49 Congreso Internacional del Americanistas (ICA)

Quito Ecuador

7-11 julio 1997

 

Pedro A. Ribeiro De Oliveira

Simposio Religión y Política: una relación de mutua implicación - POL11

Titulo:

As funções políticas do catolicismo popular.

Autor: Pedro A. RIBEIRO DE OLIVEIRA

Afiliacción institucional:

Mestrado em Ciência da Religião / ICHL - Universidade Federal de Juiz de Fora /

ISER-Assessoria - BRASIL

Resumen : Definindo o popular como produção cultural própria a classes subalternas, em oposição à produção erudita e oficial, o autor distingue três formas principais de catolicismo popular no Brasil: tradicional , privatizado e de libertação. Examina sua gênese e estrutura para contextualizar a análise de suas funções sociais e políticas. No catolicismo popular tradicional enconta a identidade popular autoproduzida mas incapaz de um projeto de superação política de sua dominação. Já o catolicismo da libertação não só produz uma identidade popular própria, como também um projeto de transformação sócio-políotica, o que coloca em novas bases o debate entre a função ideológica alienante que lhe imputava o esquerdismo e a função liberadora que lhe dava o basismo .

AS FUNÇÕES POLÍTICAS DO CATOLICISMO POPULAR

Pedro A. Ribeiro de Oliveira

ICHL - UFJF / ISER-Assessoria

Introdução

Já é antigo em Nossa América o debate sobre a dimensão política das religiões populares. Num polo está a tradição esquerdista que nelas só vê alienação ou, na melhor das hipóteses, práticas e crenças de ordem subjetiva incompatíveis com a racionalidade de um projeto político de transformação social. Noutro polo está quem as considere formas religiosas próprias aos oprimidos e com as quais eles podem construir até mesmo um projeto revolucionário autônomo. Essa polarização bem reflete a ambivalência política das religiões populares, conservadoras em sua visão de mundo mas inegavelmente capazes de mobilizar as classes populares em defesa de seus direitos.

Penso que se o debate pouco avançou nos últimos anos ( Cultura popular y religión en el Anahuac , México, Centro de Estudios Ecuménicos, 1978, já assinalava essa polarização criticando a "admiração romântica própria do populismo cultural" (p.248). Apesar da crítica, obra recentíssima da respeitada coleção "Teologia e Libertação" só enfatiza a dimensão libertadora do catolisimo popular. Cfr. José Luís GONZALES, Carlos R. BRANDÃO e Diego IRARRÁZAVAL: Catolicismo popular ; Petrópolis, Vozes, 1993. Hoje a bibliografia brasileira e hispanoamericana sobre o tema já é vastíssima e não tenho a pretensão de dominá-la. As obras aqui citadas, embora referindo-se a um ou outro tema específico, constituem de fato minhas referências sobre o tema, juntamente com uma pesquisa pessoal iniciada em 1968.) foi mais por falta de fundamentação teórica do que por deficiência de dados empíricos. Embora haja muita pesquisa sobre o tema, ainda está por ser feita uma rigorosa classificação daquilo que é vulgarmente tratado como " religiosidade " popular, o que dá margem à confusão entre fatos de natureza muito diferentes. Ao analisar aqui o catolicismo popular quero em primeiro lugar mostrar que sob essa categoria genérica encontram-se formas religiosas distintas e cuja especificidade proibe uma generalização apressada. Somente após considerar as particularidades das três principais formas de catolicismo popular no Brasil estaremos aptos a enfrentar o problema sociológico de suas funções ( observador , não necessariamente o do participante. A função social refere-se a consequências objetivas e observáveis e não a disposições subjetivas (intenções, propósitos, motivos)." Cfr. Robert K. MERTON: Social theory and social structure ; The Free Press, New York, 1966, (ed. revisada de 1957), p 24. (itálicos no original). políticas, isto é, de seus efeitos sobre a ordem social.

Para abordar o problema, retomo a contribuição da sociologia marxista sugerida por Gramsci e desenvolvida por M. Godelier, F. Hourtart e toda uma corrente de pesquisadores para quem a religião não é um simples reflexo das relações sociais, mas sim sua expressão simbólica e portanto parte constitutiva da sua realidade. Tal perspectiva obriga-nos ao estudo empírico da estrutura social onde é gerada cada forma religiosa, antes de chegar a proposições genéricas sobre a relação entre religião popular e transformação social. A rigor, somente após um estudo comparativo de casos bem diferentes ( As Religiões dos oprimidos ; São Paulo, Perspectiva, 1974, que seleciona unicamente as religiões que impulsionam movimentos sociais de contestação.) seria possível fazer alguma afirmação com fundamentação científica. O propósito deste trabalho é mais modesto: analisando o catolicismo popular no Brasil, realçar seu potencial transformador e seus limites. Por isso, não espero chegar a uma conclusão de caráter geral, mas sim recolocar a questão em termos que ajudem avançar o debate.

Antes, porém, é indispensável clarificar o que entendemos por popular , que aqui qualifica a religião. Muitos preconceitos envolvem essa categoria. Por um lado, há a uma perspectiva elitista para a qual popular é um desqualificativo: equivalente a vulgar, o popular seria a deformação de uma forma original, ou então um produto cultural de segunda linha para consumo de massa. Por outro lado, uma perspectiva basista vê o popular como forma expontânea própria de grupos ou classes subalternas e por isso capaz de conferir a marca de autenticidade a sua produção cultural. O juízo de valor implicado em ambas perspectivas prejudica seu uso em sociologia, obrigando-nos a buscar uma definição que delimite nosso campo de estudo sem prejulgá-lo seja como forma religiosa deturpada, desfigurada, própria de massas incultas, seja, pelo contrário, como forma da autêntica religião dos oprimidos.

Na busca de uma definição sociológica do que é o popular , recorro à distinção feita por P.Bourdieu ( Révue Française de Sociologie , 12 (3) jul-set/ 71: 295-334.) entre trabalho religioso anônimo e coletivo, vale dizer, a produção de autoconsumo, e o trabalho dos especialistas para consumo dos leigos . No primeiro tipo, a produção religiosa cabe a todos os membros de um determinado grupo, que de modo prático manejam o conjunto de esquemas de pensamento e de ação referentes ao sagrado, o qual se lhes apresenta em estado implícito e é adquirido por familiaridade. Este é o caso das religiões populares, em oposição à produção religiosa de especialistas (agentes socialmente reconhecidos como únicos habilitados para produzir, reproduzir, gerir e distribuir os bens religiosos).

Colocada nessa perspectiva, a categoria popular implica: (i) Socialização dos bens sagrados, posto que produzidos para autoconsumo; consequentemente, as formas populares são as mais acessíveis às classes dominadas, cujo excedente econômico não lhes permite manter especialistas para a produção de bens religiosos. (ii) Ausência de sistematização doutrinal e teológica -que é uma atividade própria a especialistas- ficando o conjunto de crenças e práticas religiosas articulado de forma implícita. (iii) Ausência de legitimidade institucional que só especialistas oficiais podem conferir. Sendo produto de autoconsumo, as formas religiosas populares só podem reivindicar para si a legitimação proveniente da tradição.

A categoria popular contém portanto diferentes significados. Tomada sob a perspectiva social, ela se opõe ao que é próprio de classes dominantes ; tomada sob o prisma da cultura, ela se opõe a erudita ; sob o prisma político, ela se opõe a oficial. Trata-se, é claro, de oposição dialética, uma vez que nenhuma religião é exclusivamente popular , já que tanto o trabalho religioso anônimo e coletivo quanto o trabalho especializado só existem como tipos ideais. Na medida em que essas três propriedades se articulam, pode-se falar de religião (e não religiosidade ) popular como forma religiosa cujas características a distinguem da forma erudita, oficial e de classe dominante à qual se contrapõem mas com a qual constituem uma única totalidade..

É evidente que só falamos de popular em contraste com a forma oficial de um mesmo sistema religioso. Neste sentido, alinho-me com M. Weber que fala de voksreligiosität ( The sociology of religion ; London, Meuthen & Co. Ltd; p. 90, que fala de uma religião de massas consentida pela burocracia religiosa oficial.), conceito que pouco tem a ver com o de folk religion ( Anthropology of folk religion ; Vintage Books, New York, 1960.) referente a religiões de âmbito local ou tribal em contraposição às religiões universais, embora em ambos os casos trate-se de produção simbólica de autoconsumo.

Podemos agora tomar como objeto de estudo o catolicismo popular no Brasil. Iniciando por uma análise empírica de suas três principais formas, discutiremos o problema sociológico de suas funções políticas.

O Catolicismo popular tradicional

A conquista colonial, que subjuga ou destrói as sociedades indígenas e implanta na América o domínio de uma classe social vinculada ao moderno sistema de mercado mundial, traz consigo o catolicismo português ( Arraial: festa de um povo ; Lisboa, Dom Quixote, 1983.). Ele vem como religião do Estado a serviço dessa classe detentora do poder político, econômico e cultural, mas vem também como religião popular, introduzida na América por colonos pobres -aqueles que mesmo tendo a posse da terra, não possuíam escravos que lhes permitissem produzir para o mercado.

Assim, ao lado daquele catolicismo oficial, patriarcal, constitui-se e difunde-se na massa camponesa -de origem ibérica ou composta por índios destribalizados, ex-escravos fugidos ou alforriados, e todo tipo de mestiços- um catolicismo popular ibero-americano ( Religião e dominação de classe , Vozes, Petrópolis, 1985, cap III; são já clássicos os estudos de Eduardo HOORNAERT e Riolando AZZI, notadamente: História Geral da Igreja na América Latina, t.II, Petrópolis, Vozes, 1975; uma síntese recente é oferecida por Eduardo HOORNAERT: O cristianismo moreno no Brasil ; Petrópolis, Vozes, 1991.). Também nas cidades difunde-se esse catolicismo popular; mas sendo elas pequenas e pouco importantes -exceto nas zonas de mineração e portos- predomina com mais força a marca rural.

O elemento nuclear do catolicismo popular é o santo . Desde as três pessoas da Trindade até as almas de inocentes, passando pelas diversas invocações de Maria, os apóstolos, mártires e doutores da Igreja, muitos são os santos e santas que recebem o culto popular. O santo está na sua imagem mas não se identifica com ela. É como se a imagem tivesse vida: com ela o devoto conversa, a ela oferece flores e velas, enfeita, visita no santuário, leva em procissão e romaria; mas pode também vir a ser punida pelo mesmo devoto quando este se sente desprotegido pelo santo. Assim, é em torno à imagem que se organiza o culto popular, nele distinguindo-se três níveis: doméstico, da comunidade local, e de âmbito regional ( Revista Eclesiástica Brasileira , 148, dez.1977: 741-758.).

Nas casas o espaço do culto doméstico é o oratório . Por vezes é uma pequena capela, com o altar para os santos de devoção da família; em geral, é apenas um canto da sala onde ficam, sempre em destaque, as imagens, lembranças e quadros religiosos. Ali a família reúne-se para rezar, cotidianamente ou em momentos de aflição, sempre dirigida por um de seus próprios membros.

Na comunidade local, o espaço religioso é a capela . Construída para abrigar a imagem do padroeiro e dos santos de devoção do lugar, a capela é o centro da vida religiosa. Ali reúne-se o povo para a reza que pode ter diversas finalidades: preparar a festa do santo, celebrar o domingo e dias de guarda, alcançar o repouso para os defuntos, proteger a comunidade. Também ali é celebrada a missa por ocasião da visita do padre. A liderança religiosa local cabe aos rezadores : leigos e leigas que assumem a função religiosa não por delegação eclesiástica, mas por sua capacidade de animar e conduzir as rezas . Nas cidades a animação da vida religiosa normalmente cabe às irmandade e confrarias (também formadas e dirigidas por leigos).

Enfim, em âmbito mais amplo encontram-se os santuários . Centros religiosos voltados para o culto de algum santo de grande devoção popular, os santuários atraem muitos romeiros durante a novena e a festa do padroeiro. Sua direção cabe a ermitães , leigos que, individualmente ou organizados em irmandades, animam as festas e organizam a acolhida aos romeiros, recolhendo esmolas e donativos para manter o templo e contratar sacerdotes em número suficiente para os serviços religiosos.

Assim, o culto aos santos organiza-se através de animadores leigos, sendo esporádica a intervenção de sacerdotes: visitas de desobriga, presença nos santuários e missões populares. Por isso, cabe perfeitamente a descrição do catolicismo popular como uma religião de "Muitareza, pouca missa;muito santo, pouco padre".

* * *

Não é preciso dizer que o catolicismo popular embebe toda a vida dos homens e mulheres do campo, propiciando-lhes o quadro de leitura para o seu cotidiano e para os eventos extraordinários. Houve até quem falasse de fatalismo para caracterizar essa força das concepções religiosas no mundo popular rural... Na realidade não se trata de um fatalismo de tipo mágico, mas sim de uma ética que regula as relações sociais a partir do modelo celeste: na terra como no céu, os grandes e poderosos devem proteger os pequenos e fracos, que a eles devem lealdade e submissão sincera. C. R. Brandão ( Catolicismo popular , cit. n.1, cap.5) fala de uma "ética de relação" fundada sobre a família tradicional cujo modelo é o grupo doméstico camponês, bem diferente de uma ética cujo sujeito é o indivíduo isolado, absorto na angústia de sua própria salvação, ou a comunidade social ou eclesial. Nesta perspectiva, é tão digno para o subalterno sujeitar-se ao senhor quanto submeter-se e honrar seu santo protetor.

Assim, as relações políticas de dominação e de alianças que constituem o quadro de referência social do camponês são indissociáveis da religião. Na sua visão, Deus não fez os homens iguais: uns são ricos, outros pobres, cada qual com seu destino, sua sina . Mas essa desigualdade não admite opressão do fraco pelo forte; ao contrário, quem tem algum poder ou riqueza é obrigado a proteger o pobre que a ele recorre. Em outras palavras, os poderosos têm o direito às homenagens ( patronagem : apresentar-se ao Senhor Bom Jesus ainda com o pó da estrada, entrar na gruta de joelhos, soltar fogos e gritar vivas para fazer as honras próprias a quem, já sendo senhor de tudo, só pode receber homenagens. Para um estudo daquele Santuário, suas romarias e seus mitos, cfr. Carlos A. STEIL: O sertão das romarias ; Petrópolis, Vozes, 1996.) e à prestação de serviços -principalmente quando se trata de afilhados ou compadres- mas estão impedidos de exercer exploração econômica sobre seus subalternos. Assim, ao regular uma ordem social fundada sobre a desigualdade, o catolicismo popular estabelece ao mesmo tempo os limites da dominação que ela encerra.

A ética política do catolicismo popular tradicional favorece, portanto, a dominação senhorial exercida pela elite rural sobre a massa camponesa. Não há, porém, indicadores de que ela seja uma espécie de ideologia senhorial incutida na religião popular. Ao contrário, o material empírico sugere que a ética política do catolicismo popular é um produção religiosa oriunda dos próprios grupos subalternos. Estamos diante do paradoxo dos subalternos que produzem a justificação (mas também os limites!) de sua sujeição ( Verdadeira e falsa religião no Nordeste ; Salvador, Ed. Beneditina, 1973.).

Para explicar esse paradoxo é preciso levar em consideração que a dominação senhorial supõe a existência de outro grupo submetido à exploração econômica, v.g. os escravos. De fato, é na ordem escravista que se constitui o catolicismo popular; e quando ela entra em colapso e submete os camponeses à exploração econômica direta, a mesma religião torna-se seu veículo de protesto social.

Aqui situam-se os movimentos rurais de protesto social e religioso , dos quais os mais conhecidos são os que ocorrem na Primeira República (1889-1930) nos sertões de Canudos, Juazeiro e Contestado ( in Boris FAUSTO (ED) História Geral da Civilização Brasileira , III/2, "O Brasil republicano"; S Paulo, DIFEL, 1977: 38-92.). Eles nos interessam de modo particular, porque apontam as condições nas quais emerge a força transformadora e os limites políticos do catolicismo popular.

Apesar de suas muitas particularidades históricas e geográficas, é legítimo fazer uma apreciação sociológica genérica dos movimentos ditos messiânicos no Brasil, pelo contexto sócio-econômico onde foram engendrados: o fim da economia camponesa subordinada ao sistema senhorial-escravista e a brusca introdução de relações impessoais de mercado regendo a vida rural. Incapazes de uma ação prática sobre um processo social fora de seu alcance, os movimentos sociais buscavam, por meio da ação simbólica de intensificação das energias religiosas, provocar o retorno à ordem cósmico-social perturbada pela ruptura da solidariedade entre ricos e pobres.

Neste contexto, o catolicismo popular tradicional sofre um processo de exacerbação da produção religiosa no qual é reinterpretado, ganhando uma dimensão contestatória e, no limite, escatológica. A segurança que as crenças religiosas inspiram aos camponeses lhes dá força para a resistência. A nova ordem republicana aparece a seus olhos como a representação mesma da desordem social e política, pois ao separar Igreja e Estado não reconhece mais o catolicismo como religião oficial. A República é o alvo primeiro da reação camponesa, que em certos momentos rejeita até mesmo sua moeda. A repressão política, eclesiástica e militar não tarda e a guerra contra aqueles homens precariamente armados é de extrema violência (exceto no caso de Juazeiro, onde a habilidade mediadora do Pe. Cícero evitou a insurreição popular). Sua resistência só pode ser entendida levando-se em conta o lugar da religião no mundo camponês: se ela é violada e suas normas são impunemente desrespeitadas, a vida perde sua referência. Aceitar a abolição da ética de solidariedade representaria aceitar o desmoronamento do mundo camponês e portanto o fim do mundo tout court. Daí sua surpreendente resistência, preferindo a morte a uma vida sem sentido.

Para o nosso problema, esses movimentos são especialmente importantes porque mostram os limites políticos do catolicismo popular. Ele é capaz de mobilizar uma grande quantidade de energia social para resistir a um processo que implode as condições sociais de existência do camponês, mas não gera uma alternativa social e política (ainda que utópica ou irrealizável) porque só contesta a nova ordem capitalista idealizando o passado. Isto confere ao catolicismo popular uma grande força de resistência, mas inibe qualquer tentativa de um projeto social e político alternativo ( v.g. CEBs dos sertões do Nordeste e da Amazônia, a contestação ao capitalismo geralmente busca reforçar as relações comunitárias visando impedir a penetração de relações de mercado na comunidade camponesa.).

Há quem busque explicar essa limitação do catolicismo popular sugerindo ser ele uma espécie de "religião da natureza", carregada de magia, conforme afirma de M.Weber em relação ao campesinato em geral ( The sociology of religion ; London, Meuthen & Co. Ltd; ch.6.). O material empírico, porém, aponta para uma religião "cósmica" porquanto articula numa única totalidade as relações com o céu, com a natureza e entre os humanos. A explicação do aparente fatalismo parece residir na própria concepção de tempo perene do catolicismo popular. Desde a Criação até o dia de hoje o mundo é o mesmo e assim será até o dia do Juízo Final. Não há nele a dimensão de uma História que faça a mediação temporal entre os primórdios e a escatologia. A ordem camponesa é a única ordem possível porque só ela é compatível com a ordem cósmica, e por isso deve ser defendida a qualquer custo.

A modernização capitalista dos primórdios o século XX, ao dar cabo da ordem senhorial-escravista, minou as bases sociais do catolicismo popular tradicional. Suas práticas e crenças vêm sofrendo modificações e sua estrutura organizativa foi pulverizada em pequeninos grupos de praticantes que teimam em conservar suas tradições religiosas. Apesar disso, não seria exagero dizer que ele ainda hoje está vivo em muitas regiões rurais do Brasil, sendo encontrado também nas periferias e favelas das grandes cidades. Não tem mais, é claro, o mesmo vigor social nem o mesmo alcance em número de praticantes; conserva, porém, o mesmo núcleo religioso de crenças e práticas religiosas do passado, o que nos permite considerá-lo como um fato religioso atual e não como material arqueológico ( Memória do sagrado ; São Paulo, Paulinas, 1985 e Sacerdotes de viola ; Petrópolis, Vozes, 1981.). O impacto da modernidade o atinge em cheio, obrigando seus agentes a uma constante reinvenção da tradição, de modo a manter sua plausibilidade em novas condições sociais e culturais de existência. Por isso, deve ser contemplado como um componente ainda fundamental da cultura popular, "porta de entrada da consciência" ( A fé na vida ; São Paulo, Loyola; 1987, cap.II.) para amplos setores da população brasileira.

Romanização e privatização: o catolicismo de massas.

O catolicismo popular tradicional é frequentemente confundido com uma outra forma de catolicismo praticada em larga escala, que é o catolicismo popular privatizado. Embora ambos tenham o mesmo núcleo -a devoção aos santos protetores- são estruturalmente distintos quanto à organização do culto e à relação com a vida cotidiana. Enquanto o primeiro é uma forma propriamente popular de catolicismo, o segundo deriva do controle do sagrado pelo corpo sacerdotal da Igreja e seria mais adequado qualificá-lo como um catolicismo de massas , por analogia com a cultura de massas . Para entendê-lo hoje, é preciso considerar sua gênese no processo de romanização.

Chamamos romanização o processo de reformas religiosas levadas a efeito pelo pontificado de Pio IX e que visava implantar em todo o orbe o mesmo modelo romano de catolicismo ( Religião e dominação de classe , Petrópolis, Vozes, 1985.). Seu núcleo reside na administração dos sacramentos para a salvação individual, tendo por conseguinte uma marca clerical e espiritualista. No Brasil, sua implantação se faz em confronto direto com o catolicismo popular tradicional, cujo caráter leigo e devocional aparecia ao clero romanizado como um desvio mais perigoso do que uma heresia; monge João Maria, o mais respeitado agente do catolicismo popular na região do Contestado, para escândalo do missionário Fr. Rogério Neuhaus, ofm.. por isso, é desqualificado como "ignorância religiosa" e recebe um combate sem tréguas. Tratando-o como um conjunto de superstições, crendices e práticas mágicas, fanáticas e até imorais, o agente romanizador busca destruí-lo substituindo-o pela forma romana, a seus olhos a única autenticamente católica.

O combate se dá através da deslegitimação das crenças e práticas tradicionais, que são excluídas dos espaços sagrados sob controle do clero e só conseguem sobreviver à margem da instituição eclesiástica. A estratégia romanizadora substitui os antigos santos e santas cujo culto incluía folias , danças, banquetes e festas, por "novos" santos aos quais se dedica um culto austero, moralizante e sacramental, próprio ao ambiente de uma igreja voltada para a salvação das almas. É assim que o Sagrado Coração de Jesus, as modernas invocações de Nossa Senhora e os santos devidamente canonizados pelo Papa assumem o lugar dos antigos santos de devoção popular. Tal processo encontra por vezes muita resistência social, mas ao cabo de duas ou três gerações o catolicismo romano se impõe no espaço eclesiástico, expulsando o catolicismo popular para a clandestinidade religiosa ou para o folclore.

Ocorre, porém, que a romanização foi suficientemente forte para combater o catolicismo popular, mas não o bastante para implantar o catolicismo romano na grande massa de católicos. Se a prática religiosa tradicional esmoreceu, nem por isso firmou-se a prática regular dos sacramentos. Certos elementos do catolicismo romano foram reapropriados e reinterpretados pelos devotos, resultando uma forma original que se pode chamar de catolicismo privatizado. Ele combina a devoção aos santos (rezas, promessas, romarias, culto doméstico às imagens, etc) a práticas sacramentais esporádicas (batismo, primeira comunhão, missas festivas e de sétimo dia), tendo por eixo a relação direta e pessoal entre o fiel e o santo protetor. Não há mediação institucional entre eles, cabendo ao devoto expressar sua devoção ao santo do modo que melhor lhe aprouver: "minha religião é Deus e eu".

O culto privatizado aos santos não é porém inteiramente autônomo, porque o lugar do santo é na igreja e esta fica sob o controle do padre, o qual pode impor certas normas para o culto. Neste sentido, a paróquia (instituição básica do catolicismo romanizado) tornou-se o espaço identificador de um catolicismo privatizado e massivo que só parcialmente submete-se ao clero. Se no cotidiano do devoto, ao nível doméstico, o catolicismo privatizado é um assunto pessoal, em sua dimensão pública, quando o devoto se dirige ao santo na igreja ou no centro de romaria, não tem como escapar da autoridade eclesiástica.

* * *

Diferentemente do catolicismo popular tradicional, que constrói uma visão de mundo e uma ética de relações capaz de unir o céu à terra, o raio de alcance do catolicismo privatizado não ultrapassa o âmbito das biografias individuais. Suas crenças e práticas têm por função justificar os êxitos e fracassos da vida cotidiana, consolar os sofrimentos e legitimar as alegrias, dando a cada pessoa o sentimento de proteção neste mundo e a segurança de um lugar no céu para a vida após a morte.

Voltado para a construção do sentido de biografias individuais, o catolicismo privatizado é social e politicamente conformista, ou, na melhor das hipóteses, não impede a emergência de uma consciência classista ( Práctica religiosa y proyecto histórico , vol.II: Lima, Centro de Estudios y Publicaciónes Bartolomé de las Casas, 1980. Ele assinala a função de identidade social desempenhada pelo catolicismo em bairros populares no Peru, mas dissociada de sua consciência de classe (p.177).). Os santos e santas têm sua função protetora limitada à dimensão individual, sem se ocuparem do mundo "que a Deus pertence". Prova disto é que na relação do devoto com os santos o que conta é a confiança no santo e a estrita observância ritual: se o fiel cumpre suas obrigações para com o santo, este também concede o favor que lhe é pedido, independentemente de suas implicações sociais ou morais. Se há uma ética, não é ela um ideal de ordem social mas a ética do do ut des , de molde clientelista. Por isso, o catolicismo privatizado é incapaz de colocar em questão a ordem estabelecida e ainda menos de engendrar um modelo alternativo. Tudo que ele pode fazer é dar sentido a biografias individuais, ajudando as pessoas a suportarem com ânimo suas condições de existência.

A privatização do catolicismo popular, decorrente do processo de romanização, o reduz a um núcleo devocional-protetor em torno do qual podem ser agregadas outras crenças e práticas religiosas. O próprio catolicismo romano é reapropriado por esse núcleo devocional-protetor, sendo seus elementos reinterpretados numa perspectiva de privatização religiosa. Se o catolicismo popular de certo modo romanizou-se, por seu lado o catolicismo romano privatizou-se tornando-se uma religião de massas. Embora uma minoria que se autoclassifica como católica praticante conserve a forma romana e mantenha sua hegemonia sobre o aparelho religioso, a grande maioria dos católicos não-praticantes segue seu caminho autonomamente. Neste contexto entende-se um depoimento que marcou toda minha trajetória de pesquisador, quando, comparando as diversas religiões que já praticara, disse-me uma mulher do povo: "o catolicismo é a melhor religião que existe: a gente faz o que quer e ninguém toma conta da vida da gente."

Aqui se entende também a abertura do catolicismo privatizado a crenças e práticas não-católicas. O tema tem sido objeto de muitos estudos, levantando-se de modo particular a questão do sincretismo . Penso, contudo, que não se trata propriamente de um novo sincretismo católico, mas sim da incorporação ao catolicismo privatizado de crenças e práticas religiosas instrumentalizadas para colocarem o sagrado a serviço de necessidades imediatas ( in P.SANCHIS (org.): Catolicismo: unidade religiosa e pluralismo cultural , São Paulo, Loyola, 1992, p.167-196.). Neste processo pouco importa a legitimação que o aparelho religioso possa lhe conferir ou retirar, uma vez que o catolicismo privatizado não tem qualquer pretensão a tornar-se religião oficial. Basta-lhe proporcionar à população brasileira o material religioso para a construção do sentido de sua biografia -cada pessoa fazendo sua própria bricolagem .

Temos assim a explicação do caráter massivo do catolicismo brasileiro que, conforme o censo demográfico de 1991, abrange 83,9% da população. Apesar da grande expansão pentecostal nas últimas décadas e da proliferação de novos grupos religiosos e esotéricos, ainda é o catolicismo o referencial religioso da esmagadora maioria dos brasileiros. Certamente essa adesão massiva não corresponde nem às suas práticas (só uma minoria frequenta regularmente a igreja), nem à sua doutrina e ética (independentemente do que ensinam as autoridades religiosas, o povo age conforme julga ser melhor). Se queremos explicá-la devemos ter em conta que a Igreja católica goza do privilégio de ter as chaves de acesso à vida além da morte: o início e o fim das biografias individuais devem passar pelo ritual católico romano, única instituição em nossa cultura apta a ministrar o Batimo e a celebrar a Missa de sétimo dia.Desafiliar-se da Igreja católica equivale a perder o acesso a esses dois rituais-chaves, e tal risco só corre quem estiver muito convencido do valor de outros meios para alcançar a felicidade eterna. Consequência e causa desse caráter massivo é a atitude ambivalente das autoridades eclesiásticas em relação ao catolicismo privatizado: não o condenam explicitamente, sempre dizendo que convém aproveitar o que ele já tem de bom e ir educando o povo aos pouquinhos, de modo a evitar conflitos como os da romanização e os que por vezes acontecem em sua relação com as CEBs.

O catolicismo da libertação

Se o Concílio Vaticano I teve por consequência a romanização, o Concílio Vaticano II trouxe para a Nossa América, pela mediação da Conferência Episcopal de Medellín, uma nova forma do catolicismo, que tem como portadores principais as Comunidades Eclesiais de Base e as Pastorais populares. Seu desenvolvimento nos meios populares (de zonas rurais, periferias urbanas e regiões empobrecidas) está ligado à opção preferencial pelos pobres, que o norteia unindo a vivência religiosa a práticas coletivas de luta contra as diversas opressões e males que atingem as camadas populares. Entre as muitas inovações que essa forma popular de catolicismo traz, destacam-se a centralidade da Bíblia, as celebrações ligadas à vida coletiva e um novo modo de organização eclesial.

Se nas suas formas tradicional e privatizada do catolicismo popular o santo tem o lugar de maior destaque, assim como os sacramentos o têm no catolicismo romanizado, a Bíblia ocupa lugar central no catolicismo da libertação. A teologia da libertação, com a qual ele normalmente se identifica, é a expressão erudita da vivência religiosa que nelas se desenvolve e que tem sua raiz numa espiritualidade fundada na leitura da Bíblia pela ótica dos empobrecidos. Lida como narrativa exemplar e sagrada da libertação dos oprimidos, ela torna-se uma referência ética para as lutas populares e não só para o comportamento individual. Textos marcantes são os que falam de Deus que escuta os clamores do seu povo (Ex 3, 7-10), derruba os poderosos do trono (Lc 1, 46-55), julga a partir da prática com os desvalidos (Mt 25, 31-46) e quer uma Igreja onde não haja pobres (At 2, 44-47). Assumida por leigos e leigas das camadas populares, a Bíblia ganha uma força contestatária de grande efeito, não só para a crítica da ordem social, econômica e política, mas também da própria religião, na medida em que fundamenta a utopia igualitária do povo em todas as esferas de sua vida, inclusive na Igreja.

A liturgia manifesta bem nitidamente as características dessa nova forma de catolicismo popular. O abandono de orações e rituais costumeiros e a busca de novas formas de rezar e celebrar tem dado ensejo a uma grande criatividade. Mesmo correndo o risco de errar, as CEBs e Pastorais populares experimentam unir na liturgia tradição e vida, e assim transfiguram as vivências coletivas dando-lhes uma significação religiosa original: as práticas populares de luta pela vida passam a ser lidas como contribuição à construção do Reino de Deus. O catolicismo das CEBs torna-se então instrumento de construção de sentido não mais apenas de biografias individuais isoladas (como é o caso do catolicismo privatizado) mas de biografias inseridas numa história que passa pela comunidade.

Essa nova forma de espiritualidade católica, centrada na Bíblia e celebrante da vida coletiva, concretiza-se institucionalmente num novo modo de ser Igreja :: a rede de comunidades que toma o lugar da paróquia como base da igreja local ( ISER - Assessoria : As CEBs em questão ; São Paulo, Ed. Paulinas, 1997.).

A CEB deve ser vista como unidade fundamental da diocese renovada conforme a Eclesiologia do Vaticano II, bem distinta da diocese de molde tridentino, cuja unidade fundamental é a paróquia. Núcleos situados no patamar inferior da instituição eclesial mais ampla, as CEBs são grupos de caráter local, nos quais se realizam as atividades normais da Igreja Católica: evangelização e catequese, administração dos sacramentos, e pastoral social. Seu caráter eclesial pode ser reconhecido de diferentes maneiras: a presença do pároco ou agente de pastoral, a visita do bispo, a participação em assembléias e encontros, a comunhão com outras CEBs. À medida em que as comunidades se consolidam, a paróquia vai se transformando numa rede de comunidades para a qual a matriz é mais um facilitador de serviços (para a formação de animadores e catequistas, celebrações especiais, registros e administração) do que propriamente seu centro religioso. Sob o ponto de vista organizacional sua originalidade está em constituirem-se no elemento básico de uma nova estrutura eclesial, e não mais uma das subdivisões da paróquia (como ainda o são as antigas capelas).

As dimensões e principais características das CEBs do Brasil foram objeto de ampla pesquisa ( ISER - Assessoria , a pesquisa teve seu relatório publicado por Rogério VALLE & Marcelo PITTA: Comunidades eclesiais católicas - resultados estatísticos no Brasil ; Vozes-CERIS, 1994. Para um comentário, cfr. P. A. R. OLIVEIRA: CEBs: o que são?, quantas são?; REB, 1994, dez: 931-934. ), cujos dados permitem projetar seu número em cerca de 70.000 ( ). É importante assinalar que elas já são um fato de âmbito nacional, presentes em todas as regiões. Embora cada uma tenha suas peculiaridades, as mesmas características podem ser encontradas em comunidades geograficamente muito distantes entre si. Importa menos a região onde está localizada a CEB do que sua integração no processo de renovação pastoral - a caminhada.

Forma moderna de catolicismo popular, o catolicismo da libertação está em sua segunda geração e ainda não tem uma tradição própria. Trata-se de um fenômeno religioso original, por ser uma forma popular (produzida por leigos e leigas de setores sociais subalternos), mas gozando certa oficialidade (na medida em que tem sido compartilhada por teólogos e bispos, e já foi reconhecida por documentos pontifícios). Confrontando-o às duas outras formas populares de catolicismo fica mais clara sua peculiaridade.

O ponto de partida é certamente seu caráter leigo. Nas CEBs, leigos e leigas dirigem o culto dominical, orientam grupos de reflexão, lideram pastorais e administram certos sacramentos. Embora isso seja novidade, suas raízes são antigas. Os rezadores e rezadoras , festeiros, capelães, beatos e beatas do Nordeste ou padres leigos do Sul são seus equivalentes no quadro do catolicismo popular devocional e protetor. Onde o padre nunca foi uma presença cotidiana e a vivência religiosa sempre foi liderada pelos próprios membros da comunidade, os animadores e agentes de pastoral leigos parecem fazer ressurgir a antiga tradição religiosa luso-brasileira. A rigor, tal semelhança é menos pertinente para o catolicismo privatizado, no qual o culto aos santos é um assunto individual ou familiar, cada pessoa desempenhando o papel de rezadora para si mesma.

É na função propriamente religiosa que os agentes leigos das CEBs diferenciam-se radicalmente de seus congêneres, porque eles se aplicam não a realizar o culto aos santos, e sim a evangelizar por meio da Bíblia. Livro que pode ser estudado, refletido, comparado à experiência vivida e reinterpretado em cada contexto, a Bíblia traz a idéia de História da Salvação na qual o mundo é visto não como obra acabada, mas como um campo onde a humanidade deve realizar (mas pode também empatar) os projetos de Deus. Esse sentido bíblico de história, que se opõe tanto ao aparente fatalismo do catolicismo popular tradicional quanto à privatização das relações com o sagrado, é talvez a particularidade mais forte do catolicismo das CEBs. Daí sua dificuldade de diálogo com outras formas de religião popular, inclusive as não-católicas.

Conclusão

Detivemo-nos no estudo do catolicismo no Brasil para que, estabelecidas as suas distinções internas, possamos saber a qual religião popular refere-se determinada função social ou política. Fugir à generalização apressada não é somente distinguir a forma popular da forma oficial, mas é também demarcar as diferentes modalidades propriamente populares. É isso que nos obriga a tratar separadamente o catolicismo tradicional e o catolicismo privatizado, pois mesmo tendo este muitos elementos do primeiro não é igual a estrutura religiosa que os organiza. Com mais razão ainda impõe-se a distinção entre aquelas duas formas e o catolicismo da libertação, cujo caráter popular não é óbvio ( igreja popular .). Tendo em mente essas distinções, podemos agora retomar a análise empírica para colocar em relevo as funções políticas da cada forma do catolicismo popular íbero-americano ().

Nossa primeira conclusão refere-se ao catolicismo privatizado . Nele não foi encontrada qualquer evidência de potencial simbólico que tivesse uma função contestadora ou transformadora da ordem estabelecida. Voltado para a construção de sentido das biografias, essa forma de catolicismo dissocia o individual do social e relaciona o fiel à divindade sem mediações sociais. Aliás, até mesmo os estudiosos que mais radicalmente defendem a tese do potencial transformador da religião popular deixam de lado o catolicismo privatizado ( Frei Damião e os impasses da religião popular ; Petrópolis, Vozes, 1978. Usando dados de entrevistas, o Autor procura mostrar que por detrás do catolicismo de massa esconde-se um saber popular contestatário e prenhe de força transformadora. Para explicar este fato, é preciso lembrar que na Igreja do Nordeste em processo de renovação pós-concíio Vaticano II (sendo D. Helder Câmara seu homem de proa), o catolicismo popular tradicional encontrou na figura de Fr. Damião um nicho para sua sobrevivência, pois aquele missionário capuchinho em pleno século XX repetia a mesma fórmula da romanização tridentina.). Não é por acaso que esta é uma forma religiosa propriamente massiva : seus praticantes não constituem comunidades ou igrejas, mas sim a multidão informe cujo espaço aglutinador (mas não organizador) é a paróquia onde recebem os sacramentos de acesso ao céu.

Já o catolicismo popular tradicional merece uma reflexão atenta, porque apesar de ter sofrido intenso processo de desqualificação religiosa não se deixou folclorizar. É equivocada a idéia de que ele esteja encerrado nos limites da tradição ou seja imutável. Dados de pesquisa recente ( reinventa as tradições que o legitimam para adaptar-se a diferentes contextos históricos e sociais. Destaca-se, neste ponto, Núbia P. M. GOMES e Edmilson A. PEREIRA: Negras raízes mineiras: os Arturos ; Juiz de Fora, Ed. UFJF/MinC, 1988. Aliás P. Sanchis já havia feito essa mesma observação referindo-se ao catolicismo popular em Portugal.) sugerem que a cada geração o catolicismo popular se reproduz reinventando-se . Está vivo porque é fator relevante para a reprodução de relações sociais reais, como as relações de parentesco e de vizinhança, essenciais à existência das classes populares. Talvez na próxima geração sua sobrevivência esteja ameaçada pelo avanço da modernidade nas periferias urbanas e zonas rurais, bem como pelo desenvolvimento de outras religiões populares (notadamente as de corte pentecostal) que desempenhem a mesma função, mas até o presente momento o catolicismo popular continua ocupando lugar de destaque no cenário cultural brasileiro. E é aí que retomaremos a análise de seu potencial político.

Tendo a função de garantir a ética que informa o processo de reprodução das relações sociais de solidariedade na família e na vizinhança, o catolicismo popular está longe de ser um fator de mudanças sociais e menos ainda de ter algum potencial revolucionário, como sugere a corrente basista . Seria ingenuidade esperar do catolicismo popular qualquer forma de projeto político de transformação, porque politicamente ele é necessariamente conservador: mesmo quando, em situações-limite, deu origem a movimentos populares de protesto e confronto armado contra a ordem estabelecida, foi em nome da restauração de um passado idealizado e não pela produção de um projeto social ou político capaz de superar as contradições do presente.

Apesar de seu conservadorismo sob o ponto de vista da ordem social, o catolicismo popular desempenha uma função políticamente libertária no campo da produção cultural: propiciar às classes dominadas uma identidade autoproduzida . Aqui está o ponto-chave da questão. Enquanto forma religiosa propriamente popular ele produz uma identidade social que valoriza os grupos e classes dominadas, protegendo-as contra a identidade que lhes é conferida pelas classes dominantes e que lhes atribui uma posição necessariamente subalterna. Na medida em que a identidade autoconstruída é forte (e aí reside a importância da religião ao consagrar valores e padrões de comportamento), os grupos e classes subalternas ganham a autoestima que o catolicismo burguês de salvação individual lhes nega. Neste sentido, o catolicismo popular é culturalmente subversivo, com toda implicação política que isso acarreta.

Se essa identidade autoproduzida não constitui plataforma suficiente para um projeto de transformação social, é porque não consegue ultrapassar os limites do campo de existência das classes subalternas e reconstruir a totalidade social a partir de sua ótica. Em outras palavras, ela é particularista . A religião popular redefine a identidade do dominado, conferindo-lhe um valor que a religião oficial desconhece, mas não consegue redefinir também a identidade do dominante de modo a poder situar ambos numa outra totalidade alternativa àquela que é imposta pela religião oficial.

Por tudo isso, é legítimo falarmos de ambivalência política no que se refere ao catolicismo popular brasileiro. Por um lado, a identidade por ela autoproduzida lhe dá uma inegável força de contestação da ideologia que relega os grupos e classe subalternos à condição de inferioridade natural/sobrenatural, e torna-a um elemento indispensável à construção de uma cultura na qual os dominados se encontrem num lugar de valor. Por outro lado, ela é incapaz de ultrapassar seu particularismo e conceber a totalidade social que inclui dialeticamente dominantes e dominados.

Em outras palavras, a religião popular só pode tornar-se força de transformação sócio-política ao romper os limites que o particularismo lhe impõe. É o que ocorre no catolicismo da libertação .

Tal como no catolicismo popular tradicional, o catolicismo das CEBs produz uma identidade popular própria. Analisando o uso da categoria "povo" nos textos preparados por representantes de comunidades para o III Encontro Intereclesial de CEBs (1978), pude perceber ali quatro dimensões que gradativamente se superpõem na medida em que aumenta sua participação em movimentos sociais e lutas populares ( Concilium , 196, 1984/6, p. 108-110.). Num primeiro momento "povo" é uma categoria descritiva do conjunto indiferenciado dos moradores de regiões pobres; depois, explicita-se como oposição ao que é próprio à elite ou classe dirigente e assim adquire a conotação de identidade social. Num terceiro momento, correlato à experiência de movimentos sociais e de educação popular, "povo" é uma categoria mobilizadora de quem deixa de ser "massa" e torna-se capaz de influir no próprio destino. Enfim, a categoria assume uma dimensão axiológica quando explicita seus próprios valores e a partir deles elabora projetos sociais: ser povo, comportar-se como povo, ter o senso estético popular, praticar a religião popular, não é motivo de desonra ou vergonha, mas, ao contrário, motivo de orgulho de quem descobre-se diferente da elite, valoriza-se a si mesmo e quer reconstruir o mundo social à sua imagem e semelhança.

Observe-se que se trata aqui de algo mais que a autoprodução da identidade popular, pois o ideário religioso dos animadores e animadoras das CEBs e Pastorais populares inclui também um projeto ou, pelo menos, uma utopia de sociedade que norteia sua praxis social e política. Haurido de fontes bíblicas, esse ideário recupera o mito da libertação do povo eleito e assim responde a uma necessidade de ordem prática: motivar a participação de grupos e comunidades católicas em movimentos e lutas populares. É certamente a reflexão bíblica feita em pequenos grupos (os "círculos bíblicos", grupos de reflexão, grupos de Evangelho, ou que outros nomes tenham) a principal mediação dessa produção religiosa popular. Pode-se aquilatar a vitalidade de uma CEB pelo lugar que nela ocupam os grupos de reflexão bíblica ( Reforçando a rede de uma igreja missionária ; Paulinas, S. Paulo, 1997.), porque neles a Bíblia não é um objeto de estudo piedoso mas sim um referencial sagrado para a interpretação da realidade vivida. Seu uso nas comunidades populares, liberado pela atuação de agentes de renovação pastoral após o Concílio Vaticano II, implode os limites de sua visão de mundo, inserindo na mesma história do povo de Deus o êxodo, os profetas, a pregação itinerante de Jesus, as primeiras comunidades cristãs e as CEBs com suas lutas. Amplia-se portanto o universo intelectual popular, incorporando uma visão universalista capaz de dar-se conta da história do povo e da Igreja. Não seria exagero afirmar que no uso libertário da Bíblia encontra-se a chave de explicação do dinamismo das CEBs, tal como para as Igrejas oriundas da Reforma ( Introdução ao Protestantismo no Brasil ; S. Paulo, Loyola / Ciências da Religião, 1990, p. 273-274.). Por sua mediação as classes e grupos dominados tornam-se capazes de produzir um novo catolicismo popular, diferente das formas tradicional e privatizada enquanto supera seu particularismo e introduz uma concepção universalista e histórica haurida das fontes bíblicas.

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Toda esta análise pode servir para recolocar o problema das funções políticas do catolicismo popular, apontando seu potencial e limites enquanto força de transformação social, e assim superar certas simplificações presentes no debate entre a perspectiva basista e a tradição esquerdista. Respeitados, porém, os parâmetros metodológicos da sociologia, ela não pode resolver o problema prático com que nos defrontamos ao encarar o sistema de dominação que pesa sobre os grupos e classes populares de Nossa América : tornar as religiões populares realmente libertárias. Isso cabe a seus próprios portadores, únicos capazes de atuar a partir de seu interior.

Juiz de Fora, abril /.97


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