Etnoarquiteturas européias na formação socioespacial do Vale do Itajaí/SC-Brasil
por Arq. Roberto Gonçalves da Silva, arquitecto, urbanista, doctorando Geografia Humana, Universidad
Federal Santa Catarina, Florianópolis/SC-Brasil. (participante distante pres. por Arq.Viñuales)
Saudando à distância os participantes do encontro La outra arquitectura, quero antes de tudo, agradecer ao convite de Catalina Saugy e, através dela, utilizando-me das palavras de Pier Luigi Nervi 1, manifestar o meu desejo de que esta discussão possa contribuir para detener nuestra arquitectura en su ruinosa carrera hacia el formalismo vacío, costoso y a veces irrealizable, y llevar de nuevo a los proyectistas y hombres de cultura a uma más serena valorización de los componentes ogjectivos de la construcción y al respecto hacia uma moral constructiva y arquitectónica, tan importante para el aspecto futuro de nuestras ciudades como lo es la moral, entendida en el sentido de regla de vida, para una ordenada vida civilizada.
Inicio a minha contribuição, contando-lhes alguns episódios que vivi enquanto arquiteto, reunidos em três atos. Eles permitiram-me identificar algumas das limitações que foram impostas ao exercício da arquitetura ao ser assaltada pelo mercado e estimularam-me a formular a idéia das etnoarquiteturas apresentadas como epílogo.
Primeiro ato
Em junho de 1982, a possibilidade de dispor de tempo integral e dedicação exclusiva enquanto professor de urbanismo na Universidade Federal de Santa Catarina, foi o motivo principal que me levou a realizar o concurso público em que fui aprovado e que permitiu-me mudar de São Paulo para Santa Catarina, em busca de uma melhor qualidade de vida.
Na situação em que me encontrava em São Paulo - dividindo o tempo entre a Prefeitura de São Paulo, onde era arquiteto por concurso público desde 1978, a Universidade de Mogí das Cruzes, onde ensinava planejamento urbano, regional e paisagismo, desde 1977, e a Universidade de São Paulo, onde enquanto aluno do mestrado em estruturas ambientais e urbanas, estudava, desde 1975, as relações entre espaço e poder, concorrendo com a condição de marido e pai de três filhos - era praticamente impossível realizar o que julgava necessário, possível e oportuno: construir uma metodologia de projetos urbanos de interêsse social, baseada no exercício da civilidade e comprometida com a construção da cidadania.
A mudança para Florianópolis, assegurado o meu ingresso na universidade como professor de urbanismo, exigiu uma solução para a moradia familiar. Desconhecendo a cidade, decidimos por uma solução provisória: alugar uma casa. Além do abrigo imediato, isto possibilitaria o conhecimento da Ilha de Santa Catarina e uma escolha mais criteriosa do lugar onde comprar um terreno e construir a nossa casa definitiva. Entretanto, esta solução representando também um enorme desconhecimento de Florianópolis se mostrou inviável. Como a grande maioria da sua população fosse constituída por proprietários, inexistia um mercado de locação de imóveis. Consequentemente, fomos obrigados a comprar uma casa. Localizada em um bairro residencial moderno, a casa térrea recém-construída que adquirimos dispunha de uma área equivalente à da nossa casa de São Paulo.
No dia 6 de janeiro de 1983, seis meses após a mudança e ocupação da nova casa, chuvas intensas promoveram uma enchente inesperada que inundou com 1 metro de água, o seu interior. Às perdas materiais irreparáveis, vieram se somar a minha perplexidade: - Como fui incapaz de perceber que a casa que havia comprado estava construída no leito secundário de drenagem de uma vasta bacia hidrográfica? Como fui capaz de levar toda a minha família a afundar-se nela?
Segundo ato
Em julho de 1983, s eis meses após a enchente que sofremos em Florianópolis, quase todo o estado de Santa Catarina submergiu por enchentes. As chuvas que se precipitaram com grande intensidade e longa duração, promoveram cheias que inundaram 162 dos 199 municípios então existentes. A tragédia, que produziu 219.856 flagelados e 61 mortos, ganhou dimensões de catástrofe ambiental e comoveu o mundo, sensibilizando pessoas que, em níveis até então desconhecidos, responderam efetiva e prontamente à Campanha S.O.S. Enchente , levada a efeito pela televisão, através de imagens geradas e transmitidas "ao vivo", desde o cenário dos próprios acontecimentos.
Tão logo as águas do Rio Itajaí baixaram, visitei a área mais duramente atingida de todo o Estado de Santa Catarina, enquanto pesquisador associado do Grupo de Estudos de Movimentos Sociais da UFSC, coordenado pela professora Ilse Scherer-Warren. Levantávamos dados para uma pesquisa que visava analisar as redes de solidariedade estabelecidas durante a enchente. Identificando-me com as vítimas, busquei saber a que causas elas atribuíam o fenômeno. As duas afirmações abaixo transcritas, delimitam o campo básico dos seus entendimentos:
Final dos tempos...castigo de Deus. A humanidade tem agido de maneira muito errada e Deus não admite conviver com tanto pecado...
O desmatamento desenfreado, o assoreamento crescente do Itajaí, a paralisação das obras de contrução das barragens de contenção...
Por absurdo que pareça, a explicação metafísica, aproxima-se mais da verdade ao responsabilizar a humanidade pelos seus êrros. Entretanto, peca por não identificar que pecados estariam sendo por ela cometidos e por não insinuar nenhum caminho para o paraíso. A segunda, reproduz de maneira mecânica e estereotipada, os conteúdos então veiculados pela mídia. Divulgando algumas das conseqüências como se fossem as verdadeiras causas, isenta a todos de qualquer responsabilidade. Ambas, não contribuem para que se altere a situação, impedindo que os esforços de todos os cidadãos pudessem convergir para articular uma reconstrução adaptada, fortalecendo o desenvolvimento de uma cultura espacial local. Ao contrário, colaboram cotidianamente para o seu agravamento e para confirmar a máxima dos hidrologistas: "a maior enchente ainda está por vir".
Foi ainda no Vale do Itajaí , no cenário da grande enchente e em meio às numerosas vítimas , que me perguntei : será que a mesma ignorância ambiental que me vitimara 6 meses antes, ao imigrar para Santa Catarina, não teria vitimado os alemães e italianos ao iniciarem a ocupação do Vale do Itajaí , a partir de meados do século passado ?
No início de 1989, um encontro providencial com o professor Aziz Ab ' Sáber , abriu uma nova perspectiva para os meus esforços de esclarecer as enchentes . O amigo e ex- professor no mestrado da FAU, um dos grandes conhecedores do Brasil e não apenas da sua geomorfologia , após ouvir -me atentamente, sugeriu :
... procure referências da ocupação anterior, procure conhecer a situação dos sítios arqueológicos existentes na região...
A localização dos sítios arqueológicos conhecidos e já identificados no território catarinense, constituídos na maioria por sambaquis e inscrições rupestres, indicam a escolha preferencial das populações originárias por terrenos situados à meia encosta e no topo dos morros mais altos, inexistindo qualquer vestígio de ocupação nos fundos de vale. Todavia, o patrimônio arqueológico da região, que muito deve aos estudos iniciados pelo Padre João Alfredo Hohr 2, permanece até hoje muito pouco conhecido e desconsiderado até mesmo pela instituição formalmente responsável pelo seu cuidado, como indicou-me o geólogo Juarez José Aumond, professor da FURB.
Ao encontrar um sambaqui no alto do Morro do Baú, o mais antigo que eu já havia me deparado, constatei - porque dispunha de um GPS - que o mesmo nunca havia sido identificado. Comuniquei o achado, fornecendo as coordenadas ao SPHAN. O funcionário que me atendeu fez, aparentemente a contragosto, o favor de anotá-las. Até hoje, ao que parece, nada foi feito.
Os Seminários Nacionais sobre Universidade e Meio Ambiente, realizados entre 1986 e 1992, possibilitaram-me tomar contato com conhecimentos e perspectivas que foram sistematicamente omitidos ao longo de toda a minha formação enquanto arquiteto e urbanista. Neles reencontrei velhos e fiz novos amigos que se ocupavam em conhecer o Brasil nos campos da Biologia, da Geografia, da Antropologia, da Física, das Artes, das Letras, da Filosofia. Uma das conseqüências desta trama indisciplinar - com a qual tanto me envolvi, a ponto de integrar a sua comissão executiva nacional, organizando e realizando o IV Seminário, em Florianópolis - foi a criação de uma disciplina optativa no Departamento de Arquitetura e Urbanismo intitulada Arquitetura, Sociedade e Natureza 3.
Nela, partia do entendimento de que arquitetura é uma síntese inteligente entre um ethos e um topos , constituída através do habitus . Ela expressa a riqueza e a diversidade do engenho humano no mundo, que a expansão do capitalismo que se inicia na América com as grandes navegações, insiste em demolir e substituir em todos os lugares, pela última moda. O trabalho desenvolvido ao longo de 5 semestres, estimulou-me a amadurecer a idéia das etnoarquiteturas 4.
Paralelamente a isto, a minha participação por 3 anos no Conselho Estadual de Meio Ambiente, representando a UFSC, permitiu-me constatar duas coisas: a limitação do conhecimento existente sobre a Formação Socioespacial de Santa Catarina, bem como a enorme distância que é mantida pelos cidadãos e pelo Estado com relação ao conhecimento já disponível.
Um outro episódio ocorreu em 1992, durante o Fórum de Cultura - promovido pela UNESCO e pela UFRJ no Rio de Janeiro - resultou em significativa confirmação da minha perspectiva de entender a Formação Socioespacial. Na sessão O Futuro das Cidades , o Arq. Rubén Pesci, um dos conferencistas, terminou sua exposição afirmando que o atual caos urbano, decorria da desconsideração pelas culturas agrícolas. Tomei a palavra, e pela primeira vez sendo traduzido simultaneamente em 4 línguas, dirigi-me a ele e aos quase 300 participantes de todo o mundo que lá se encontravam. Iniciei afirmando que a generalização é inimiga do entendimento. Afirmei a minha discordância, entendendo que ao se falar de cultura agrícola, estava-se reportando exclusivamente à Europa, uma vez que nos demais lugares do mundo existiam culturas patrimoniais. Estas sim, é que vinham sendo sistematicamente demolidas. Identificando-me como um estudioso de Santa Catarina, estado onde se encontra o Vale do Itajaí-Açú, mundialmente conhecido pelas suas enchentes que em 1983 e 1984, inundaram 75% do seu espaço construído, justamente na parcela correspondente à colonização de camponeses alemães e italianos que foi iniciada em meados do século passado, não atingiram qualquer um dos sítios arqueológicos conhecidos e nele situados. Que o saber ambiental elaborado ao longo dos 8000 anos de convivência pelas culturas patrimoniais, baseado nas suas relações de parentesco com a natureza era incomparavelmente mais amplo e eficaz que o decorrente dos 150 anos de colonização européia. E, para finalizar, afirmei que fatos como este não ganham qualquer visibilidade, em razão da recusa sistemática dos intelectuais locais em interessarem-se por eles, uma vez que permanecemos sendo papagaios de pirata e tendo por paradigma ser a caricatura dos outros. O agradecimento efusivo do conferencista, acrescido dos cumprimentos de inúmeros participantes, confirmando que a situação que eu havia descrito, também estaria ocorrendo nos diferentes lugares do mundo de onde vinham, reforçaram-me a perspectiva de estar trabalhando segundo uma nova universalidade.
Terceiro ato
Dispor de melhores condições de vida e trabalho, vivendo em Florianópolis e trabalhando em regime de dedicação exclusiva na sua Universidade Federal, constituía, como já afirmei, uma perspectiva sedutora. Naquele momento, era tudo o que eu queria. Principalmente, para que redigisse, com o distanciamento necessário e dentro do prazo que se encerraria em setembro de 1983, a dissertação de mestrado em Estruturas Ambientais e Urbanas da FAU-USP, que tomava por tema as relações entre espaço e poder.
Face aos vínculos éticos e estéticos que mantinha com os movimentos sociais urbanos, tinha certeza que o meu texto traria, além do título acadêmico, uma contribuição necessária e oportuna ao processo que se ampliava em todo o país, através de uma metodologia de projetos coletivos de interesse social que efetivasse melhorias efetivas nas condições de vida das populações miseráveis. Este julgamento aparentemente fantasioso, não o era, uma vez que a sua base empírica foi forjada ao longo de mais de dois anos, no último trabalho que realizei enquanto arquiteto da Prefeitura Municipal de São Paulo.
Um inesperado convite de Maria do Carmo Brandt de Carvalho Falcão (então supervisora de Serviço Social da Regional de Campo Limpo), para eu acompanhar a implantação do primeiro projeto Pró-favela que seria realizado no Brasil, foi prontamente aceito. Ele pôs fim ao marasmo e a inconsequência com que desenvolvia o trabalho rotinizado de planejamento urbano na Coordenadoria Geral de Planejamento de são Paulo. A minha paixão por descobrir o mundo, foi mais forte que o conforto do já sabido.
Assumir a responsabilidade de mediar as relações entre as 163 famílias residentes na Favela Chácara Santana e os técnicos da EMURB, buscando resguardar os interêsses dos favelados, além de um enorme desafio, seria uma oportunidade única de poder travar um conhecimento inédito e necessário com a banda pobre da realidade urbana paulista. Uma mudança radical desencadeou-se com a minha aceitação ao convite, a começar pelo endereço de trabalho: de um luxuoso edifício da Avenida Paulista - com ar condicionado central e carpetes - para uma precária edificação na Estrada do Campo Limpo. Isto sem considerar o ritmo, a regularidade, a atmosfera em que se realizavam os trabalhos e, principalmente os interlocutores. Estava diante do mundo e não das suas representações.
Iniciei o meu trabalho na SURS-Campo Limpo, participando das reuniões semanais de um trabalho comunitário que se desenvolvia na Favela da Chácara Santana e que era conduzido por uma freira/assistente social, desde o início dos anos 70. Nas reuniôes que aconteciam principalmente nos fins-de-semana, fui conhecendo e sendo conhecido pelas pessoas que iam me apresentando um mundo radicalmente diferente de tudo o que já conhecia através da literatura, um outro mundo...
Enquanto aguardava, junto com os moradores, a apresentação pelos técnicos da EMURB do projeto de sua responsabilidade, aproveitei o tempo para realizar, através de visitas constantes ao longo da semana, um levantamento de campo criterioso da favela e dos seus moradores, inspirado no clássico A situação da classe operária na Inglaterra , de Friedrich Engels.
Paralelamente, ao relacionamento mais estreito com a comunidade alvo, interessei-me pelo trabalho realizado pelo Plantão Social. Através dele pude ter uma visão concreta da problemática presente em toda a região, além de contactos diretos com situações de emergência que ocorriam com relativa frequência e que colocavam a população em situações de risco. Desmoronamento, desabamentos, incêndios e enchentes passaram a ser objeto da minha atenção profissional, assim como fazer avaliações de risco e propor soluções emergenciais que resguardassem a vida das pessoas.
Era contudo nas reuniões de trabalho de fim-de-semana, sempre uma festa para mim, que conhecia melhor as pessoas e fazia-me conhecer melhor por elas. Associadas ao contato interpessoal estabelecido nas minhas visitas constantes, era nelas que tecia as relações de confiança necessárias e que me permitiram certa vez, diante da manifestação de incredulidade de que algum projeto seria ainda apresentado, propor-lhes que tomássemos a iniciativa de realizá-lo, ao invés de permanecermos na expectativa da apresentação do projeto pelos técnicos da EMURB. A decisão deles, acatando a minha sugestão, alterou substancialmente o papel que havia assumido: de mediador para o de arquiteto, coordenador de um processo coletivo de trabalho. Nele qualquer morador - homem, mulher ou criança - tinha o direito e a obrigação de defender os seus interêsses. Quanto às decisões, tomadas por maioria simples e sempre em reunião, estabeleceriam espacialmente a melhor solução possível para os interêsses em conflito. Com isto, conseguimos, através da composição ao invés do consenso, construir a virtualidade possível que melhor assegurasse o interêsse de todos e o direito de cada um. Este jogo prazeiroso que durou pouco mais de um ano, pautado por uma única regra - em jogo de malandro, sapo de fora não chia - resultou na atual Chácara Santana, construída em 1983. Por ter sido a primeira iniciativa do gênero, a única que eu saiba, imensas foram as dificuldades técnicas para elaborá-lo.
Por outro lado, esta experiência representou também uma ruptura com o projeto de pesquisa com que me qualificara para o mestrado na FAU-USP, em 1978. Orientado de fato pelo professor Milton Santos, que regressara do seu exílio, uma vez que dispunha apenas da orientação formal do professor Eduardo de Almeida, pretendia analisar o município de São Miguel Paulista entre os anos 1960 e 1970 para responder as seguintes questões: 1) o que mudou na configuração espacial do município que apresentou o maior crescimento populacional da Grande São Paulo? 2) quais foram os protagonistas das mudanças e com que ações agiram? 3) que visão de futuro orientava a ação de cada um dos diferentes atôres?
Como permanecia o desejo de esclarecer as relações existentes entre espaço e poder presentes na produção do espaço real, minha mudança da COGEP para o Campo Limpo alterou não somente o meu olhar: de um grande número de informações disponíveis para novas e inusitadas bases, de representações abstratas para personagens concretas. A reconstrução histórica necessária à análise de São Miguel, também seria necessária na Chácara Santana, entretanto a possibilidade da reconstrução histórica poder ser realizada em tempo real, com os personagens vivos sendo interlocutores diretos, permitiria-me uma maior identidade com a arquitetura, sem constudo perder suas bases geográficas.
Epílogo: A idéia das etnoarquiteturas
Três referências são fundamentais para se compreender o conceito:
A primeira, é a metáfora da ostra, que foi utilizada por Henry Lefebre na sua Introdução à Modernidade 5: o espaço humano é apresentado como uma ostra - o resultado da relação permanente e indissolúvel mantida entre o molusco e sua casca ;
A segunda, é a definição que Milton Santos introduz na sua Metamorfoses do Espaço Habitado 6: o espaço sendo formado por dois componentes que interagem continuamente: a) a configuração territorial, isto é, o conjunto de dados naturais, mais ou menos modificados pela ação consciente do homem através dos sucessivos "sistemas de engenharia"; b) a dinâmica social ou o conjunto de relações que definem uma sociedade num dado momento;
A terceira, são os critérios para a escolha de lugares "salubres" em territórios desconhecidos, como condição fundamental para a boa arquitetura, que Marcus Lucius Vitruvius faz constar nas suas Dez lições de arquitetura 7: aprender através da observação da vida da população nativa ou, na sua inexistência, eviscerar os animais capturados no sítio.
Aprendi, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, que a Arquitetura é a arte e a técnica de construir abrigos necessários à vida dos homens. Entretanto, ao invés de se estudar as arquiteturas que se constituíam em território brasileiro, resultados de processos histórico-culturais de seus grupos humanos, cultivava-se as arquiteturas de autores, principalmente estrangeiros. Com isto, as análises que se limitavam exclusivamente às representações arquitetônicas (plantas, cortes, elevações e perspectivas) ilustradas por fotografias das realizôes em questão, privilegia as formas constitutivas em detrimento da compreensão do abrigo inteligente e sua efetiva significação nos processos culturais em curso.
Etnoarquitetura é o conjunto, material e simbólico, das estruturas espaciais que cada grupo social edifica para abrigar a sua vida cotidiana (ou partes dela), adaptando-a sucessiva e crescentemente ao território em que ele escolheu viver. Situada no universo da cultura, o conjunto de elementos materiais que a compõe (localizações, materiais, estruturas e formas historicamente utilizadas) é articulado pela inteligência e pelo habitus , para abrigar fisicamente a existência do grupo. Por constituir-se também no seu universo simbólico e identitário, possibilita/constrange a vida cotidiana do grupo bem como a de cada um dos indivíduos que o integram. Sendo uma síntese adaptativa da vida de cada grupo humano a cada lugar, esta diversidade cultural permaneceu encoberta, em decorrência da utilização generalizada do conceito de habitat 8- seu equivalente biológico. Entretanto a diferenciação contrastiva entre os dois conceitos permite evidenciar que a etnoarquitetura é elaboração espacial da inteligência humana (observação, experiência e memória) enquanto o habitat é decorrência de um padrão biológico inscrito no genoma de cada espécie viva.
A identificação, num território desconhecido, do lugar adequado onde edificar o abrigo necessário à vida dos homens, é um problema enfrentado de longa data pela humanidade. Desde a tradição clássica, recomenda-se que ele deva ser aprendido com as populações originárias ou, na sua inexistência, através da observação cuidadosa e de análises criteriosas das vísceras dos animais que nele vivam 9. Foi portanto deste ponto de partida que o engenho humano materializou, ao longo do tempo, o mundo que hoje conhecemos: edificando em todos os lugares - sempre através do habitus 10- as sínteses inteligentes de adaptação máxima possível de cada ethos 11 a cada topos 12, consideradas sempre realizações da cultura . Estas construções que constituem a diversidade do espaço humano no mundo, permitem identificar/diferenciar etnicamente cada grupo humano, particularizando a estrutura e a forma espaciais do seu afeiçomento à paisagem do seu território (e vice-versa).
Nos seus movimentos migratórios, os grupos étnicos sempre carregam consigo as suas tradições culturais. Estas serão adaptadas, no limite possível, ao espaço receptor. Entretanto, no que tange à migração etnoarquitetônica, ela será sempre problemática. Ao ser transferido todo um ethos, a natureza tópica existente na origem e que fundamentou a elaboração da etnoarquitetura original, será necessariamente uma outra natureza, no território de destino. Com isto, uma desadaptação inicial ocorrerá, promovendo maiores ou menores consequências à natureza de destino e ao ethos original, que a dinâmica cultural buscará equacionar no tempo.
Além disto, a maior ou menor visibilidade das etnoarquiteturas imigradas - que irá evidenciar a sua inclusão no território receptor - dependerá das condições de uso e ocupação do solo, pré-existentes ao momento em que a instalação ocorra.
A utilização do conceito de etnoarquitetura de imigração , esclarece que as enchentes que assolam a região do Médio-Vale do rio Itajaí-Açú/SC, diferentemente do que se pensa, não são catástrofes naturais. São acontecimentos historicamente produzidos pelo projeto de colonização empreendido por Otto Hermann Blumenau, associado à instalação de famílias de colonos alemãs e italianas que para ele se transferiram.
Este é um resultado parcial dos estudos que venho realizando sobre a região do Vale do rio Itajaí-Açú, na perspectiva da sua Formação Socioespacial 13.
Referências Bibliográficas
GUIDONI, Enrico - La Arquitectura Primitiva - Colección Historia Universal de la Arquitectura - Madrid: Aguilar, 1977.
LEFEBVRE, Henry - Introdução à modernidade- Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
SANTOS, Milton - Sociedade e Espaço : Formação Espacial como Teoria e como Método in Boletim Paulista de Geografia n*54 - São Paulo: 1978
_____________ - Metamorfoses do Espaço Habitado - São Paulo: Hucitec, 1988
VITRÚVIO, Marco Lúcio - Los Diez Libros de Arquitectura - Barcelona, Obras Maestras, ( s/d )
NOTAS
1Apresentação do livro de Guidoni , Enrico - Arquitectura Primitiva - Madrid: Aguilar, 1977
2 O Padre Hohr, fui o responsável pelas pesquisas arqueológicas iniciais, realizadas em Santa Catarina. Foi fundador do Museu do Homem do Sambaqui - um dos acervos significativos da arqueologia brasileira - e que hoje, em sua homenagem, tem o seu nome.
3 Foi durante este període que, estimulado pelos meus alunos, iniciei o amadurecimento da idéia de etnoarquitetura. À época, realizando estudos da genealogia das casas das suas próprias famílias, encontravam traços identitários subsistentes no tempo. A noção de espaço familiar daí decorrente, parecia convergir para a de espaços étnicos.
4 A idéia, que constitui-se como a chave atual dos meus estudos, encontra-se desenvolvida na página 9.
5A cidade nova , in Introdução à Modernidade .
6Da teoria à prática : um modelo analítico in Metamorfoses do Espaço Habitado .
7De la elección de lugares sanos in Los Diez Libros de Arquitectura
8Conceito originalmente desenvolvido pela Biologia , que relaciona a vida aos seus ambientes propícios . Sua utilização generalizada - inclusive como título da Conferência Mundial que se realizou em Istambul em 2000 - é problemática. Nas Ciências Humanas, deve ser evitado o seu uso, particularmente nos estudos do espaço humano.
9Marcus Vitruvius Polio (90-35aC), na sua obra 10 Lições de Arquitetura , dedica parte significativa do seu primeiro livro , à Escolha do Terreno São .
10Na acepção de Pierre Bourdieu , significa o traço cultural de permanência no tempo dos valores culturais de um grupo humano, que não pode ser dissociado do conceito de campo ( permanência espacial).
11 Utilizo a palavra grega ethos - que significa totalidade cultural determinada - no sentido de diferenciar a realidade cultural do grupo étnico original
12 Utilizo a palavra grega topos - que significa totalidade espacial - no sentido de diferenciar a localização espacial, enquanto totalidade .
13 Perspectiva teórico-metodológica que adoto e que vem sendo desenvolvida por Milton Santos, a partir da publicação do artigo Sociedade e Espaço : Formação Espacial como Teoria e como Método (1978) até a sua última obra publicada: O Brasil: território e sociedade no início do século XXI (2001).
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