QUANDO SE SENTIR NATIVA É UM PROBLEMA*
Lígia Dabul**
RESUMEN
Neste trabalho pretendo descrever e refletir sobre uma situação limite de observação participante: ao freqüentar a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, importante escola de artes do Rio de Janeiro, Brasil, para pesquisar a constituição de identidades de artista junto àqueles que começavam a envolver-se com a chamada arte contemporânea, deparei com total familiaridade com meu objeto. Diferente de todas as outras experiências de pesquisa que havia tido, tal como relatam diversos antropólogos que trabalham em área urbana, agora meu pertencimento era dado. Relacionava-me com indivíduos brancos, não pobres, e havia predominância de mulheres, muitas da minha faixa etária. Ao longo dos dois anos de investigação, ocupei lugares sociais já constituídos, todos eles viabilizadores das tarefas de pesquisa e da inserção necessária para a observação que pretendia fazer: freqüentadora do Parque Lage, pesquisadora, aluna de pintura. Além disso, pesquisava (e assim me interessava) o mundo da arte, crédito para ali estar fazendo o que fazia. Decorria destas cômodas posições a sempre incômoda sensação de nada estranhar, a disposição de aderir ao sociologizado discurso de diversos daqueles atores sociais atestando minha dificuldade de ultrapassar a teoria nativa (minha também) a respeito de aspectos cruciais do objeto que pretendia construir.
À dificuldade de estranhar somava-se a de acionar uma teoria da pesquisa que desse conta desta circunstância de sentir-me nativa, e dos tantos empecilhos para a investigação que percebia e antevia dela decorrer. Ao lado de intenso esforço de compreensão das relações sociais que estabelecia, do lugar social que ocupava e das facilidades que experimentava, apropriava-me contrastivamente de minhas experiências de trabalho de campo anteriores, e de outros antropólogos. O controle da familiaridade, e, assim, a constituição do estranhamento necessário para a pesquisa antropológica, contudo, só teve lugar ao experimentar uma fugaz situação de desinserção: quando, ao começar o curso de pintura, senti os constragimentos de não saber pintar, a condição, sempre passageira, de aluna novata, propiciando um lugar de onde podia então perceber múltiplas e nem sempre simpáticas maneiras dos indivíduos praticarem a pintura juntos e conviverem naquele ambiente, e as condições para que, em tão pouco tempo, voltasse a experimentar a familiaridade. Só que agora com controle, e num contexto prazerozo mas não mais de harmonia. O relato desta experiência de desinserção, e a sua importância para que pudesse observar aspectos do objeto e chegar a determinadas formulações sobre ele, constituem o eixo deste trabalho.
"Imagine-se de repente desembarcando, rodeado por todo o seu equipamento, só, numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa, enquanto a lancha ou bote que o trouxe se afasta até desaparecer no horizonte". [1] Foi o que demorei muito a imaginar nos numerosos desembarques que fiz no Parque Lage, no Jardim Botânico, Rio de Janeiro, a partir de meados de 1995, quando comecei a levantar dados sobre os alunos da Escola de Artes Visuais (EAV) que lá funciona desde 1975 para uma pesquisa sobre a constituição de identidades de artista. Já havia participado de um conjunto muito grande e variado de eventos e encontros naquele lugar, e pessoas de diversas redes de relações [2] nas quais estou incluída, freqüentaram ou freqüentam aquele espaço, seja como alunos ou professores da EAV, seja, o que é mais corriqueiro, como meros e eventuais transeuntes, do próprio Parque [3] ou da Escola, como eu.
Nada incomum utilizar o espaço do Parque, ir a uma peça apresentada ali, um show, a uma leitura de poemas, saber de uma palestra interessante, ou escutar (ou ler) histórias do ocorrido na década de 70 envolvendo figuras públicas e da vida privada [4] . Reconhecer cartazes já vistos noutras paredes, encontrar conhecidos dos mais variados lugares, passar e cumprimentar ou sentar para beber cerveja na cantina, de alguma maneira localizar-se ali não é difícil. É um espaço público, de circulação e rotatividade intensas, e por isso existem as mais diferentes formas e níveis de localização, dependendo do que é acionado para tanto dentre as inúmeras possibilidades que se oferecem para um conjunto significativo de pessoas. E, para muitas delas, estar ali é o evento.
Acredito que todas as pessoas que circulam naquele espaço gostam das artes visuais. Mas, como eu, boa parte não chega ali de modo direto por conta disso, passando rápido por, mas sem evitar por completo, exposições e eventos deste tipo, numerosíssimos e com freqüência comentados pela imprensa e por artistas plásticos do Rio. Os próprios trabalhos [5] dos alunos que sempre ocupam paredes e pontos em torno da piscina que centraliza o pátio interno da antiga mansão dos Lage (prédio onde funciona a maior parte das atividades da EAV), alguns confeccionados justamente neste espaço público, podem não deter o transeunte. Mas ilustram a "natureza", convergência simbólica, daquele lugar: é um lugar de artistas. Mais exatamente, do que chamamos de artistas plásticos, artistas que produzem objetos [6] . Mesmo a família de turistas, atraída por mais um parque do Rio de Janeiro, ao passar pela cantina se dará conta disso.
Quem apenas consome eventos e de modo muito irregular e pontual tangencia as redes sociais de artistas plásticos daquele lugar, poderá estabelecer uma continuidade entre aquele centro, o prédio da antiga mansão, e o espaço do parque propriamente dito, local (externo) de lazer, da passagem, do anônimo impessoal de perto da rua, mas que é englobado por apresentações, atividades de cursos e eventualmente exposição de objetos artísticos, seu transporte ou confecção. Intuirá também, talvez, outros espaços internos à antiga mansão, por onde artistas ou pessoas envolvidas em atividades artísticas se embrenham. Haveria outros espaços não tão públicos e "mais artísticos". É possível, passando por ali, procurar um amigo numa das muitas salas de aula, antigos cômodos da residência dos Lage, mas nunca havia tido por que me demorar numa delas.
Quem só transita por ali por conta de encontros e eventos terá provavelmente como pouso a cantina, ou, mais precisamente, uma das mesas de bar dispostas ao fundo do pátio, perto da entrada da biblioteca, e na área próxima aos telefones públicos [7] . Dali verá quem entra e sai do prédio e a circulação de pessoas no pátio interno; encontrará conhecidos e as pessoas e coisas desse lugar de artistas: três jovens comentam cada pedaço da tela que uma quarta jovem segura, alguém toca violão, um homem lê um livro ininterruptamente, e numa outra mesa um grupo de pessoas de diferentes idades conversa e ri muito alto. É nesta área que se constitui, para um freqüentador bem eventual, o "ambiente" do Parque Lage e sua composição múltipla e diferenciada. Partindo da cantina e estendendo-se até a borda da piscina, neste pátio interno poderão ser atualizadas por um momento diferentes relações sociais referidas a redes constituídas noutro tempo e lugar, e em função de atividades não identificadas como artísticas. Quando se está inserido no Parque Lage a partir destas relações não associadas de modo direto a práticas artísticas, é difícil a localização dos artistas: afora um ou outro que por alguma razão está incluído em alguma rede social da qual participamos, ou possui uma popularidade que ultrapassa o "ambiente" do Parque Lage, só aqueles que explicitam seus trabalhos, materiais e equipamentos, ou sua condição de professores, é que podem ser aproximados do que em geral computamos como artistas.
Quando, em meados de 1995, fui levantar dados sobre os inscritos nos cursos oferecidos no Parque Lage, tive que fazer outro percurso. Pela primeira vez me dirigi à secretaria, e depois à contígua sala da direção para solicitar à diretora substituta acesso às fichas de inscrição dos alunos do primeiro semestre daquele ano. As fichas foram aos poucos retiradas da secretaria e compulsadas na biblioteca da EAV, e passei a ir com regularidade ao Parque Lage, também para conversar com conhecidos professores ou alunos, com a diretora substituta e com o coordenador de ensino. E observava o que seria a provável arena do meu trabalho de campo.
Aquele não é apenas um lugar de artistas. É também um lugar administrado por artistas. Vinculada à Secretaria de Cultura e Esportes do Governo do Estado do Rio de Janeiro, a EAV é uma enorme escola de artes, promove atividades e regula os eventos ali produzidos, responsabilizando-se formalmente por eles. No começo de 1995 foram abertas 76 turmas, pela manhã, tarde e noite, com uma ou duas aulas semanais, algumas poucas aos sábados. [8] Muitos eventos foram promovidos nessa época: exposições de pintura, debates, lançamentos de livros, apresentações de vídeos, peças teatrais etc.
A EAV "localiza-se" no prédio da mansão, e estende-se fisicamente por todos os seus numerosos cômodos, reapropriados como biblioteca, salão de exposições, salas de aula, inclusive subterrâneas, no subsolo do prédio, e por oficinas que funcionam em antigas construções ou em galpões levantados mais recentemente na área exterior ao prédio. O "ambiente" do Parque Lage abrange lugares menos expostos, como a secretaria, para onde interessados nos cursos da EAV dirigem-se em primeiro lugar e alunos regularmente para quitar mensalidades, a sala da direção e as salas de aula.
Não são mais artistas os que circulam junto aos freqüentadores eventuais. Fala-se em professores e alunos, por vezes em funcionários. O que me aparecera de maneira vaga como grupo de artistas, apresentou-se depois como grupo de professores da Escola, com graus distintos de autoridade, responsabilidade e investimento no que seria uma instituição, uma escola, e que centralizavam uma determinada visibilidade do que ocorre naquele espaço, e da existência mesma daquele espaço. Por conta do levantamento que então fazia, e das conversas com o coordenador de ensino e com a diretora substituta, a categoria alunos passa a constituir-se como empiricamente observável e sociologicamente relevante, ligada que estava à existência de uma escola e da própria agregação daqueles artistas, agora professores da EAV. Artistas plásticos em formação, categoria que usara na arquitetura do projeto de pesquisa, aparecia como equivocada aproximação do que na realidade seriam alunos em profissionalização.
Nesse curto espaço de tempo, apresentando-me periodicamente, interessando-me pelos cursos e seus participantes e deslocando-me para lugares do Parque Lage pelos quais não havia ainda transitado, pude perceber outro espaço, relacionado à própria existência da EAV. Aquilo que eu localizara de modo vago como o "ambiente" do Parque Lage, simplesmente cerrava o foco numa "praça" (o tal pátio interno, na área em torno da piscina) que, de fato importante para as múltiplas relações sociais construídas e/ou ratificadas no Parque Lage, consistia em apenas um dentre outros lugares onde redes de relações de artistas e de pessoas voltadas para atividades artísticas eram cotidianamente constituídas, como a sala da direção da EAV e as salas de aula. E se olhada a partir da sala da direção, ou de uma das mesas que eu agora ocupava na biblioteca, aquela "praça" passava a estar vazada por uma linha que separava freqüentadores eventuais das pessoas que eram "dali". E o que de fato me surpreendia era a demasiada familiaridade que ainda assim experimentava naquele "ambiente" agora mais precisamente categorizado. Afinal, era recente e superficial minha introdução, o ter o que fazer, nesse lugar que diferenciava o freqüentador eventual não envolvido diretamente em atividades artísticas próprias dali. Os meros consumidores de eventos e do "ambiente" do Parque Lage -- o vago "público" englobado pelo mundo artístico de Howard Becker [9] -- os consumidores na realidade só eram vistos caso a "praça" fosse olhada a partir de algum ponto fora dela.
Conhecer e introduzir-me naquele redefinido "ambiente" não o tornava menos familiar. Era demasiado familiar e não apenas frente ao que pensava ser a familiaridade necessária e suficiente para a pesquisa que pretendia fazer. Tratava-se de uma situação pesadamente familiar, mais que tudo, se comparada a outras situações em que o estranhamento era item auto-evidente e fundamental da pesquisa ou trabalho que eu fazia, como junto a moradores do morro do Borel, junto a posseiros da Fazenda Santo Antônio, em Xerém, Duque de Caxias (RJ), e junto a jovens ex-alunos da antiga FUNABEM, com quem convivi cotidianamente e por um período prolongado.
Já nas primeiras conversas e no levantamento de dados quantitativos para a pesquisa, pude estranhar um conjunto grande de constatações que aos poucos ia fazendo, para encampá-las em seguida como extremamente naturais. Surpreendi-me, por exemplo, com o fato de haver então, no primeiro semestre de 1995, cerca de 700 pessoas inscritas nos cursos oferecidos pela Escola de Artes Visuais e de não se tratarem de jovens saindo da adolescência, beirando ainda a maturidade, como eu supunha ser o grosso dos alunos. Deste enorme conjunto de inscritos, nada próximo à noção de minoria que sempre associei a ambientes não escolares de artes plásticas, boa parte passava dos trinta anos, havendo mesmo uma incidência grande de pessoas na faixa dos quarenta e cinqüenta anos, mais até que de crianças, público que antes tomava como numeroso relativamente. Encampar essas constatações não mexia em nada da minha sensação de pertencimento àquele ambiente. Era como se estivesse construindo uma vaga abstração que não mudava substancialmente o significado para mim de um espaço social que em todos os momentos me aparecia como já conhecido e pelo qual ia transitando sem aparentes problemas.
Tentava acionar minhas antigas experiências de trabalho de campo e as lições que tinha conhecido sobre estranhar o familiar como condição da investigação antropológica. Nesta retrospectiva, percebi que muito mais facilmente, naquelas experiências anteriores, havia tratado de admitir a diferença, tornando-a familiar, a familiaridade resultando de uma incorporação paulatina que supunha sem dúvida uma inserção minha também paulatina em faces importantes do cotidiano dos atores sociais junto aos quais estava pesquisando. E, mais que isto, a familiaridade tinha duas pontas: ela só era obtida quando um lugar social no qual eu pudesse ser localizada era construído por estes atores sociais após um convívio tal que, não apenas alguma intimidade, mas uma confiança mútua estivesse claramente instituída. Esta confiança supunha, naqueles casos, meu envolvimento em alguma luta desses atores sociais para o atendimento de reivindicações importantes para eles: garantia da posse da terra, acesso à escolaridade, a emprego, superação de estigmas e outros direitos civis.
Junto ao meu grupo social, eu tentava então formular, naturalmente o dado não era o estranhamento, mas a familiaridade. Além de ser um "ambiente" composto sobretudo por moradores brancos e não pobres da zona sul carioca, havia visível (nos dados quantitativos relativos a inscritos nos cursos, e na própria observação direta) preponderância de mulheres, e da minha faixa etária. Mas transformar esta familiaridade em algo a ser observado, o que exigia ser colocada como objeto e assim em algum momento e nível estranhada, além de um intenso exercício intelectual, demandaria um investimento em convivência, para a observação etnográfica, que nunca imaginei ser tão necessário.
Ao contrário do que havia experimentado antes, ter algumas hipóteses de trabalho já construídas para verificá-las com os dados passou a ser instrumento crucial para a pesquisa. Isto porque, não havendo estranhamento, o que tendia a fazer era um tipo de crônica e não exatamente anotações de campo. E minha impressão era de que anotaria tudo para poder anotar alguma coisa, e assim as tais hipóteses na verdade não eram apenas instrumentos de confronto de formulações com os dados, mas de organização mesmo de minha observação, de economia da pesquisa. Uma espécie de defesa contra perguntar e observar tudo por não haver muito a ser perguntado e observado. Não sentir diferenças sociais, estranhamentos importantes, colocava-me na incômoda situação de não ter (ou ter que ter) uma posição política que me auxiliasse tanto na construção de um lugar social onde me incluísse com certa harmonia, como na armação de um ponto de vista a partir do qual pudesse observar diversos níveis da vida social que o "senso comum" ou o "olhar dominante" por certo velavam. Não raro antes, noutras experiências de trabalho de campo, havia utilizado o recurso, meio bachelardiano, meio marxista, de tentar destruir equipamentos conceituais submetendo-os à questão do quanto poderiam estar encobrindo a realidade vivida pelos atores sociais junto aos quais pesquisava, porque supostamente construídos a partir de lugares sociais associados a interesses diferentes ou mesmo antagônicos em relação àqueles que estes atores sociais aos poucos apresentavam como os seus. [10]
Agora não: dos amantes, dedicados ou menos apaixonados, das artes visuais, aos artistas/professores da EAV, havia apenas graus, em alguns dos quais (os intermediários) alunos estariam distribuídos. Em diferentes graus de proximidade com as artes visuais, talvez de exercício do gosto, talvez de dedicação a elas, havia sempre um suposto que justificaria alguém estar ali, interessar-se pela EAV, entrar literalmente nela, ainda que fosse apenas observá-la, estudá-la: gostar das artes visuais, ou daquela praticada e valorizada no Parque Lage. Existia este crédito básico que não só garantia poder estar mas também legitimava o fato de se estar ali. Nesse momento em que já conhecia e localizava um conjunto maior de pessoas que participavam de atividades da EAV, localizava também sinais de concorrência entre alunos, entre professores, e entre estes e outros artistas consagrados, divergências quanto ao modo como concebiam e avaliavam estratégias de organização e funcionamento da EAV, e quanto à própria definição de estratégias de ensino. Não importa que tratamento eu estivesse imprimindo a estas constatações e os eventuais posicionamentos que eu pudesse ter, por vezes externando-os, a naturalidade de minha inserção era dada todo o tempo. Não resultavam em qualquer espécie de variação na familiaridade que sentia em relação àquele "ambiente" e no desenrolar do meu progressivo pertencimento.
Poderia ocupar, sem o menor estranhamento, ao invés, com consentimento, lugares já estabelecidos como adequados e próprios para minha inserção. Assim era que, se apenas freqüentasse o Parque Lage, mais uma freqüentadora seria. Se me colocasse como pesquisadora, "naturalmente" seria incorporada como tal, tantos outros estudos do Parque tendo sido feitos, inclusive um em antropologia social, recentemente [11] . E se me matriculasse num curso de pintura, aluna da Escola me tornando, mais um aluno com trajetória demarcada - aprender a pintar, simplesmente, como tantos a cada semestre se dispunham a fazer, ou tentar aos poucos, com razoável esforço e talento, uma "profissionalização", o que era bem menos comum, e, no meu caso particular, muito pouco provável.
Dessa forma, da questão do papel a ser exercido no grupo pelo pesquisador não decorria a de como construí-lo ou a de como ocupá-lo, simplesmente porque já havia papéis pré-definidos e não incompatíveis com os interesses de pesquisa. Na verdade, transitaria por aqueles lugares, sendo este o único deslocamento social que eu podia visualizar então como derivado de estar ali por conta da pesquisa. Não precisaria "fingir papéis" para ser aceita e poder observar o que quisesse, o anúncio do vago interesse pela "formação do artista plástico" ou pelo "significado das artes plásticas para quem se inscreve num curso da EAV" servindo como abertura (ou cobertura) e jamais como impedimento para ali estar compulsando fichas, conversando, perguntando e anotando.
Ao contrário de preocupações em torno do como introduzir-me junto aos "nativos", e sua corolária, como não me "tornar nativa", colocava-se a de conseguir compreender e problematizar o fato de sentir-me nativa. E por quê: era necessário continuar qualificando as diversas camadas que viabilizavam de modo tão flexível aproximações sociais de um "ambiente" voltado para a prática das artes plásticas. Como certo eu apenas tinha que, dada a facilidade da inserção, fosse qual fosse atualizava uma posição social já dada, e que a obviedade desta inserção, num lugar de "portas abertas", confirmava pontos de vista já constituídos acerca das artes plásticas.
Na própria universidade há uma disposição para que seja valorizado qualquer tipo de atividade ligada à arte, incluindo a pesquisa sobre práticas artísticas. Diversos estudos apresentam e analisam evidências de que a propensão para valorizar determinados tipos de arte é constituída socialmente, e de como naturalizar a existência desta disposição é suposto para que sejam atualizados mecanismos de distinção social. O que chamamos de ambiente social, o Parque Lage, no qual valoriza-se de modo intenso a apreciação e a produção das artes plásticas, aparece diluído como ambiente que localiza (e distingue) socialmente seus freqüentadores. Tomar a situação de pesquisa, e assim a própria situação de inserção, como objeto de pesquisa, carrega dificuldade adicional neste caso: o questionamento da proximidade do pesquisador em relação a esse ambiente pode revelar a função social desta proximidade.
A idéia de me matricular num curso de pintura já tinha sido aventada quando formulei o projeto da pesquisa. Tratava-se de investigar a constituição da identidade social de artistas plásticos, enfatizando momentos e indivíduos em situações de não consagração. Num curso, conviveria com eles, já que, embora não exclusivamente, no Rio de Janeiro é para ali que se dirige número significativo de pessoas interessadas em iniciar-se na prática das artes plásticas e muitos artistas plásticos inserem-se em cursos da EAV antes de se profissionalizarem. Ao decidir e planejar minha participação em curso da Escola, é que percebi o quanto freqüentar o Parque poderia ser experiência distinta, que marcaria uma relação com um "ambiente social" no qual outros atores se envolviam de modo muito diferente. Isto é, junto ao meu grupo social, e especificamente em um ambiente dele (o Parque Lage) e a partir de uma determinada localização, é estabelecida uma continuidade entre a freqüência em eventos, a participação em cursos, e a construção de carreiras de artistas plásticos naquele espaço social.
Saber pintar, para quem não o faz, é tomado como extensão de algum dom, potencialidade, talento mesmo, que alguns de modo inato já teriam. Matricular-se num curso de pintura seria apenas continuidade disso. Aquele núcleo dos que aprendem e praticam a pintura não é percebido pelos de fora como excludente porque aparece como mero agrupamento, não marcadamente especializado. Afinal, o que ali é produzido é consumido, ou visto como passível de ser consumido, com certa facilidade se exposto aos que freqüentam aquele lugar. E também, ser aluno do Parque Lage é condição experimentada, como visto, por extenso número de pessoas das relações dos que freqüentam e matriculam-se na Escola de Artes Visuais. De outro lado, aprender a pintar ali é próprio de um grupo social, cujas características sócio-econômicas em parte delineei naquele trabalho com as fichas de inscrição dos alunos. Uma origem social comum, enfatizada com as inserções no que aqui estou chamando de ambiente, naturaliza os diferentes pertencimentos como graus distintos de inserção num mundo, o artístico. A impressão de não fronteira compõe a "liga" deste mundo, que abriga grupos altamente especializados cuja diferenciação só se apresenta para os não iniciados que se coloquem deliberadamente nesta condição. [12]
E assim foi. No começo de julho de 1996, planejando concretamente minha primeira aula em um dos cursos de iniciação à pintura, já tendo feito a matrícula, é que me perguntei: e os pincéis? Só estando no cotidiano de uma sala de aula da Escola é que a questão teria sentido. Apenas a partir desse lugar, entre sala afora e sala adentro, é que poderia me perguntar sobre e buscar o que não fosse apenas complemento às minhas indagações e "achados" já assentados. Afinal, possuir e saber manejar um pincel, algo acessório ou nem mesmo aventado por um tipo de freqüentador do Parque, ou algo óbvio para os que já pintam, estabelece uma diferença crucial entre os que pertencem e os que não pertencem, e como pertencem, a um grupo, só percebida pelos alunos inscritos e professores numa situação de cotidiano da prática da pintura.
Tudo o que aparece como natural para os alunos que regularmente freqüentam cursos na Escola, e que foi sendo para mim colocado como natural, naquele momento me causou profundo estranhamento. Não possuir nem saber manipular o material básico de pintura situava-me como excluída daquele mundo artístico: freqüentar eventos artísticos instituía um lugar de público, se assim podemos denominar esta parcela de consumidores dos eventos e dos produtos materiais e simbólicos da Escola de Artes Visuais que não entram diretamente na sua produção.
Como vimos, H. Becker insere este público no seu mundo artístico. Contudo, já convivendo com o flutuante grupo de 15 ou 20 pessoas que duas vezes por semana se encontra à noite numa sala de aula do Parque para, sob a supervisão de um professor, pintar, percebi o quanto o interesse pelas artes plásticas e algum equipamento formal para a compreensão das artes plásticas contemporâneas não bastavam para a inserção naquele mundo. Se é possível pensar nesses espectadores como membros naturais de um mundo social específico, caracterizado por relações sociais, interesses próximos e origem social também comum, há certamente um limite dado pela própria manipulação (e por uma linguagem bastante especializada a respeito) de materiais, técnicas, problemas, e das histórias singulares de produção artística dos membros daquele grupo de alunos. Algo como uma comunidade de iniciados, que sabe da necessidade de um avental e como misturar tintas, produzir tons e até a gama de cores, pode ser visualizado com a tentativa, e talvez somente nesta situação, de ser um membro dela.
O próprio Howard Becker (1977a) sublinha que qualquer trabalho etnográfico contempla os interesses, ou ao menos o ponto de vista, de apenas um dos "lados" da realidade social investigada. Aponta, mais que a impossibilidade de se chegar a uma neutralidade nos resultados da pesquisa, o compulsório posicionamento que marca toda investigação. Becker não explora a visibilidade possivelmente diferenciada que cada ponto de vista viabilizaria da realidade estudada. Esta questão, como já assinalei, teve importância crucial nas experiências de trabalho de campo que levei a cabo noutros momentos. De qualquer modo, enfatiza o problema: de que lado estamos? Dessa vez, pergunto-me sobre estar dentro ou fora.
A essa liminaridade, ao estar entre dentro e fora de uma situação a ser pesquisada, na verdade experiência decisiva e baseada numa muito provisória "desinserção", pode ser creditada, nesta investigação, relevância próxima à da fuga da polícia numa briga de galos em Bali, relatada por C. Geertz (1978b:278-283). Só que para Geertz, ao contrário, o acontecimento, e a conseqüente configuração de um nível de pertencimento do pesquisador, viabilizou relações com a população que lhe abriram acesso a diversas informações sobre a vida naquela aldeia. No meu caso, foi justo um evento que suspendeu de modo fugaz o pertencimento que abriu acesso à construção de dados importantes a respeito dos atores sociais cuja prática pretendia observar.
Acredito que a pergunta sobre os pincéis pôde ser feita e valorizada por conta do estranhamento da familiaridade, cabível em grande medida porque havia experimentado aquelas outras situações, tão diferentes desta, de inserção social cujo controle era compulsório dado o tipo de trabalho que fazia. Mas atribuo a colocação da pergunta, e sobretudo seu peso nos desdobramentos da pesquisa, à necessidade (e dificuldade) de defini-la em termos metodológicos e às escolhas dos itens de observação que ia fazendo à medida que submetia o objeto de estudo a novas construções.
Partia então do assentado. Como vimos, tinha como certo que aquela síntese de observação e participação era mais que a superposição de papéis derivados de práticas necessárias à pesquisa que pretendia fazer, e que os maiores obstáculos para a tarefa de observação viriam da facilidade e da naturalização da participação integral, como freqüentadora do Parque Lage, como observadora, e/ou como aluna de pintura. [13] Contava também com o fato de que necessariamente interferiria no objeto, em especial se me inserisse numa turma de pintura, o que ocorreu e confirmou estas suposições. [14]
Não só interagiria de modo intenso e prolongado com os atores sociais cuja prática observaria, mas minha própria prática seria objeto de observação - e não apenas por compor a situação social de obtenção de dados, o que vasta literatura aborda. Eu me submeteria no curso de pintura, e sem os problemas e o esforço de inserção tão tratados na literatura antropológica voltada para a observação participante, à mesma experiência de parcela significativa da turma que observava, que, como eu, ao iniciar o curso não tinha formação anterior em pintura ou área afim. Esta tranqüila e privilegiada posição me fornecia as mais fortes obviedades relativas aos principais itens da prática da pintura, àqueles cuja observação e análise poderiam constituir a contribuição efetiva deste trabalho. Assim, a máxima inserção do pesquisador não garante o aproveitamento do leque de campos de observação aberto e a ser explorado. Ao invés, quanto mais inserido tende a naturalizar muito mais forte e rapidamente os supostos, relações e práticas que justamente fundamentam o lugar social que sustenta sua inserção.
Assentado também tinha o quanto a teoria interfere, define mesmo a observação. Estava sensibilizada o bastante sobre a importância de deslocar o foco do objeto artístico para poder apreender as práticas voltadas para a sua produção. O que não tinha como estabelecido era uma teoria da observação que se aplicasse àquelas circunstâncias. Agarrar-me à situação fugidia de não dispor de um pincel, à possibilidade de "fuga" daquela turma, funcionou como anteparo em primeiro lugar à tendência de não observar as implicações, digamos, negativas da completa e imediata inserção para a observação. Uma delas, pesada nesse caso, era tomar como dada a inserção.
Naquela pesquisa, todas as (poucas) dificuldades de inserção foram basicamente as que qualquer aluno vivenciaria. Estava desinserida em relação a uma turma de pintura. O conjunto de atores sociais para o qual seria aluna de pintura do Parque Lage estendia-se até aos seguranças que sempre vemos perto da rua. Se com um avental, ou a mão suja de tinta, na cantina do prédio da EAV assim seria vista. Na turma o grau de inserção de um aluno novo é construído na sua permanência ali interagindo com os demais alunos e com o professor, e pintando. O lógico destas duas situações (pintar e participar de uma turma de pintura, constitutivas da estratégia de observação escolhida) é suspenso quando não sabemos pintar e não localizamos ninguém naquela hospitaleira e estranha turma onde um conjunto de alunos encontra-se para pintar duas vezes por semana, nunca sua composição sendo a mesma de uma aula para a outra. É por meio de contínuas atualizações das relações estabelecidas com os demais alunos, sobretudo com os que se localizam próximos para pintar e têm tempo semelhante de pintura, o que muitas vezes coincide, e com o paulatino enfraquecimento da tensão em torno de suas possíveis avaliações e as do professor sobre como e o que pintamos, que temos a impressão de sermos de fato da turma.
Valorizar esse lapso da lógica da inserção tornou-se ferramenta importante para perceber que, mais que amostra interessante, aquela turma era unidade sociologicamente relevante para a construção dos processos de identificação do artista plástico. Além de foco de relações sociais que produziam o significado de se estar ali pintando, aquela turma de pintura agregava os atores sociais que diretamente interferiam no que de modo genérico chama-se de formação do artista plástico. Em que pese a enorme autoridade atribuída pelos alunos ao professor na avaliação de a quantas andavam o aprendizado e a produção de cada aluno, era em relação às avaliações e comportamentos ligados às práticas de pintura dos colegas que um aluno em boa medida conformava os seus.
Tomando como referenciais muito palpáveis os meus, perguntei-me sobre o que estabeleci como certo poucos meses após minha primeira aula: poder pintar, acumular material de pintura, saber manejá-lo, comportar-me mecanicamente para tanto. Não havia nada de natural nestas "aptidões" (boa parte delas são exercitadas), nem seriam homogêneas naquela turma. Todos teriam seus pincéis, manipulados e multiplicados com o tempo. Mas alguns já começavam o curso com eles, e havia modos variados de segurá-los, havia tipos diferentes de pincéis que iam sendo aos poucos adquiridos pelos alunos. Alguns não pintavam mais com pincéis. Utilizavam espátulas, pás, rolos, esponjas. Diferentes tipos de tintas eram espalhadas sobre suportes, contidas em diferentes embalagens, dispostas em diferentes bases. Estas distinções associavam-se ao tipo e ao tamanho de pintura que produziam, aos movimentos que empreendiam para confeccioná-la, à extensão do espaço que ocupavam, e ao lugar da sala, ou fora dela, em que se punham para pintar.
Observei que muitas das diferenças entre os alunos tinham relação com o tempo em que estavam no curso, e ao tipo de experiência em pintura anterior à sua participação nele. Havia alunos que se submetiam aos exercícios, e paulatinamente iam adquirindo maneiras de pintar muito parecidas, enquanto outros não conseguiam literalmente fixar uma tela na parede como a maioria da turma, ou deixar de produzir sempre alguma figuração. Novas perguntas me levaram a perceber que a possibilidade de investir numa carreira artística tinha relação direta com minúcias como o modo de manejar um pincel. Havia diferenciações cruciais relativas às áreas mais óbvias da atividade de pintura que demarcavam mesmo as condições dos alunos tornarem-se artistas. Minava-se a simpática categoria alunos em profissionalização, que mal começava a usar e que me distraía dessas distinções.
Não possuir um equipamento de pintura suprimia a chance de aprender um saber fazer necessário para significar algo. Todos os que não tinham uma experiência em pintura, ao iniciarem o curso pretendiam aprender um número limitado de técnicas que viabilizariam a comunicação de um número ilimitado de significados por meio das pinturas confeccionadas. Os que já pintavam teriam acesso justamente a orientações técnicas que permitiriam comunicar melhor, ou mais. Todos pensavam ter o que dizer, ou ao menos que passariam a tê-lo ao saberem pintar. Percebi que, ao contrário do esperado pelos alunos, esbarrava-se ali em um repertório ilimitado de técnicas admitidas como interessantes, e em um conjunto muito reduzido de significados legítimos a ponto de poderem ou deverem ser comunicados. Mas havia a recorrência de certos modos de pintar, especialmente valorizados, tomados como espontâneos, e em que pese a existência de mecanismos de seleção do que devia ou não ser comunicado com uma pintura, alunos permaneciam atribuindo aos seus trabalhos e aos de colegas significados que para muitos deles e para o professor eram incabíveis para o tipo de pintura preconizada ali, a pintura contemporânea. Passei a enfocar a até então não colocada possibilidade de num curso de pintura serem constituídas capacidades diferenciadas de produção de significado, e comecei a investigar a relação desta diferenciação com os diversos modos de pintar que observaria ali.
Impunha-se sempre rever minha própria localização. Aos poucos venceria os exercícios, passando para a tela e depois desenvolvendo meu próprio trabalho, "etapas" que fornecem um dos eixos importantes de hierarquização dos alunos. Persistindo no curso, estenderia um tempo de pintura/curso para além do que perpassa aquelas etapas, denunciando uma inclinação para constituir uma carreira artística ou justamente limites que enfrentaria para tanto. Não ter tido uma experiência anterior de pintura colocava-me como apta para construir com o tempo uma carreira, e uma adesão paulatina ao modo de pintar preconizado pelo professor confirmaria esta possibilidade. Dentre outras coisas havia aos poucos abandonado a minúcia que no início do curso imprimia aos meus trabalhos, talvez o maior empecilho que experimentei para finalmente pintar com movimentação próxima à da maior parte dos alunos.
Medidas tomadas para viabilizar ou melhorar as condições de pesquisa por vezes criaram contradições em relação ao comportamento esperado de uma aluna com as minhas características. Por exemplo, o lugar da sala que passei a ocupar para pintar não era adequado, porque ali interagia com colegas "menos adiantados" que eu. Mas dali podia observar pontos da sala inacessíveis se me posicionasse junto à parede do lado esquerdo de quem entra, ou do lado de fora da sala, onde concentravam-se alunos "mais adiantados". Com eles havia participado de um curso de história da arte oferecido pelo professor, com aulas quinzenais cada vez na casa de um aluno. Agora interagia relativamente mais, portanto, com alunos novos ou sem condições de expor seus trabalhos, o que me relocalizava na turma.
Ficava também evidente a diferença do investimento que fazia nas atividades de pintura frente ao da maioria dos alunos. O tempo que mobilizava para pintar era exclusivamente o das aulas, e quando passei a freqüentar o curso apenas uma vez por semana, nos últimos seis meses de pesquisa de campo, demorava ainda mais a finalizar meus trabalhos. Medidas de economia de material, para mim bastante oneroso, adequavam-se à vagareza da minha produção, e determinavam mesmo um conjunto grande de decisões sobre o que e como pintar, acima por certo da média de restrições deste tipo operadas pelos demais alunos. Mas esta demora, colada a outros comportamentos inadequados ao que deveria ser minha posição na turma, explicitavam um não investimento de outra ordem, possivelmente associado ao fato, que anunciei a inúmeros colegas, de que estava participando do curso para "ver", "entender", "pesquisar" "como os alunos pintam", "aprendem a pintar", ou "como alguém torna-se artista". Eu não apresentava muitos sinais de preocupação com a exposição e com a aceitação dos meus trabalhos, o que o retardamento de sua finalização confirmava.
Nunca coloquei numa tela um chassi, estrutura de madeira, também chamada de armação, que alguns alunos utilizam já quando pintam seus trabalhos e que evidencia sua disposição de expô-los, porque condição para que possam pendurá-los em alguma parede. Como estava ali para a pesquisa, sujeitei-me ao grau mínimo de pressão para a aceitabilidade de meus trabalhos fora dali, esquivando-me das solicitações de pinturas, eventuais, de parentes e amigos, com a explicação de que minha pintura não era decorativa. [15] Ocorre que com isso reduzia muito a aceitabilidade de meus trabalhos também junto aos colegas, o que causou certos constrangimentos.
O que eu pintava parecia-me que aos olhos dos colegas era feio e/ou incompreensível, ocorrência difícil de apurar dada a enorme generosidade com que costumamos omitir ou explicitar opiniões sobre o que os colegas estão pintando. Era o silêncio acerca do que fazia que revelava o incômodo [16] , a ausência de manifestações dos alunos mais próximos sobre o que para mim, para o professor e para alguns colegas, pareciam ser trabalhos adequados ao desenvolvimento normal do meu próprio trabalho. Afinal, sempre pintei com intenso prazer e interesse, como todos os alunos, o que era para eles claro. O grau de tensão que encontrava para realizar certos trabalhos, costumeiro para outros alunos, devia-se ao fato de me impor algumas tarefas incompatíveis com o momento e o investimento no aprendizado de pintura, o que dentre outras coisas alargava minha já evidente demora para finalizar trabalhos. Abraçava uma idéia, que aos poucos concebia como conceito, tal como muitos colegas abraçavam relações entre cores e formas, tipos de pinceladas e texturas, a veiculação de sentimentos, a reprodução de uma imagem de uma foto ou recorte de revista, e minimizava os recursos para apresentá-la com a pintura. [17] E - pior - estas idéias referiam-se à própria arte, ou especificamente à pintura. Abraçava estas idéias porque menos comprometida com a aceitação de minha produção fora dali, porque manejando um conhecimento de história da arte razoável em relação à turma, e, por isso, porque aderira radicalmente a uma concepção de pintura preconizada pelo professor que colocava meu trabalho como passível de ser "lido" e de constituir uma linguagem pictórica.
Era dessa posição, com todos seus incômodos, que observaria as práticas de pintura dos alunos. E tentava saber de onde olho as "piscadelas", de onde redijo e contemplo o "texto" [18] . Constatar a predisposição de aderir a uma concepção de arte e a um modo de praticá-la experimentados com tanta rapidez e "naturalidade" como meus, dentre outros ganhos para a investigação, permitiu tratá-los como referidos a uma posição ali legitimada - a daquele professor e da EAV - mas não como os únicos nem tão poderosamente inculcados a ponto de serem adotados por todos que participam do curso. Nem os que já constituem ali carreiras artísticas aderem plenamente a estas concepções e modos de praticar a pintura. Suprimi então, no exercício mesmo da observação, o "não ainda", ou o "sub" aluno/prática/pintura que um curso como aquele, e uma escola de arte como aquela, deveriam criar.
Controlar essa adesão apresentou-se como tarefa difícil e muito necessária por conta da enorme proximidade do discurso do professor, e de muitos outros professores da EAV, sobre a arte e a pintura com o discurso que produzimos nas ciências sociais. É um discurso sociologizado, e, mais que tudo, "desencantado". Fala-se por exemplo de campo artístico e de Pierre Bourdieu, de concorrência, de violência simbólica, de senso comum, de cultura, da inexistência de talento e estilo, de linguagem e de capacidade de produzi-la e de compreendê-la. Inúmeros eventos que tratam da história da arte são produzidos na e pela EAV, além dos vinculados ao curso de pintura, ou organizados a partir dele. Há propostas políticas claras em relação ao ensino das artes plásticas no Brasil, nas quais grande visibilidade crítica do papel do Estado e da situação da população trabalhadora é apresentada.
É imensa a predisposição para que queiramos que nos relatem como as coisas funcionam, que nos dêem de bandeja informações/explicações sobre objetos sempre compreensíveis se investigados a partir desse olhar. Não é essa apenas uma "sociologia espontânea", mas uma sociologia "deliberada" que se pensa em oposição a uma "sociologia espontânea" do senso comum, do qual deveríamos nos afastar porque legitimaria uma arte espontânea. Produzindo uma sociologia que nunca considera a arte, seu valor e significado, e seu aprendizado, autônomos em relação à sociedade, há no quadro de professores verdadeiros interlocutores cujo discurso, portanto, é por natureza, ou pela natureza da pesquisa, "encantado" para mim.
Também colegas da turma, alguns com formação em história da arte, psicologia e psicologia da arte, ao inteirarem-se dos objetivos da pesquisa, discutiam pontos como poderia dar-se em salas de universidades, algumas vezes propondo alguma bibliografia ou auxílio solidário em modos de obtenção de informação vista como apropriada, como questionários. Alguns estranhavam eu não demonstrar interesse por "processos criativos", ou "formas de criação", e havia clara incompreensão sobre o quanto estar ali pintando, conversando e observando bastaria para o que me dispunha elucidar.
Estranhamento real, e a visualização de fato da pesquisa, ocorreu quando fiz e depois apresentei algumas fotos aos colegas. Hábito comum, fotografa-se alunos mais próximos pintando, ou posando ao lado de seus trabalhos, ou apenas o trabalho do aluno que fotografa ou de seus amigos, por vezes momentos distintos de sua confecção. Ao lado de fotos convencionais, como as que tirei em vernissage de um dos alunos, registrava mãos pintando, fragmentos de pessoas e trabalhos que mal poderiam ser reconhecidos, gestos próprios da feitura dos padronizados e banalizados exercícios, bancos, equipamentos, pessoas de costas encobrindo seus trabalhos. Já quando fizera as fotos flagrara-me avisando que não sairia o rosto do aluno, ou seu trabalho inteiro.
Se para o professor anunciava à vontade "achados" da pesquisa, que, envolvido, avaliava e discutia, para colegas apresentava-os mais que tudo embutidos em inevitáveis palpites sobre nossos trabalhos, comentários corriqueiros que nas aulas trocávamos sobre pintura, arte, EAV e nosso próprio comportamento, e o do professor. Houve situações, bem poucas, em que senti o constrangimento da condição de aluna/colega/companheira ser concebida como "máscara", atuação para alcançar objetivos tirados matreiramente da cena. Assim foi quando, depois que comentei o estreitamento do tempo para a redação do trabalho, uma colega, muito próxima, disse: "Somos suas cobaias, né?". Confirmei, acrescentando na zaga: "Eu também sou".
Porque estava interessada em observar como os alunos procediam e interagiam durante a prática da pintura, e assim os "achados" prescindissem de medições, questionários e entrevistas, isto é, de eventos que explicitassem e formalizassem a intenção de coleta de informações para a pesquisa, colocaram-se preocupações éticas que pesaram muito no modo de apresentar os dados e delimitar a análise. Integrada que estava na turma, e muito próxima que me tornei de diversos alunos, por mais clara que fosse minha disposição de estudar o que ali se passava, todas as informações a que tive acesso foram obtidas em circunstâncias de interação corriqueira entre alunos de pintura. Assim, soube de detalhes de sua vida privada, de intenções recônditas, de fatos associados ao estarem ali pintando ou apresentando ou não seus trabalhos noutros lugares, do mesmo modo que tiveram acesso à minha vida privada etc. Por não terem clareza de que muitas destas informações seriam, mesmo que não explicitadas, utilizadas na pesquisa, suprimi dados que pudessem ser acessórios, ou que os localizassem, por vezes trocando-os, como faixa etária, gênero e modo de praticar a pintura. Abri mão também de aprofundar discussões que envolvessem dados cuja apresentação pudesse revelar a identidade de alguma pessoa.
Entrevistei, de fato, o professor. Numa circunstância em que me encontrei com ele fora da sala de aula para conversar sobre minha proposta de trabalho em pintura, apresentei a necessidade de checar informações sobre colegas que tinham parado de freqüentar o curso e de compreender melhor suas intenções com certas proposições que fazia aos alunos. Neste e noutros momentos sempre obtive sua colaboração, em que pese o inusitado de perceber-se como objeto de pesquisa também nestas situações. Com a pesquisa, explicito níveis para mim mesma por algum tempo muito velados de sua atuação e relação com os alunos, em termos tais que, do ensino de técnicas de pintura à avaliação dos trabalhos, mecanismos de dominação simbólica são esclarecidos, isto é, "desencantam" o "desencantamento". Não tendo controle de como essa explicitação poderia afetar sua atuação, também neste caso não estendi análises que a utilização de alguns dados, que preferi não apresentar, proporcionaria.
BIBLIOGRAFIA CITADA
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NOTAS
*Este artigo é versão modificada de parte de No curso da pintura: a produção de identidades de artista, dissertação apresentada em 1998 ao Mestrado em História da Arte, Área Antropologia da Arte, da UFRJ, sob orientação do Prof. Antonio Carlos de Souza Lima.
[2] Utilizo rede em um sentido aproximado à definição que A. Mayer (1987:129) procede de conjunto, a partir de leitura de J. Barnes. Assim, rede aqui afirma a auto-inclusão de um indivíduo (ego) em um conjunto de relações sociais recortado por ele e cujos componentes identifica.
[3] É também muito comum que o termo Parque, ou Parque Lage, refira-se à EAV ou ao espaço ocupado por ela no Parque Lage.
[4] Ver a esse respeito M. Lahtermaher (1994). Em C. Pereira (1981:97-98) há referências ao Parque Lage, junto do Museu de Arte Moderna e da Livraria Muro, como local de eventos e de "acontecimentos" que teriam "marcado época". Há indicações ainda (Pereira, 1986:72; Cesar, 1999:passim) da importância do Parque Lage, agora também na década de 80, para poetas e outros participantes de eventos literários que lá tiveram lugar, ao lado dos voltados mais diretamente para as artes plásticas, como a exposição Como vai você, geração 80?, realizada em 1984.
[5] A categoria trabalho engloba o processo de produção e produtos de diversas práticas artísticas, como pintura, desenho, escultura, fotografia. Aqui, a palavra trabalho estará mais freqüentemente referida aos objetos bidimensionais pintados pelos alunos dos cursos de pintura do Parque Lage. Mas trabalho e pintura (diferente de tela e quadro, palavras usadas por professores e alunos geralmente para designar pintura sobre tela) abrangem também a pintura sobre suportes outros que não a tela, como o cartão, apropriado para muitos dos exercícios de pintura que os alunos confeccionam.
[6] Artes plásticas e artes visuais são diferenciadas por professores da EAV, e por muitos alunos e freqüentadores do Parque Lage, porque as primeiras referem-se a atividades artísticas que resultam em objetos, enquanto as últimas englobam igualmente atividades como vídeo, cinema e teatro, também ensinadas e tratadas em cursos e outros eventos oferecidos pela EAV. Embora seja ainda hoje tomada como acertada a escolha do "visuais" para compor o nome da EAV quando foi criada, levanta-se questões em torno do não visual embutido nas atividades artísticas visuais, como os procedimentos conceituais, o que estaria sendo omitido no nome da escola.
[7] Ao longo de 1997 foram promovidas numerosas transformações no espaço da EAV, com obras de infra-estrutura e redefinição de seu uso. A biblioteca, por exemplo, foi deslocada para outro cômodo, ao lado dos telefones públicos. Toda análise que farei do espaço da EAV estará referida à situação que encontrei ao me inserir no curso de pintura, em julho de 1996.
[8] No folder de apresentação dos cursos do primeiro semestre de 1995, havia dois blocos de turmas, por idade: "Crianças e Jovens" e "Adultos". Para "Crianças e Jovens" havia nove turmas agrupadas por faixa etária: 3 a 5 anos, 5 a 9 anos e 13 a 18 anos, sem especificação do curso, apenas dos professores; e duas turmas de "Introdução à xilogravura - 9 a 16 anos" e uma de "Desenho - 10 a 18 anos". Os 64 cursos dirigidos a "Adultos" estavam agregados em dois níveis": "Introdução" (45 turmas) e "Desenvolvimento" (19 turmas).
[9] Assim formula Becker (1977b:9-10): "É possível entender as obras de arte considerando-as como o resultado da ação coordenada de todas as pessoas cuja cooperação é necessária para que o trabalho seja realizado da forma que é. (...) Devemos, em primeiro lugar, estabelecer a relação completa dos tipos de pessoa cuja ação contribui para o resultado obtido. (...) esta relação poderia incluir desde as pessoas que concebem o trabalho - compositores ou dramaturgos, por exemplo -, as que o executam - como músicos e atores -, as que fornecem os equipamentos e materiais indispensáveis à sua execução - fabricantes de instrumentos musicais, por exemplo -, até as que vão compor o público do trabalho realizado - freqüentadores de teatro, críticos, etc. Embora, convencionalmente, se selecione uma ou algumas destas pessoas como sendo o artista, a quem atribuímos a responsabilidade pelo trabalho, parece-nos ao mesmo tempo mais justo e mais produtivo, do ponto de vista sociológico, considerá-lo como a criação conjunta de todas elas."
[10] Nesses casos, tentar construir uma proximidade que me desse acesso ao "ponto de vista nativo" trazia implicações bastante diferentes daquelas que uma extensa literatura associa ao "observador participante total" que "viraria nativo", supondo certamente uma proporcionalidade entre este acesso e o deslocamento social necessário para tanto.
[12] E aqui reside ponto que indica limites metodológicos da proposta de H. Becker. Como salientam G. Marcus e F. Myers (1995:1-2), ele pertence ao mundo estudado, ocupando nele posição bastante demarcada. Como veremos adiante, as implicações da abordagem produzida a partir de um suposto ou não problematizado "não pertencimento" podem ser colocadas como da mesma ordem das que associamos ao pertencimento, ou a determinado pertencimento, de H. Becker ao mundo artístico pesquisado por ele. A desatenção de Becker em relação a este ponto particular é tão mais indicativa de dificuldades próprias da investigação etnográfica do mundo artístico quando se leva em conta seu interesse pela abordagem sociológica das situações e métodos de pesquisa sociológica (1993:33).
[13] Ver em J. Sarsby (1984) indicações do quanto na pesquisa etnográfica problemas metodológicos singulares são derivados da impossibilidade de separação da esfera "ocupacional" da não "ocupacional" da pesquisa.
[14] E foram numerosas as circunstâncias de aula, situação na qual são corriqueiras e importantes as opiniões que alunos produzem sobre procedimentos e trabalhos de outros alunos, em que vi colegas procedendo de acordo com proposições minhas, ou definindo seus procedimentos em oposição ao que eu aventava. Assim, por exemplo, alunos com bem menos tempo de curso que eu, passaram, a partir de sugestão que fiz, a tentar pintar fixando suas telas na parede, dentre outras coisas abandonando os cavaletes, como modo de evitar algumas mecanizações das quais pretendiam livrar-se.
[16] Mas não apenas o silêncio. É relativamente comum ali, como no ambiente acadêmico, a utilização do adjetivo interessante quando não há modo de fugirmos da avaliação de um trabalho que não podemos exata e abertamente criticar ou confessar não conhecermos ou não conhecermos devidamente.
[17] Cada vez menos tinta, menos cores e menos elementos propriamente pictóricos. Isto gerou, além de um afastamento de muitos treinamentos (portanto relativa inaptidão) em pintura que um aluno normalmente teria, a observação do professor de que meu trabalho, com alta "carga conceitual", discutiria mais a arte que a pintura, e que derivaria de modo natural para objetos. O despojamento pictórico gerou também inúmeras brincadeiras de colegas, que não raro perguntavam se tinha acabado minha tinta, se queria emprestada.
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