49 Congreso Internacional del Americanistas (ICA)

Quito Ecuador

7-11 julio 1997

 

Ronaldo Vainfas

49 CONGRESO INTERNACIONAL DE AMERICANISTAS

Pontificia Universidad Católica

QUITO, ECUADOR, JULIO 1997

Simposio Historia de las mentalidades y Nueva Historia Cultural

Historia 14

Vida privada y sexualidades en Brasil Colonial

Ronaldo Vainfas

Universidade Federal Fluminense

Rio de Janeiro - BRASIL

1. Vida Privada e sociedade colonial

Inscrever o tema da sexualidade no Brasil colonial na esfera da vida privada afigura-se empresa sobremodo difícil se nos ativermos ao prefácio de Duby ao primeiro volume da História da Vida Privada . Diz-se ali que o território específico da vida privada é o da familiaridade, doméstica, íntima, e que no privado encontra-se o que possuímos de mais precioso, que pertence somente a nós mesmos, que não diz respeito a mais ninguém, que não deve ser divulgado, exposto...

Impossível aplicar ao pé da letra semelhante definição de vida privada ao universo social da Colônia. Construída a partir do modelo burguês de família, a noção de vida privada veiculada por Duby guarda estreitas relações com a modernidade do século XIX, com o aflorar do individualismo, da urbanização, da casa enquanto refúgio do indivíduo em contraposição ao mundo público. Na própria Europa, vale dizer, o quadro histórico em que emergiram a noção e as práticas de privacidade apenas se esboçavam ao tempo em que os ibéricos navegavam pelo oceano, a empreender suas conquistas.

A colonização do Brasil inscreve-se, pois, muito mais nesse processo de expansão marítima e comercial do que nas transformações que levariam, na Europa, ao individualismo e ao familismo de tipo burguês. Motivava-a, fundamentalmente, a exploração do território para o enriquecimento da metrópole, não obstante a cruzada espiritual levada a cabo pelos agentes eclesiásticos da colonização, à frente dos quais os jesuítas.

Não quer isto dizer que devamos adotar o estereótipo de um Brasil ocupado por degredados, entendidos como malfeitores que, tão logo desembarcavam, só tratavam de enriquecer, enquanto se uniam com várias índias ao mesmo tempo, adotando sem demora a poligamia indígena. Avessos ao casamento, errantes, aventureiros. Tampouco se

deve esposar, como modelo único, o paradigma da casa-grande, celebrizado antes de tudo por Gilberto Freyre. A idéia da casa-grande como espaço inclusivo, núcleo de numerosa família de parentes, agregados e escravos, exemplo de um privatismo patriarcal que a tudo senhoreava, confundindo-se com o público, tudo isto tem sido fartamente discutido, com boas provas, desde os anos 1970.

Diversos pesquisadores demonstraram, com efeito, que no Brasil Colônia não foi desprezível a importância quantitativa de domicílios conjugais e até de domicílios chefiados por mulheres, quer em áreas periféricas, quer em regiões diretamente vinculadas à economia exportadora. Demonstrou-se, também, que no próprio seio da população negra, africana e crioula, tornou-se viável a constituição de famílias à moda cristã, o que por muito tempo se julgou impossível, dada a predominância de homens no tráfico negreiro e a má vontade senhorial no tocante aos matrimônios entre cativos. Mas se é necessário evitar estereótipos e generalizações apressadas, a exemplo do modelo exposto em Casa-Grande e senzala , não convém, por outro lado, cair no pólo oposto por vezes sugerido pela pesquisa recente, sob o risco de supor uma sociedade quase européia em terra de hibridismos culturais e contrastes regionais acentuados.

Faz-se necessário, portanto, divorciar, no caso do Brasil Colônia, a idéia de privacidade da idéia de domesticidade. As casas coloniais, fossem grandes ou pequenas, estavam abertas aos olhares e ouvidos alheios, e os assuntos particulares eram ou podiam ser, com frequência, assuntos de conhecimento geral. Não resta dúvida de que, assim sendo, o território da sexualidade era bem menos privado do que se poderia supor, distanciando-se largamente dos padrões supostamente vigentes nos dias de hoje.

Não por acaso, vale dizer, as principais fontes que permitem conhecer, com alguma sistemática, o universo das intimidades sexuais na Colônia são as fontes produzidas pelo poder, especialmente pela justiça eclesiástica ou inquisitorial, sem falar na correspondência jesuítica, tratados de religiosos e sermões. Refiro-me, aqui, às visitas diocesanas e aos processos do Santo Ofício, tribunal que além de cuidar dos erros de fé propriamente ditos, imiscuiu-se também no território de certos atos sexuais assimilados a heresias.

As fontes da Igreja e da Inquisição mostram-se riquíssimas para aproximar o historiador das intimidades vividas no passado. Possuem, é certo, algumas fortes limitações, a exemplo da linguagem escolástica que lhes dá forma, dos filtros antepostos pelos juízes inquiridores, e da própria situação constrangedora que envolvia os depoimentos, seja os dos que delatavam por exigência das autoridades, seja os dos que confessavam seus desvios por temerem os castigos do Céu e da Terra. Destas limitações tratarei no devido momento. Insisto, por ora, nas possibilidades que semelhante documentação abre para o estudo das intimidades, dimensão da vida privada que se mostra minimamente decifrável para o historiador.

2. Eros colonial: fontes, usos e costumes

Se já não é fácil dimensionar a vida privada na colônia, mais difícil é decifrar os aspectos específicos da sexualidade na esfera estrita da privacidade, da intimidade dos casais e amantes. A contrariar ou mesmo distorcer essa atitude quase voyeurista do historiador, se assim posso chamá-la, coloca-se a distância temporal e, consequentemente, as enormes diferenças que há entre a cultura material e os estilos sexuais vigentes nos séculos XVI ou XVII e os dias de hoje. Pois se é certo que o encontro sexual de corpos pode guardar algumas invariantes que chegam a ser a-históricas, muitas atitudes do passado, atualmente consideradas extravagantes ou mesmo aberrantes, podiam ser corriqueiras naquele tempo, ao passo que outras, pueris ou simplórias aos olhos de hoje, podiam conter boa dose de erotismo.

A segunda grande limitação, igualmente poderosa, diz respeito às fontes. Além de menos numerosas do que o desejável, são traiçoeiras e enganosas. Espelham, inúmeras vezes, não o que de fato ocorria ou podia ocorrer entre parceiros sexuais, e sim o que os agentes do poder que produzia as fontes achavam por bem registrar. No caso das fontes inquisitoriais, embora sejam elas as mais privilegiadas para esse olhar microscópico da sociedade, os filtros dos inquisidores se faziam tão presentes como nos casos de heresia, feitiçaria e outros erros de fé. Depara-se então o historiador com inquisidores e escrivães a distorcer fatos, omitindo alguns gestos que talvez fossem essenciais, sobrevalorizando outros quiçá irrelevantes, retendo, enfim, ao ouvir os depoentes amendontrados, aquilo que se encaixava nos modelos da moral católica ou que dela se afastava, resvalando por isso no domínio da heresia.

Veja-se, por exemplo, o caso da sodomia, comportamento sexual que, assimilado pela Inquisição portuguesa ao crime de heresia, rendeu várias centenas de processos que permitem ao historiador aproximar-se do encontro de corpos _ embora predominem os processos sobre homossexualismo masculino, sendo pouquíssimos os de relações entre mulheres e mais raros ainda os relacionados a cóp ulas heterossexuais. Nos processos de sodomia masculina, não obstante contenham relatos riquíssimos em vários sentidos, prevalece, no tocante às relações sexuais, narrativas fortemente apegadas ao número de cópulas e de parceiros, à genitalidade e à ocorrência ou não da ejaculação. A razão disto é simples e radica nos interesses da Inquisição que, para provar a culpa convicta de um sodomita, precisava saber quão habitué era o acusado em tais práticas e, sobretudo, se havia penetração anal com emissão de sêmen _ ato que, conforme rezava a moral escolástica, caracterizava a sodomia perfeitíssima. O conjunto de processos de sodomia entre homens, se tomados ao pé da letra, apresenta indivíduos fundamentalmente preocupados com sexo, pênis e penetrações anais, o que pode ser no mínimo discutível.

A par do problema dos filtros, presente nas fontes inquisitoriais e noutros documentos oficiais, encontra-se o da linguagem, a profusão de fórmulas, jargões e clichês de inspiração escolástica. Palavras que mais escondem do que iluminam as intimidades do passado, a exemplo de tratos ilícitos, conversações desonestas, conatos e acessos nefandos, fornicação simples e muitas outras que, com certeza, os amantes sequer conheciam de ouvida. O próprio Gilberto Freyre, por vezes tão crédulo em face dos documentos que utiliza, advertiu sobre o perigo deste palavrório formal presente nas fontes, ao dizer que a fórmula beijos e abraços, expressão recorrente nos papéis do Santo Ofício, não passava de um eufemismo indicativo de várias formas de priapismo.

Acrescente-se aos jargões em português a plêiade de latinismos e mais fórmulas escolásticas, e veja-se em que indigência pode ficar o historiador preocupado em resgatar as intimidades sexuais de outrora: membrum virile, vas naturalis,mulier super virum,vas preposterum, sodomia perfeita e imperfeita, fornicação simples e qualificada, molícies, sodomia foeminarum, a lista seria extensíssima, quase infindável. No último caso, vale lembrar, nem mesmo os inquisidores sabiam do que exatamente se tratava, indecisos sobre se a mulher podia cometer o pecado da sodomia, sendo anatomicamente desprovida de pênis....

Apesar de tudo, as fontes inquisitoriais têm muito a oferecer ao historiador, contornadas as armadilhas que apresentam. Reconstituem os ambientes do encontro amoroso, as circunstâncias dos enlaces, por vezes o tipo físico dos parceiros, a alcova ou o que fazia as vezes dela, as deleitações. É frequente, em certos casos, a descrição de partes genitais, dos gestos eróticos, dos atos sexuais. E muitas vezes o documento registra as palavras vulgares, os diálogos ocorridos na intimidade. Descuido dos notários, fortuna do historiador que, com base nesses documentos, habilita-se a lançar um olhar indiscreto sobre o encontro dos corpos.

3. O sexo entre o profano e o sagrado

Dir-se-ia hoje que o sexo é algo que diz respeito ao indivíduo, a seus sentimentos e inclinações, assunto de foro íntimo e absolutamente privado. É quase pueril dizer que, neste sentido _ e exceto pelas posições das Igrejas e seitas religiosas, hoje minoritárias _, a vida sexual não depende de Deus ou do Diabo, nem precisam os amantes comunicar-se com o Além a propósito de suas relações sexuais. Nos tempos coloniais o assunto era, porém, vivenciado de forma muito distinta. A própria Igreja, evidentemente, considerava a sexualidade matéria de sua alçada, elevando à categoria do sagrado o sexo conjugal voltado para procriação e lançando tudo o mais no domínio diabólico ou mesmo herético.

No campo das moralidades populares _ e refiro-me aqui aos costumes e estilos sexuais concretamente vivenciados, independentemente da posição social dos indivíduos _, a espiritualização do sexo era ainda mais radical. Pois se a Igreja esforçava-se por separar, em todos os níveis, o sagrado do profano, aproximando este último do diabólico, as populações da cristandade, inclusive a de nossa Colônia, agiam em sentido contrário. Cópulas e orações, beijos e liturgias, Deus e o Diabo, enfim, misturavam-se admiravelmente, o que por vezes conferia às relações sexuais, ao menos em parte, o aspecto de um rito religioso.

Começemos com o exemplo de Salvador da Maia, homem já velho que matara sua mulher por culpa de adultério, denunciado à Visitação quinhentista na Bahia. Denunciado não pelo assassinato da esposa, coisa que as Ordenações do Reino autorizavam (aos maridos traídos), e disso não cuidava o Santo Ofício, mas por ter o costume de, ao tempo em que era casado, colocar um crucifixo embaixo da cama, ao pé da cama, ou embaixo da mulher, os depoimentos variam, enquanto mantinham relações sexuais. Alguns introduziram nas acusações um outro fato, trocando o crucifixo pelo retábulo de Nossa Senhora e dizendo que Salvador se punha de pé sobre o retábulo ao copular com a mulher

Em alguns relatos, Salvador e a esposa mantinham relações deitados sobre o crucifixo, em outras copulavam de pé sobre o retábulo, mas a bem da verdade nenhum depoente vira as tais cópulas sacrílegas. Pouco importa, pois eram comuns as denúncias com base no ouvir dizer, de sorte que estes fatos tanto podem ter sido invencionice de desafetos do acusado para incriminá-lo como podem ter se originado da própria boca de Salvador da Maia, jactante de suas cópulas em dias mais felizes. O que na época era ou podia ser considerado sacrílego e herético, daí as acusações ao visitador, possivelmente seria hoje visto como extravagância ou perversão. O que importa frisar, porém, é que os fatos narrados nas acusações são perfeitamente verossímeis, pois não faltam atitudes similares às de Salvador da Maia nos documentos da Inquisição e outros.

É verdade que Salvador da Maia era cristão novo, homem que além de presumidamente copular em cima do crucifixo, também cuspia nele, conforme outros acusadores. E muitos cristãos novos foram acusados de também profanarem a cruz de outros modos, a exemplo do rico mercador João Nunes, em Pernambuco, acusado de manter um crucifixo junto a um servidor onde fazia suas necessidades corporais. Não resta dúvida de que, fosse esta uma atitude exclusiva de cristãos novos, e estaríamos diante de uma afronta específica e consciente da minoria de judeus conversos, quem sabe revoltados contra o estigma que se lhes lançavam e contra a perseguição iminente de que eram vítimas no mundo ibérico.

Se ja como for, tais atitutes eram relativamente difundidas. Cristãos velhos ou novos, muitos confessaram ou foram delatados por cuspir no crucifixo, nas imagens de Cristo, da Virgem ou dos santos, por insultá-los com palavras chulas, agredi-los fisicamente, imprecar contra eles e outras irreverências. E se João Nunes foi acusado de manter um crucifixo perto de onde fazia suas necessidades, houve quem o fosse por nele depositar diretamente suas excrescências. Erotização do sagrado ou, mais amplamente, mistura do sagrado com o íntimo, os fluxos do corpo, os sentimentos individuais, eis o traço de mentalidade que parece emergir de tais atitudes, mais do que mero sacrilégio e nem de longe alguma espécie de perversão.

A Virgem Maria, por exemplo, alvo de extrema devoção no Brasil Colônia e no conjunto do mundo católico, era também especialmente sexualizada, quando não cobiçada. O poeta Bento Teixeira, que por acaso era cristão novo, morador em Pernambuco, costumava jurar pelo pentelho da Virgem. E muitos outros, que nada tinham de cristãos novos, dirigiam à Virgem, conforme a ocasião, palavras injuriosas: é má mulher; é putana e sudumítica (sic); esta puta não tem poder nenhum na trovoada, etc.. Cristo e o próprio Deus, seu Pai, também não eram poupados de atributos humanos ligados ao sexo: cornudo, corno, somítigo, fanchono. Tratados como maridos traídos, nos dois primeiros adjetivos, acusados como praticantes de homossexualismo, no terceiro, e de serem efeminados, no último.

Seria inútil, repito, ver em tais atitudes uma simples manifestação sacrílega, e com isso adotar a própria leitura da Igreja no tocante à religiosidade popular. Em perspectiva diversa, e menos literal, o Deus mijador, fálico, provido de pênis das Visitações quinhentistas estaria ainda muito próximo da religiosidade européia medieval, em que era tão difícil separar práticas cristãs e pagãs... Sob irreverência aparente, estava quem sabe um desejo efetivo de humanizar Deus e torná-lo mais próximo.

Prova admirável do que tenho dito encontra-se em certo costume, muito difundido em Portugal e no Brasil do século XVI, de dizer-se as palavras da consagração da hóstia em meio aos atos sexuais. Acreditava-se, então, que proferir em latim, na boca do parceiro sexual, as palavras com que os padres diziam estar o corpo de Cristo contido na hóstia, podia ter grandes resultados: manter a pessoa amada sempre junto a si (prendê-la, portanto); fazê-la querer-lhe bem ( e neste caso conquistá-la); impedi-la de tratar mal a quem proferisse as palavras da sacra em pleno ato sexual (evitar as humilhações e maus-tratos que os homens impingiam com frequência às mulheres). Eram as mulheres, por sinal, que mais utilizavam este expediente, consagrando os maridos e amantes, tal qual hóstias, em meio aos prazeres da carne. Mas não era impossível que os próprios homens se valessem deste recurso, quando queriam conquistar e seduzir, do que dá prova a documentação inquisitorial.

Adentramos, com a erotização de palavras eucarísticas, o vasto terreno das magias amorosas, das crenças e ritos que por vezes foram assimilados à feitiçaria e relacionados, pelo Santo Ofício, à ocorrência de pactos diabólicos. Mas feitiçarias e Inquisição à parte, está-se diante, uma vez mais, de autênticas expressões da religiosidade popular, de práticas mágicas que Laura de Mello e Souza relacionou, no

caso, à preservação da afetividade. Práticas similares, portanto, ao proferimento das palavras da sacra na boca dos amantes ou amados.

As fontes inquisitoriais relativas ao vasto período do século XVI ao XVIII em várias partes da Colônia, trazem à luz diversos artifícios então utilizados que poderíamos chamar de magia erótica. Antes de tudo, as cartas de tocar , magia ibérica que se fazia através de um objeto gravado com o nome da pessoa amada e/ou outras palavras, o qual, encostado na dita pessoa, seria capaz de seduzi-la. A clássica Celestina, de Rojas, utilizava favas para facilitar mulheres a homens, bastando nelas gravar o nome das mulheres cobiçadas e depois encostar o fetiche nas moças.

No Brasil não se utilizaram favas, mas papéis, por vezes contidos em bolsas de mandinga para fechar o corpo. Na Visitação quinhentista deparamo-nos com várias bruxas acusadas de vender as cartas e divulgar outras magias eróticas, a exemplo de Maria Arde-lhe-o rabo, Isabel, dalcunha a Boca Torta, Antônia, a Nóbrega e outras. No século XVIII mineiro, flagramos uma certa Agueda Maria que tinha um papel com algumas palavras e cruzes, carta que servia para as mulheres tocarem em homens desejados sexualmente. No Recife era um certo Antônio Barreto quem portava um papel com signo salmão e credo às avessas, que servia para fechar o corpo e facilitar mulheres: qualquer mulher que tocasse a sujeitaria à sua vontade. Seriam inúmeros os exemplos.

Além das cartas de tocar, recorria-se também, com idênticos propósitos, às orações amatórias, muito comuns na Colônia e prática universalmente conhecida. Um ramo da magia ritual em que era irresistível o poder de determinadas palavras e, sobretudo o nome de Deus, mas que não dispensava o conjuro dos demônios. Tudo com o mesmo fim de conquistar, seduzir e apaixonar A já citada Nóbrega, bruxa baiana do século XVI, mandava rezar junto ao amado: João eu te encanto e rencanto com o lenho da vera cruz, e com os anjos filósofos que são trinta e seis, e com o mouro encantador que tu te não apartes de mim, e me digas quanto souberes e me dês quanto tiveres, e me ames mais que todas as mulheres.

Poder-se-ia, também aqui, multiplicar os exemplos de rezas com fins eróticos que aludiam às almas, ao leite da Virgem, às estrelas, a Cristo, aos santos, aos anjos e demônios. Passemos, porém, ao domínio dos sortilégios que, a exemplo das orações, são reveladores de um amálgama religioso cristão e pagão, irrigados no Brasil pelo fluxo de ingredientes culturais indígenas e africanos. Sortilégios e filtros para fazer querer bem, seduzir, reter a pessoa amada. E neles, diferentemente das cartas de tocar ou das orações amatórias, pontifica o baixo corporal, que aparece referido diretamente, quando não tocado e usado (as partes genitais, o líquido seminal).

Ensinando a uma de suas clientes um bom modo de viver bem com seu marido, a Nóbrega da Bahia mandou que a mulher furtasse três avelãs, enchesse os buracos abertos com pelos de todo o corpo, unhas, raspaduras da sola dos pés, acrescentasse a isto uma unha do dedo mínimo da própria bruxa e, feita a mistura, engolisse tudo. Ao lançá-los por baixo _ presumo que de maneira escatológica_, pusesse tudo no vinho do marido. Bastava fazer isto e, no entender da bruxa, as coisas passariam a correr bem... Outro artifício que a mesma Nóbrega ensinava envolvia o sêmen do homem amado. Consistia em, consumado o ato sexual, a mulher retirar de sua própria vagina o sêmen do homem e colocá-lo, depois, no copo de vinho do parceiro. Nóbrega garantia: beber sêmen fazia querer grande bem, sendo do próprio a quem se quer.

Poderíamos, também neste domínio, arrolar muitas dezenas de exemplos. Mas creio que bastam esses para fundamentar o que se disse no início deste ítem, ou seja, o imbricamento entre sagrado e profano no uso da sexualidade, quer nos prelúdios da conquista e sedução, quer no domínio dos atos. O quadro descrito, inclusive a cópula sobre o crucifixo que tanto agradava a Salvador da Maia, lembra o que escreveu Bakhtin sobre a cultura popular do século XVI a propósito da obra de Rabelais. Lembra Bakhtin no sentido da valorização do baixo corporal, do apego aos fluxos do corpo, e nem tanto como oposição ao espiritual da cult

ura letrada da Igreja _ que em Bakhtin beira a irreligiosidade. Lembra a cultura popular no sentido positivo da renovação ensejada pelo corpo.

O uso de objetos sagrados na cópula, a erotização de Cristo e da Virgem, o uso de palavras eucarísticas em meio a gemidos de prazer, as orações, o sêmen no vinho, tudo aponta para uma aproximação entre o baixo corporal e as coisas do espírito. Do ponto de vista da Igreja tratava-se de uma inversão sacrílega, quando não herética. Do ponto de vista dos que vivenciavam essas experiências significava outra coisa: a zona do baixo corporal, a zona dos orgãos genitais é o baixo que fecunda e dá a luz. Por essa razão, diz Bakhtin, as imagens da urina e dos excrementos conservam uma relação substancial com o nascimento, a fecundidade, a renovação, o bem-estar. Não é de admirar que, assim sendo, os prazeres da carne estivessem tão próximos de Deus.

4. Os lugares do prazer

Escrevendo nos anos 1930 sobre a vida privada no Ocidente, Norbert Elias ajuizou: o quarto de dormir tornou-se uma das áreas mais privadas e íntimas da vida humana. Tal como a maior parte das demais funções corporais, o sono foi sendo transferido para o fundo da vida social...Suas paredes invisíveis vedam os aspectos mais privados, íntimos, irrepreensivelmente animais da existência humana, à vista de outras pessoas.

A afirmação de Elias nos soa familiar, presumo, apesar das fortes mutações culturais ocorridas nas últimas décadas. A casa ainda hoje é um refúgio, e o quarto um santuário onde se pode extravazar quase tudo, do sono ao sexo, excetuando-se as necessidades para as quais a modernidade contemporânea criou, desde o século XIX, compartimentos específicos no interior da casa. Casa, quarto e cama, eis o tripé, ao nível do espaço, da noção contemporânea da privacidade relacionada à sexualidade.

Nada, porém, é mais estranho do que esta descrição se pensarmos no mundo dos séculos XVI ou XVII, herdeiro, neste ponto, da sociedade medieval. Na mesma página citada, Elias comenta que, na Idade Média _ e isto vale para o nosso período _, era comum as pessoas passarem a noite no mesmo quarto. Na classe alta, o senhor com seus serviçais; a dona da casa com sua dama ou damas de companhia; em outras classes mesmo homens e mulheres no mesmo quarto e não raro hóspedes que iam passar a noite ali.

O mesmo se poderia aplicar _ e com mais razão, grosso modo _ à sociedade colonial: ausência de privacidade no viver, o que se poderia estender certamente à esfera da sexualidade, conforme apontei no início deste capítulo. Sem negar, obviamente, que muitos amantes ou casais se relacionassem sexualmente no interior das casas, e até em camas, o traço característico maior da sexualidade colonial, quanto aos lugares do prazer, reside exatamente na inespecificidade e na visibilidade dos espaços eróticos

No Brasil Colonial, terra rústica de poucas cidades, não pôde haver nem a civilità puttanesca de que fa Olivieri, nem sequer bordéis. Sociedade onde a prostituição funcionava sem o tradicional prostibulum , assim era o Brasil Colônia, o que bem mostra a vulnerabilidade das mulheres pobres, forras ou escravas daquele tempo. Em compensação, viscejavam a alcovitagem e as casas de alcouce, presentes em qualquer pequena vila, nas cidades maiores ou até nos precaríssimos caminhos e estradas. Para citar um só exemplo deste quadro, remeto ao caso da urbanizada Minas Gerais setecentista, segundo nos conta Luciano Figueiredo. Casas de alcouce eram as vendas, as tabernas, com os administradores do negócio de secos e molhados fazendo as vezes de alcoviteiros ou rufiões. Casas de alcouce eram ou podiam ser os próprios domicílios de mulheres pobres e forras, e mais raramente, senzalas de escravos. Ao Brasil Colônia faltaram bordéis, é verdade, mas a colônia toda era ou podia ser um grande prostibulum, especialmente as cafuas dos pobres, que não raro alcovitavam as próprias mulheres e filhas. Com razão Gilberto Freyre afirmou, num de seus rompantes, que o Brasil parece ter-se sifilizado antes de se haver civilizado.

Das casas coloniais já tratei anteriormente, destacando a exiguidade de espaço, no caso das habitações humildes, e a multiplicidade de moradores, hóspedes e circunstantes, no caso das casas-grandes

, a lembrar as casas senhoriais mencionadas por Elias. Se nas casas coloniais havia camas _ e há registro de que as havia _, rivalizavam com esteiras, com o próprio chão e sobretudo com as redes, um leito muito utilizado, por influência indígena, no Brasil Colonial. No mais, nenhuma privacidade para a prática do sexo combinada a uma significativa visibilidade das relações, salvo as exeções de sempre.

Confirma-o, uma vez mais, a documentação inquisitorial que, de um modo ou de outro, alude aos atos sexuais, a exemplo das defesas da fornicação e sobretudo da sodomia. Evitarei esmiuçar exemplos específicos das relações sodomíticas, preferindo retomá-los noutro contexto, mas não posso deixar de registrar, nesta altura, quão numerosos são os casos em que os amantes foram pegos em flagrante. Alguns foram mesmo vistos em pleno ato sexual, seja por se unirem em lugares devassados, seja pelo fato da precariedade das casas permitir olhares e ouvidos bisbilhoteiros, como no caso de um denunciante do século XVI, em Pernambuco, que por uma abertura da porta, pôs a orelha e aplicou o sentido, ouvindo um certo Balthasar da Lomba e um índio ofegarem como que estavam no trabalho nefando.

No dia-a-dia do pecado nefando não faltam exemplos deste tipo, de rapazes e homens sendo vistos e ouvidos em pleno ato sexual, havendo mesmo denunciantes que reproduziram os gemidos dos amantes nas suas delações , o que não deixa de ser até certo ponto surpreendente, tratando-se a sodomia de crime gravíssimo, cuja pena ordinária podia ser a morte na fogueira. No entanto, quero crer que, por mais que esses homens procurassem esconder seus atos, faltavam-lhes, amiúde, as condições materiais para tanto _ as casas precárias, esburacadas, devassadas.

Seja como for, a casa longe estava de ser o espaço privilegiado para as relações sexuais, sobretudo se fossem relações ilícitas. Os sodomitas, por exemplo, foram pegos em navios, nas oficinas de trabalho, nos engenhos, no mato. O mato, com efeito, parece ter sido espaço muitíssimo frequentado pelos amantes ilícitos ou eventuais, sendo também muito referido nos casos heterossexuais do

s colonos que copulavam com índias. Colônia de poucas cidades e casas devassadas, o Brasil teria nos matos (em cima das ervas) um espaço de deleitações, sobretudo, insisto, no caso de relações proibidas. Grande paradoxo: um espaço, por assim dizer, público, como era o mato ou a beira do rio, podia ser mais apto à privacidade exigida por intimidades secretas do que as próprias casas de parede-meia ou cheias de frestas.

Poder-se-ia dizer que assim era no caso das relações pecaminosas, quiçá heréticas. Afinal, são principalmente essas relações que chegam ao conhecimento do historiador, posto que vigiadas, perseguidas e por isso documentadas. A hipótese não é má e, de todo modo, presumo que os casais se uniam sexualmente nas próprias casas, por mais precárias ou promíscuas que fossem. Duvido, porém, que tais casas oferecessem a privacidade desejável, em tese, para a prática sexual. Limito-me a dar o exemplo de Maria Grega, mameluca casada com o ex-alfaite Pero Dominguez que, na visitação do século XVI, delatou o marido por possui-la sexualmente apenas pelo vaso traseiro. Afirmou, então, que faziam o pecado numa rede, por que não têm outra cama, e que sua irmã, que morava na mesma casa, teria visto a cena várias vezes....

Lugares privados do prazer sexual eram poucos na Colônia. Mas, afora a difícil privacidade, o sexo podia ser buscado e praticado em muitíssimos lugares, inclusive na igreja, o santuário do catolicismo, o que mais uma vez confirma a confusão entre o sagrado e o profano nas moralidades populares. E não é de admirar que assim ocorresse, sendo a igreja o espaço por excelência das sociabilidades, do encontro dominical das famílias, das festas religiosas. Era ali, em meio às missas e ofícios divinos, que se iniciavam muitos flertes e namoros, quando não adultérios.

E não me refiro, aqui, apenas às capelas de engenho que, segundo as queixas de religiosos e até alguns documentos da Inquisição, foram bons refúgios para a sedução e até para a consecução de amores profanos, governadas, no fundo, pelos todo-poderosos senhores. Refiro-me às próprias igrejas paroquiais, convertidas em espaço para namoricos, marcação de encontros proibidos, traições conjugais. Compreende-se assim o por quê de uma carta pastoral como a de D.Alexandre Marques, datada de 1732, proibindo a entrada nas igrejas de pessoas casadas que estiverem ausentes de seus consortes _ documento do século XVIII, tempo em que a estrutura eclesiástica colonial se apresentava um pouco mais articulada do que fora até então.

Nas igrejas, portanto, brotavam romances e se abrigavam os abrigavam os amantes. Não por acaso um manual português de 1681, o de D.Christovam de Aguirre, continha as perguntas: a cópula tida entre os casais na igreja tem especial malícia de sacrilégio? Ainda que se faça ocultamente?. Lugar de culto, lugar público, a igreja seria também um lugar de sedução e de prazer, justificando o delicioso título de um artigo que sobre isto se escreveu: Deus dá licença ao diabo.

Abrigo de amantes, a igreja logrou converter-se, em certas circunstâncias, num dos raros espaços privados de conversações amorosas e jogos eróticos, os quais envolviam nada menos que os próprios confessores. E tudo isto, vale dizer, ocorria em absoluto segredo, protegido pelo sigilo do sacramento da penitência, constituindo, por isso mesmo, um espaço privado que por vezes nem os casais logravam usufruir em suas casas. Das seduções perpetradas pelos padres no refúgio do confessionário só sabemos porque a Inquisição incumbiu-se de persegui-las, considerando-as crime de solicitação ad turpia asssimilável à heresia, e instando para que a população denunciasse os transgressores do sacramento.

Os desejos que muitos regulares ou clérigos não conseguiam conter acabariam invadindo as casas religiosas, os conventos de freiras e os recolhimentos onde maridos e pais depositavam esposas e filhas temporária ou permanentemente. Isto sem falar nos amores homoeróticos ocorridos em mosteiros e abadias de que temos notícia pela ação inquisitorial contra o pecado nefando. Mas no tocante aos conventos _ e os houve em pequeno número no Brasil Colonial _ historiadoras recentes têm mostrado que podiam ser, não um refúgio espiritual, mas um espaço de liberdade para as filhas de patriarcas que, de outro modo, ficariam sujeitas à tirania dos pais e depois à dos maridos.

É o caso do Convento de Santa Clara do Desterro, fundado em Salvador, em 1677, instituição que recebia filhas de famílias ricas da Bahia, pois o dote a ser pago não era pequeno, moças que lá se abrigavam inclusive com escravas a seu dispor. O convento das clarissas acabaria, no entanto, celebrizado também pelos amores que lá tiveram lugar, apesar da clausura imposta às freiras. Gregório de Matos as chamava, com a irreverência habitual, de putinhas franciscanas, acrescentando: Por que com frades dormis aos pares/ e tendes ódio dos seculares?. Sátiras à parte, os amores das alegres freirinhaseram muito comentados à época, a exemplo de um caso ocorrido em meados do século XVIII, quando o capelão do convento, adentrando-o sorrateiramente pelo alçapão da igreja, acabaria flagrado com uma jovem noviça no dormitório das moças.

Coisa similar ocorreria nos recolhimentos, estes sim mais numerosos na Colônia, e que no fundo faziam às vezes de conventos. Só para citar um caso, menciono o ocorrido em 1781, ano em que oito padres confessores do recolhimento das Macaúbas, em Minas Gerais, foram acusados de trocar palavras de amor, cartas e conversações ilícitas com as reclusas, além de tratos desonestos e de pedir ósculos. Palavras de amor e tratos ilícitos nos recolhimentos, conventos, capelas e igrejas. A mesma Igreja que controlava e punia não era capaz de guardar seus próprios templos, oferecendo-os como o espaço talvez mais nitidamente privado para as intimidades na sociedade colonial.

E assim, tratando dos lugares do prazer na Colônia, deparamo-nos com paradoxos consideráveis. A Igreja, expressão da sacralidade oficial, abrigava toda a sorte de enlaces sexuais e casos de paixão, dos namoros e flertes na missa dominical às seduções ad turpia nos confessionários; dos enlaces eróticos em capelas de engenho aos deleites no claustro dos conventos ou na vida pretensamente austera dos recolhimentos. Por outro lado, os matagais da terra brasílica, fronteira aberta aos expansionismos, foram refúgio banal de amantes, que ali buscavam desviar-se dos múltiplos olhares indiscretos. Olhares que o estilo das casas, devassadas como a colonização, não permitia evitar. Em ambos os casos, porém _ e a igreja e o mato exprimem situações-limite _ o público cedia lugar ao privado ou, como já disse antes, o uso da sexualidade andava longe da privacidade e podia divorciar-se, mais ainda, da domesticidade.

4. Sedução e violência

Um dos aspectos que mais chamou a atenção dos jesuítas no século XVI foi, sem duvida, a relação que mantinha o índio com o próprio corpo: o canibalismo, a luxúria e a nudez. Os dois últimos traços apareceram certamente ligados nas queixas e vitupérios inacianos contra os costumes do que chamavam gentio, havendo mesmo uma tendência a considerar-se a nudez de índios e índias a principal causa de tantos pecados que grassavam na colônia nascente. Nóbrega tudo fez para vesti-los tão logo chegou à Bahia, desde dar-lhes a roupa sobressalente dos padres até obrigá-los a fiar seus próprios vestidos de algodão. Julgava indispensável cobrir o corpo dos nativos, inconsolável por vê-los nus nos ofícios divinos e revoltado com a excitação que as índias causavam nos portugueses.

A correspondência inaciana, bem como alguns relatos de leigos, a exemplo de Gabriel Soares, dá-nos a nítida impressão de um Brasil profundamente erótico, quase orgiástico, impressão discutível, para dizer o mínimo. Não se trata de negar o que já se conhece a propósito do sexo pluriétnico, dos enlaces entre lusos e índias, da escassez de mulher branca, etc. Mas é realmente discutível, se nos transportamos para o mundo do século XVI, associar diretamente a nudez e o erotismo, a menos que adotemos o rigorismo moral dos jesuítas sobre a matéria.

Na própria Europa da época a nudez não era tão estigmatizada como veio a ser posteriormente, sendo comum famílias inteiras banharem-se despidas, no verão, em banhos públicos e rios, costume que seria de fato combatido, com êxito lento, pelas reformas católica e protestante. Mas no final da Idade Média, e mesmo nos quinhentos, parece ter sido prática muito comum, diz Norbert Elias, pelo menos nas cidades, despir-se em casa antes de ir para a casa de banhos. E mesmo nas casas senhoriais, onde várias pessoas dormiam no mesmo quarto, as que não dormiam vestidas, despiam-se inteiramente.A Europa convivia bem com a nudez, com a exposição do corpo despido, e teria que esperar os séculos seguintes para ver triunfar a moderna era do pudor, como bem indicou Jean-Claude Bologne, expressa na multiplicação de trajes, na invenção das roupas íntimas, nas fortes interdições à exibição do corpo nu e até na restrição aos banhos. Mas o processo transcorreu lentamente e teve impacto desigual na sociedade, sendo muito mais devagar nas classes baixas.

Se a nudez era relativamente banalizada na Europa quinhentista, e não necessariamente ligada a erotismo e práticas lascivas, o que dizer do Brasil? É preciso, pois, acautelar-se ao ler a correspondência inaciana quinhentista que, ao insistir na nudez, estigmatizando-a, erotizando-a, pode exprimir antes o seu mal-estar face à exibição do corpo nativo, e não um quadro real de frenesi sexual. De qualquer modo, os colonos teriam mesmo que conviver com a nudez, sendo ela um traço cultural dos índios em terras tropicais e sendo eles a maioria da população em terra brasílica.

Por outro lado, e deslocando nossa atenção para o mundo dos brancos, há registro de estratégias de sedução que soariam pouco familiares ou mesmo pueris aos olhos de hoje. É o caso do namoro do bufarinheiro descrito por Júlio Dantas, corrente em Portugal, e talvez no Brasil, ao menos nas cidades, na primeira metade do século XVIII. Consistia em passarem os homens a distribuir piscadelas dolhos e a fazerem gestos sutis com as mãos ou boca para as mulheres que se postavam à janela, suspirantes, em dias de procissão religiosa, como se fossem eles bufarinheiros a anunciar seus produtos. É o caso do namoro do escarrinho, costume luso-brasileiro dos séculos XVII e XVIII, no qual o enamorado punha-se embaixo da janela da moça e não dizia nada, limitando-se a fungar à maneira de gente resfriada, ao que se poderia seguir, fosse a declaração correspondida, por uma cadeia de tosses, a ssoar de narizes e até cuspadelas.

Escapa-nos, totalmente, o apelo sedutor que os tais escarrinhos poderiam ter naquele tempo, mas sabe-se que, até hoje, no interior do Brasil, o namoro à janela das moças não desapareceu de todo. E antes de concluirmos, apressadamente, que este distanciamento entre namorados poderia sugerir recato ou pudor, de parte a parte, lembremos do ditado Mulher janeleira, namorada ou rameira. Ao que se poderia acrescentar gradeira, para não deixar de fora, sem trocadilho, as freirinhas alegres que se penduravam nas grades dos conventos (que por isso mesmo soíam ter ferros pontiagudos na perpendicular...).

É-nos muito difícil, portanto, auscultar os sentimentos e os apelos eróticos da sociedade colonial sendo as fontes tão pouco numerosas e, sobretudo distorcidas, sem falar nas variações de tempo e espaço. Por outro lado, se a nudez cotidiana podia não ser excitante, conforme sugerimos, e um simples escarrinho conter mensagens de sedução, está-se diante de uma alteridade radical que desconcerta o historiador. A saída é refugiar-se nas fontes em série, nos documentos da Inquisição, que mesmo tratando de situações criminalizadas, e não da norma, são capazes de sugerir um olhar microscópico sobre as intimidades do passado.

A primeira observação diz respeito à relação entre nudez e atos sexuais, pois há fortes indícios de que não era incomum as pessoas se conservarem semi-vestidas enquanto mantinham intimidades. Refiro-me, antes de tudo, aos processos relativos à sodomia, inclusive os raros do século XVI envolvendo mulheres. Evitarei, também aqui, esmiuçar exemplos específicos, mas registro que, no conjunto dos casos (do século XVI ao XVIII), prevalece a relação sexual sem nudez. Os indivíduos levantam a camisa, abaixam calções arriam fraldas, levantam saias, enfim, não se despem completamente. É verdade que, em certas confissões, inexiste menção a roupas, o que pode sugerir que os amantes estivessem despidos nestas ocasiões, mas a profusão de relatos em que só parte da roupa é removida parece suficiente para sustentar a hipótese de relações sexuais sem nudez total.

No entanto, é preciso não esquecer que tais casos referem-se à sodomia, relação altamente perigosa para os amantes, executada às pressas, não raro com um mínimo de privacidade, passível de ser flagrada por um olheiro pronto a denunciá-la ao Santo Ofício. A contrastar com as relações de sodomia, lembro os casos dos fornicários do século XVI, homens que, uma vez instados a falar sobre seus atos com índias, não mencionavam roupa alguma, e nem poderiam, porque as índias andavam mesmo nuas.

Seja como for, as fontes da Inquisição que tratam de relações sexuais devem ser analisadas com a máxima cautela porque, como já disse antes, elas se direcionam fortemente para os atos de cópula, penetração e ejaculação, atitudes que mais interessavam aos inquisidores no exame das culpas. Especialmente nos casos de sodomia, são fontes que, se lidas superficialmente, podem sugerir uma vivência sexual muito crua, voltada sem delongas para a satisfação dos deleites; vivência pouco erotizada e muito ligada, por assim dizer, à genitalidade. Mas se lidas nas entrelinhas, se atentarmos para os meandros das confissões e denúncias exigidas pelos inquisidores, os resultados podem ser diferentes.

É o caso das próprias relações homoeróticas, onde não faltam alusões a palavras de requebros e amores, aos beijos e abraços, seja entre homens, seja entre mulheres, o que nos pode sugerir prelúdios eróticos e carícias entre os amantes. O mesmo se pode dizer dos atos sexuais, que não se limitavam às penetrações, mas incluíam toques e outros afagos, implicando a erotização das mãos e da boca. O fato de os inquisidores não darem grande atenção a esses atos _ e até minorarem as culpas nefandas quando prevaleciam as molícies no lugar da consumada penetração _ não significa que fossem eles irrelevantes nas intimidades vivenciadas.

Mas os casos de sodomia são, a meu ver, insuficientes para qualquer generalização sobre as vivências sexuais na sociedade colonial. Antes de tudo porque a imensa maioria dos casos diz respeito a relações de homossexualismo masculino _ relações muito importantes e vivenciadas, mas que obviamente não dizem respeito à dita norma, isto é, às relações heterossexuais. Impossível ajuizar sobre o que podiam ser as intimidades entre homens e mulheres a partir do que faziam os homens entre si.

Os melhores casos que a Inquisição oferece, neste sentido, talvez residam nos exemplos de solicitação, ou seja, nas seduções de mulheres ocorridas no confessionário. Poder-se-ia dizer, com alguma razão, que a chamada solicitação também configura uma situação-limite, e longe de expressar qualquer norma, constituía uma intolerável transgressão ao sacramento da penitência. É verdade. No entanto, a solicitação tem a seu favor, como campo de investigação, o fato de que envolvia relações entre homens e mulheres na situação a mais privada e secreta possível. Mesmo na devassada Colônia, ninguém pôde testemunhar ter visto ou ouvido um padre tentar seduzir uma mulher em confissão. E, por outro lado, se os homens envolvidos eram sacerdotes _ homens especiais que inclusive usavam seu poder de confessores para conquistar mulheres _, reconheça-se que, salvo por esta última ressalva, agiam, ao solicitar, como simples leigos em busca de prazer sexual.

Seja como for, os exemplos dos solicitantes iluminam um território de sedução onde salta à vista a ocorrência, da parte dos homens, de uma linguagem e de uma gestualidade que hoje consideraríamos chula e despudorada. Na documentação inquisitorial não faltam exemplos de homens _ que de padres só tinham a batina _ useiros em apalpar os seios das mulheres, meter suas mãos por debaixo das saias, beijá-las, agarrá-las. Costumavam fazê-lo ao ouvirem confissões sobre pecados de lúxuria, o que pelo visto excitava-os, estimulando-os a perguntar sobre o que ouviam pondo a mão, sem grande cerimônia, no corpo das mulheres.

No tocante à linguagem, prevalecia, ao que parece, a invectiva direta: aconselhavam às mulheres que se masturbassem, perguntavam-lhes se queriam pecar com eles; se tinham elas comoção nas partes pudendas e se porventura as poluíam; se tinham vaso grande ou pequeno e, por vezes, ouvindo confissões de mulheres casadas, perguntavam até sobre o tamanho do pênis dos maridos. Houve um que, ouvindo confissão de uma menina de doze anos, não hesitou em perguntar se ela ainda tinha o seu cabaço. E outro que, desejoso de uma penitente, e passando das palavras aos gestos, meteu-lhe a língua na boca e pediu que lhe desse a língua para chupar.

Examinando estes casos, Lana Lage observou que não era incomum, na fala sedutora dos solicitantes, o uso de expressões chulas, de palavras em português para aludir às partes genitais; de termos, enfim, que hoje chamaríamos de palavrões. É claro que muitas mulheres ficavam chocadas ao ouvirem tais gestos e palavras, tanto é que acabavam denunciando os ousados confessores ao Santo Ofício. Mas cabe perguntar: ficavam chocadas com os gestos obscenos e com as palavras chulas ou com o fato de serem padres os que agiam e falavam desse modo?

Difícil responder, embora só saibamos de tais excessos de linguagem erótica, verbal ou gestual, porque várias mulheres insistiam nisso ao acusarem os solicitantes, fazendo-o não raro por instância de outros confessores menos afoitos e cobiçosos. Padres zelosos que, ao tomarem conhecimento do que faziam certos colegas de ofício, mandavam as moças denunciarem os transgressores à Inquisição _ o que sugere que os gestos e palavras obscenas dos solicitantes podiam mesmo constrangê-las. Por outro lado, Lana Lage nos adverte, baseada em Norbert Elias, que naquele tempo as pessoas falavam em geral com mais franqueza sobre os vários aspectos da vida instintiva e cediam mais livremente aos seus próprios impulsos em atos e palavras. Era menor a vergonha associada à sexualidade.

Seja como for, o padrão chulo na linguagem sedutora não parece ter reinado exclusiva e absolutamente na sociedade colonial. Examinando casos de sedução em São Paulo, no século XVIII, Del Priore arrolou inúmeras expressões de carinho e mimo que podiam ser ditas às mulheres: eu hei de casar com você; meu benzinho da minhalma; meu coração, etc, tudo acompanhado de presentinhos como corações de ouro, fitinhas, laranjas e palmitos e mais coisas que sinalizavam dádiva amorosa naquele tempo e lugar. Os próprios solicitantes podiam ser mais cortezes do que o habitual, tocando levemente na palma da mão das moças, oferecendo flores, passando raminhos por entre as grades do confessionário, etc.

Bilhetes amorosos, palavras enamoradas, tudo isto conviveu com o palavreado chulo e com os gestos obscenos no dia-a-dia das seduções e deleites sexuais da Colônia. Mas não nos deixemos levar pelas tentações do olhar microscópico, e com isso perder de vista as linhas de força do colonialismo que, com certeza, imprimiram sua marca nas relações amorosas do passado. Antes de tudo, a escravidão e o racismo.

Vê-se-os, com absoluta nitidez no conjunto das vivências amorosas e sexuais de outrora, inclusive nas relações de homossexualismo masculino, relações que nada tinham de libertárias, reiterando, no conjunto, os princípios de hierarquia e os padrões discriminatórios da socidade colonial. Afasto-me, neste ponto, do juízo de Luiz Mott sobre o assunto, para quem a clandestinidade, segredo e discrição a que deviam se submeter os homossexuais forçava-os a uma certa coalescência e cumplicidade que neutralizava as barreiras de raça e mesmo de hierarquia social. Não é o que se pode ver no comportamento de diversos senhores que coagiam seus escravos a práticas sodomíticas variadas, sem dispensar a violência física e por vezes levando à morte dezenas de escravos que não passavam de meninos, como no processo de Francisco Serrão de Castro, no Pará do século XVIII. Abuso sexual de cativos e exploração da miséria, eis o que, a meu ver, prevaleceu nestas relações, fiéis à hierarquia social erigida no trópico: homens a violentar seus escravos e os alheios; a prometerem dádivas que não cumpriam, em troca de favores sexuais; a dar abrigo a andarilhos sem pousada, convidando-os depois ao pecado nefando.

Exemplo maior de como a violência podia temperar as relações sexuais na Colônia encontra-se, a meu ver, no estupro de crianças. Meninos e meninas de seis, sete e oito anos aparecem, na documentação inquisitorial, violentados por homens maduros sem nenhum drama de consciência. O mais das vezes são senhores sodomizando molequinhos de tenra idade, mas houve mesmo um padre, Jácome de Queiróz, homem de 46 anos, que confessou ao visitador quinhentista ter mantido, em duas ocasiões, relações sexuais com meninas de seis ou sete anos, penetrando-as pelo vaso traseiro por estar bêbado. Observe-se que o único crime admitido pelo padre é o de sodomia _ e somente este, no caso, interessava ao visitador ouvir.

A mesma violência, real ou simbólica, se poderia estender, portanto, às relações heterossexuais, marcadas antes de tudo pela misoginia: maus-tratos de todo tipo, como se vê nos processos de divórcioe na obsessão das esposas em acalmar seus maridos por meio de magias; mulheres sumariamente assassinadas por mera suspeita de adultério; promessas de casamento não cumpridas. E o que dizer de um certo Frei Luís de Nazaré, carmelita da Bahia que, no século XVIII, ancorado em seus supostos poderes de exorcista, curava mulheres doentes mantendo com elas cópulas ou mesmo violentando-as, e delas exigia segredo porque o remédio era bom e vinha de Deus ? Defendendo-se, depois, do processo que lhe moveu a Inquisição, Frei Luís não hesitou em dizer que não fazia aquilo por heresia e justificou-se dizendo que as mulheres do Brasil eram rudes e simples, e facilmente se enganam com qualquer cousa que lhes dizem....

E com isso se pode concluir, retornando ao olhar macro-histórico com que iniciamos o capítulo. Afinal, o ajuizamento do historiador depende do ponto de observação, e da escala em que a sociedade é observada. E, em nosso caso, o olhar de conjunto não dá margem a ilusões: os afagos e deleites cedem lugar às tensões e conflitos de que nem as moralidades secretas - e pouco secretas _ lograram escapar.


Buscar en esta seccion :