaço físico do assentamento vem , de forma ameaçadora, mostrar que a relação assentados/assentamentos não navega por mares tranquilos, nem está isenta de tensões e manifestações de violência.
O abandono dos assentamentos pelo Estado: irracionalidade ou violência programada?
O Estado não tem, de fato, um projeto para os assentamentos, tanto é assim que os técnicos designados para a gestão dos núcleos, insistem com frequência na falta de competência dos trabalhadores para a atividade agrícola, como se o saber tocar a roça lhes tivesse sido extirpado, por conta do processo de proletarização. O Estado legaliza a desapropriação da área de terra, mas, sem investir nela o capital necessário - dentro de um planejamento de longo prazo - põe efetivamente em risco as perspectivas da produção/produtividade. A ausência de uma linha de crédito de custeio voltada especialmente para o plantio nos assentamentos e a demora na liberação dos recursos do PROCERA tranformaram-se de fato em problemas sérios. Cabe acrescentar que a priorização de investimentos por parte do Estado nas áreas de assentamentos é uma sequência de equívocos.
As agrovilas dos assentamentos são um retrato privilegiado da ineficaz e equivocada política de investimento do Estado. Ao adotar-se "pacotes de investimentos" ou tentar adequar as mesmas infra-estruturas em todos os assentamentos, desconsideram-se as peculiaridades de cada um, deixando de ser atendidas as reais necessidades dos assentados. Poços artesianos que não funcionam, por razões várias, pairam soberanos da altura de seus postes, sobre os poços perfurados nos quintais de cada casa; os fios de energia que no máximo chegaram às casas mais próximas dos centros comunitários da Monte Alegre, convivem com o lampião à gás e a lamparina de querosene. O posto de atendimento médico e o escritório do D.A.F., construídos no núcleo I continuam paralisados. Para o atendimento das necessidades de escolarização, praticamente nada foi feito na Monte Alegre. Concretamente, a interação dos diversos órgãos estatais para a implantação e desenvolvimento do projeto Monte Alegre não saiu do papel.
Sente-se a omissão do Estado na falta de uma assistência técnica na inserção mais efetiva dos órgãos públicos, na ausência de equipamentos coletivos necessários à reprodução das condiçõs de vida social. Essa omissão, politicamente séria, permite diagnósticos de fracasso dos núcleos da Monte Alegre, atribuídos ao despreparo dos trabalhadores, sem atentar para elementos do abandono do Estado que poderiam caracterizar uma violência programada.
Comemoram-se projetos de municipalização da agricultura, dos quais os assentamentos estão ausentes. A Prefeitura de Matão, apesar da orientação assistencialista é uma das exceções, promovendo atividades como feiras de produtores assentados, fornecendo igualmente condução para estudantes e pacientes da Monte Alegre. Na prefeitura de Araraquara, prevalece uma política clientelística episódica que acaba por reforçar a exclusão imposto aos assentados. Discutiu-se, em 1993, com os assentados do núcleo Bela Vista, a Lei de Diretrizes Orçamentárias do Município. As propostas, elaboradas em conjunto com os assentados, receberam sinal vermelho por parte da Prefeitura. A Prefeitura de Motuca, acenou com a perspectiva de converter os assentamentos em celeiros de cana. Mais recentemente, no caso de um conjunto de assentamentos analisados - os da Fazenda Monte Alegre - a titulação foi regularizada para cerca de 140 famílias em outubro de 1995, em um momento crítico da relação do governo estadual com o movimento dos sem-terra, acirrado por prisões e ações políticas que tiveram profunda repercursão na sociedade civil. A titulação aparece nesse contexto, como expressão da boa vontade do Estado em solucionar conflitos envolvendo a posse da terra, em uma lógica de reciprocidade empenhada em dissimular a violência presente nas ações dos fazendeiros respaldadas por atos do Judiciário. A titulação aparece mais como retrato da cultura da dádiva que tem sido, em distintos tempos, alimentada pelo Estado como forma de dissimular focos de resistência. A titulação da terra não mudou efetivamente a situação de abandono e as dificuldades enfrentadas pelos assentados. Aqueles que têm conseguido viver melhor na terra, o fazem, em dimensão significativa, por força de estratégias familiares.
Estudos têm demonstrado que a solidariedade no trabalho na terra, e a interação de grupos de parentesco conseguem, através da extensão da rede familiar, consolidar uma estrutura interna a partir de códigos de re-conhecimento social (Barone, 1996.) 10
Procurando harmonizar as duas lógicas que se fazem presentes na organização dos projetos de assentamentos, a ação-resposta paternalista do Estado tem que ser compreendida em um complexo quadro de conquistas, revoltas e tentativas de dissimulação da violência. Entretanto, há perspectivas novas a despontar no horizonte. Refiro-me ao fato dos assentados terem participado em 1996, pela primeira vez, de uma experiência piloto de orçamento participativo coordenada pelo Instituto de Terras do Estado de São Paulo. Na expressão de suas reivindicações, na demarcação de competências e responsabilidades, demostraram perspectivas de inverter a situação de beneficiários apassivados que lhes é atribuido pelo ideário programado pelo Estado, construindo espaços para a politização conjunta de decisões que afetam seu presente e seu futuro.
Assentamentos, relações de poder, formas de violência e perspectivas de reversão da presente exclusão social, não são pois, situações pré-definidas, ou capazes de serem resolvidas por receituários. Delineiam-se perspectivas de construção de trajetórias sociais possíveis para os bóias-frias, para os "mediadores" e para o Estado que se fizeram presentes no campo de lutas investigado, enquanto virtualidades, não definidas por critérios estruturais ou identidades internalizadas.
O acirramento do movimento de luta pela terra tem forçado o Estado a rever seu imobilismo no tratamento da política de Reforma Agrária e a reconsiderar o grau de efetividade social (Costa et alii, 1995) 11 dos programas de assentamento. No campo dos possíveis, a história exige a discussão das alternativas representadas pelos assentamentos à premente necessidade de geração de empregos e à exclusão social. Igualmente, não estão afastadas as perspectivas do Estado apropriar-se de tais alternativas em uma paradoxal tentativa de legitimar, sem afastar a repressão, um ideário dirigido aos excluídos gerados crescentemente pelos modelos e planos adotados na presente conjuntura.
NOTAS
1 - FERRANTE, V.L.S.B. A Aventura de Pesquisar Assentamentos Rurais: dilemas da multidisciplinariedade e do pluralismo teórico. Adorno, S. (org). A Sociologia entre a Modernidade e a Contemporaneidade . Porto Alegre: Editora da Universidade, 1995.
2 - FERRANTE, V.L.S.B. e SILVA, M.A.M. A Política de Assentamentos: o jogo as forças sociais no campo. Revista Perspectivas 11 , Edunesp, São Paulo, 1988, p. 33-51
3 - NEVES, D.P. Reforma Agrária: Idealizações, Irrealizações ePlausabilidades. Reforma Agrária , Campinas: ABRA, No. 1, Vol. 25, Jan/Abril/95.
4- NEVES, D.P. Op. Cit , p. 188).
5 - FERRANTE, V.L.S.B. A Chama verde dos canaviais: uma história das lutas dos bóias-frias . Tese apresentada para concurso de livre-docência, UNESP, 1992.
6 - NEVES, D.P. Op.Cit. , p. 193.
7 - ROY, Gerard. Do Trabalhador Assalariado ao Pequeno Produtor Livre: qual construção para as experiências de Reforma Agrária? . Reflexões de Pesquisa , França: Orstom, 1991.
8 Ferrante, V.L.S.B. e Bergamasco, S.M.P.P. (coords.). CENSO DE ASSENTAMENTOS RURAIS DO ESTADO DE SÃO PAULO. Araraquara, UNESP, 1995, p. 32. A partir do quadro I.2 - Ocupação antes de vir para o assentamento, o maior índice de assalariamento rural é dos assentamentos da DIRA de Ribeirão Preto - onde estão os projetos Monte Alegre e Bela Vista do Chibarro.
9 - Idem, p. 32. Obtivemos esses percentuais somando as colunas Assalariado Rural Permanente e Assalariado Rural Temporário do quadro I.2. O referido Censo não registra informações do núcleo V da Fazenda Monte Alegre, regularizado em 1992.
10-- BARONE, L.A. Revolta, Conquista e Solidariedade: A Economia Moral dos Trabalhadores em Três Tempos. Tese de Mestrado defendida pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia, FCL/Unesp, Araraquara, 1996. (mimeo).
11- COSTA, V.M.H.M. et alii. Trajetórias de Assentamentos: desempenho econômico e avaliação dos núcleos de Araraquara. Ferrante, V.L.S.B (Org). Retratos de Assentamentos, ano I, No. 1, 1994.
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