Especial NAyA 2001 (version en linea del cdrom)

A IMPORTÂNCIA DOS ESPAÇOS PÚPLICOS E SEMI-PÚBLICOS NA DINAMIZAÇÃO SOCIOCULTURAL DO PATRIMÓNIO URBANO

(THE IMPORTANCE OF PUBLIC AND SEMI-PUBLIC SPACES IN THE SOCIOCULTURAL DINAMIZATION OF THE URBAN HERITAGE)

Marluci Menezes [1]

RESUMO

Discuto aqui a importância que os espaços públicos e semi-públicos detém na construção de uma imagem social e urbana da identidade espacial dos “bairros típicos” da cidade de Lisboa. Por outro lado, tal argumento permite-me abordar, ainda como um primeiro esboço de reflexão, a importância destes espaços na revitalização do património urbano. E, neste sentido, a importância dos estudos de antropologia e, claro, dos antropólogos, na definição de estratégias de dinamização sociocultural das áreas urbanas consideradas património. Este aspecto constitui um segundo ponto de discussão deste artigo.

ABSTRACT

In this article I consider the importance that the public and semi-public spaces it have in the construction of a social and urban image of the space identity of the “typical quarters” of the city of Lisbon. On the other hand, such argument allows me to approach, still as a first sketch of reflection, the importance of the public spaces in the revitalization of the urban heritage. In this direction, I consider the importance of the studies of anthropology and of the anthropologists, in the definition of strategies of sociocultural dinamization of the considered urban heritage. This aspect constitutes another point of quarrel of this article.

INTRODUÇÃO

Motivada por preocupações de cariz antropológico, em princípios dos anos 90, iniciei um percurso de investigação nos “bairros típicos” da cidade de Lisboa. Estava, então, interessada em analisar as práticas de uso-apropriação e representação do espaço num destes bairros. No entanto, o bairro que havia escolhido como contexto da minha análise – assim como outros “bairros típicos” da cidade – encontrava-se e ainda se encontra em processo de reabilitação urbana [2] por fazer parte do património urbano de Lisboa. Vi-me  então confrontada com duas questões. A primeira de âmbito disciplinar, na medida que a partir das reflexões avançadas pela perspectiva de uma antropologia do espaço (Lévy et Segaud:1983) ousava por em prática um projecto de pesquisa que permitisse aprofundar o conhecimento da relação entre organização social e espacial. Neste sentido, sabia ainda que o património arquitectónico destes bairros era – a excepção de alguns exemplares de qualidade e mais representativos (como igrejas e conventos, palácios, casas apalaçadas, etc.) – constituído pelo que os arquitectos chamam “arquitectura corrente”, essencialmente residencial e, edificada ao longo da história pelas várias gerações de indivíduos que ali residiram. Fazendo parte daquilo que aqui ousarei chamar de uma “arquitectura popular urbana”. Condição que, a priori, reforçava a minha ideia de estudar como os indivíduos residentes usam, apropriam, representam, enfim, constróem o seu espaço-habitat.

A segunda questão chamaremos aqui conjuntural, na medida que ao considerar o espaço como o mundo habitado e, por sua vez, organizado, usado, apropriado e representado, era significativo o facto de que o grau de intensidade de uma intervenção influenciava uma dada organização socio-espacial. Sabia ainda que são poucos os exemplos de reabilitação de núcleos históricos que, numa fase mais avançada da intervenção, tenham proporcionado o desenvolvimento local, sem que com isso tenham expulsado as populações autóctones (ideia de renovação social) ou recriado a “autenticidade de um património etnológico” (ideia de “conservação fundamentalista”) (Bourdin:1996), ou ainda, substituído a “cidade existente” por novos edifícios com novas volumetrias (ideia de renovação urbana x renovação social). Aspectos que preocupavam-me no percurso de desenvolvimento do meu projecto de pesquisa, até porque um dos objectivos estratégicos da reabilitação urbana da cidade de Lisboa é manter a população residente.

Confrontada com tais questões fui, então, para campo perguntando-me: O que se constituía como valor cultural em termos do espaço-habitat para a população residente nestes bairros? Ao que foi possível analisar e conhecer algumas dimensões socio-espaciais mais representativas no quotidiano de um local e que se referiu ao bairro da Madragoa em Lisboa.

Mas obviamente ficava por responder e conhecer outros aspectos socioculturais muito mais profundos e complexos. Contudo, continuei o meu percurso de pesquisa num outro bairro da cidade, a Mouraria, do qual presentemente tenho os primeiros resultados de uma pesquisa que deverá ser mais profunda. Portanto, discutir alguns aspectos centrais que permitem relacionar estes dois estudos é algo que me proponho neste artigo. E aquilo que, por ora, parece-me central e interessante nestes dois estudos é a importância que os espaços públicos e semi-públicos detém na construção de uma imagem social e urbana da identidade espacial destes bairros. Tal argumento permite-me abordar, ainda como um primeiro esboço de reflexão, a importância dos espaços públicos na revitalização do património urbano. E, neste sentido, a importância dos estudos de antropologia e claro, dos antropólogos, na definição de estratégias de dinamização sociocultural das áreas urbanas consideradas património. Este aspecto constitui, então, um segundo ponto de discussão que proponho tratar neste artigo.

BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DE UMA PERSPECTIVA DE ANÁLISE SOCIO-ESPACIAL

Uma das premissas de partida para o desenvolvimento de uma perspectiva de análise socio-espacial prende-se com a importância da relação entre organização do espaço e organização social. Ao que encontra especial acuidade o facto do espaço tornar-se um mundo significativo e significante através da experiência humana. Proceder a uma análise socio-espacial implica compreender as relações internas e as interacções que aí se manifestam, bem como os actos de percepção, apreciação, conhecimento e reconhecimento por parte de quem o usa e se apropria. Daí ser importante a aplicação de um “olhar” interactivo na compreensão da variedade das formas espaciais e acerca da diversidade dos fenómenos socio-espaciais em termos de expressão, consequência e razão destes para nós e para os outros. De modo que aos olhos do observador a variedade dos espaços humanos objectiva-se através das práticas de uso e apropriação – percurso, delimitação, diferenciação, orientação, identificação –, pelas representações e pelas lógicas de construção do espaço-habitat e pelos objectos descritos como importantes.

O espaço é uma realidade vivida cuja especificidade é assumida através da sua expressão como lugar. A ideia de lugar assume um importante papel nesta perspectiva de análise pelo facto de entendermos os bairros, objectos desta discussão, como seu reflexo. Contudo, a particularidade de um lugar, isto é, o seu grau de distinção, é coincidente com o seu grau de abertura ou fecho, sendo porquanto uma qualidade definida através dos seus limites de demarcação. De modo que a maior ou menor densidade entre os elementos limites é que define o grau de fechamento de um lugar ao exterior e por conseguinte permite a identificação do carácter do lugar (Schulz:1992). Mas ao grau de abertura estão associadas as noções de interno, externo e zonas intermédias ou de transição. Estas noções são ainda fundamentais para se perceber a configuração simbólica-representativa do espaço, bem como os cenários de apropriação deste. Isto é, ao ser considerado como importante definir a especificidade do espaço local a partir dos seus elementos-limites de âmbito geográfico e urbano, importa também definir a especificidade que este assume a partir da forma como os seus utentes o reconhecem. Dir-se-ia que aqui se penetra no campo de uma geografia do simbólico, inferindo a ideia de limite como interstício (Remy:1986). O limite é assim concebido como um espaço de comunicação que permite a “transposição de um território a outro”, ultrapassando as noções de exterioridade e exclusão.

Ao ser entendido que o uso e apropriação do espaço são expressões das condutas sociais, é interessante ainda verificar como as noções de espaço interno, externo, intermédio e/ou transição, se articulam com as ideias de primário, secundário e terciário, ou ainda, público, semi-público e privado. Numa primeira abordagem, poder-se-á entender os territórios primários como aqueles que são de domínio privado (a casa de uma família); os secundários como os espaços colectivamente apropriados, induzindo uma certa “domesticidade” [3] ao seu carácter inicialmente público (por oposição ao privado), sendo portanto de domínio semi-público (o pátio, as ruas internas a certos bairros) e os terciários como aqueles que podem ser apropriados por todos e cujo domínio é público (a praça, a rua,).

Contudo, ao se relacionar estas noções de território e espaço com as condutas sociais e respectivas representações, observa-se que nem sempre, bem como nem em todo lugar, essas noções correspondem aos exemplos anteriores. Notar que os territórios designados como semi-públicos podem variar de uma situação para outra, isto é, se em certo lugar este pode ser um pátio ou uma rua, em outro poderá ser uma escadaria ou a entrada de um edifício público, e num outro lugar poderá não haver este tipo de território. Tais considerações podem se tornar ainda mais complexas quando analisadas a partir da noção de território intermédio e/ou de transição. Estes, por um lado, podem se articular com as noções de semi-público e secundário (as galerias de alguns edifícios de habitação social, as passagens cobertas entre edifícios, as passagens estreitas por entre edifícios, as escadas de acesso entre uma rua e outra); por outro lado, nem sempre estes espaços se definem pela “domesticidade”, nem tão pouco por um carácter eminentemente público ou privado, induzindo a uma certa ambiguidade que, em certos casos, podem torná-los espaços marginais ou de segregação. Uma zona intermédia se constitui como uma área de intersecção entre um território privado e público, entre territórios privados, entre territórios públicos ou semi-públicos, ou ainda entre espaço interno e espaço externo. A componente simbólica das áreas de intersecção é expressa pela ambiguidade (Leach:1976). Isto é, a passagem por estas áreas significa uma cumplicidade com o espaço, comprometendo os sujeitos da acção ou um estranhamento em relação ao espaço (um transeunte estrangeiro que penetre nestas áreas), sendo manifestamente perceptível por aqueles que se fazem cúmplices destes territórios.

Esta breve contextualização serve como um guia para apresentação de alguns aspectos socio-espaciais relacionados com os bairros objecto desta reflexão.

CENÁRIOS DE USO E APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO E SEMI-PÚBLICO

Breve contextualização dos bairros objectos desta reflexão

O bairro da Madragoa

Administrativamente insere-se na Freguesia de Santos-o-Velho em Lisboa, situando-se geograficamente numa encosta que se estende no sentido do Rio Tejo (ao Sul) e que a Norte se liga com a Freguesia da Lapa. O bairro faz ainda parte de uma Área de Recuperação e Reconversão Urbanística cuja área contempla toda a Freguesia de Santos-o-Velho e uma pequena parte das freguesias da Lapa e de São Paulo.

O bairro reflecte-se na malha da cidade através de um tecido urbano fechado – uma concha que se abre mal à cidade. A sua envolvente é constituída por importantes vias de circulação viária e por uma via de circulação ferroviária. Aí ainda se encontra um importante pólo de desenvolvimento da actividade terciária, sobretudo de âmbito lúdico. A actual malha urbana do bairro reflecte características dos séculos XVII, XVIII e XIX, distinguindo-se na actualidade dois tipos de edificado: um pré-pombalino (anterior ao terremoto de 1755) e um outro pombalino (posterior ao terremoto de 1755). A ocupação humana da área remonta aos períodos romano, visigótico e muçulmano. Mas é somente a partir do século XVI que se inicia uma ocupação mais intensa da área, sobretudo com a instalação de muitos conventos e palácios, atraindo famílias de origem nobre. Após o terremoto, em fins do século XVIII, as inovações promovidas pelo Marques de Pombal, principalmente no Norte da área, atraíram famílias de origem burguesa. Contudo, o aumento da população do bairro é decorrente de um processo de migração interna, sabendo-se que este processo migratório está na base do crescimento da própria cidade de Lisboa e dos outros bairros populares, e que teve início em fins do século XIX, perdurando até princípios da segunda metade do século XX, mas que para ali trouxe sobretudo migrantes da zona centro do país, sobretudo da região de Aveiro. Na Madragoa, do ponto de  vista urbano, tal crescimento implicou uma maior densidade construtiva e a consolidação de um tecido urbano formado por pequenos quarteirões dispostos ortogonalmente, sendo um bairro essencialmente residencial.

Actualmente o tecido edificado do bairro encontra-se num acelerado processo de degradação, com precárias condições de habitabilidade. A população ronda os 2000 habitantes, havendo uma grande incidência da população idosa. Relativamente as actividades profissionais ali predominantes observa-se uma grande contingência de reformados, domésticas, estudantes, seguidos dos operários, trabalhadores dos transportes e comerciantes. É uma população com fracos recursos económicos, escolares e profissionais.

O bairro da Mouraria

Fazendo parte dos bairros orientais da cidade, actualmente a Mouraria é uma mancha que se situa entre o Largo Martim Moniz e a Graça, ocupando as vertentes norte e poente da colina do castelo, estende-se irregularmente por três freguesias: Socorro, São Cristóvão/São Lourenço, Graça. Este bairro ainda faz parte de uma Área de Reconversão Urbanística cuja extensão abrange várias freguesias.

Inicialmente a “Mouraria” designava o “arrabalde” destinado aos mouros após a ocupação de Lisboa por D. Afonso Henriques em 1147. Este bairro está ligado a própria história de Lisboa e que até meados do século XVI teve nesta área o seu centro. À topografia acidentada acrescentou-se um casario que se espalhou espontaneamente por entre um traçado sinuoso e de características muçulmanas e que assim se manteve até quase aos nosso dias. Nem o terremoto de 1755, que atingiu grandes áreas da cidade, destruiu aquele bairro. Do ponto de vista urbanístico é a partir da primeira metade deste século que o bairro e áreas adjacentes começam a sofrer alterações. Mas é no período do Estado Novo que é dada uma outra “feição” urbana aquela área da cidade, sobretudo com a destruição de toda a baixa da Mouraria em 1946. Neste período prevalecia um ideal de modernização da cidade e que, no caso deste bairro, tencionava destruí-lo por inteiro. Entre as décadas de 70 e 80 o bairro e áreas adjacentes ainda seriam focos de interesse de políticas de modernização da cidade. Somente a partir da década de 80 que a área se torna objecto de uma outra política urbana: a reabilitação.

A partir dos finais do século XIX o contingente populacional do bairro é essencialmente constituído por migrantes – neste caso, destacam-se aqueles que vieram da zona centro do país, sobretudo da região de Coimbra. Na segunda metade deste século a Mouraria irá passar por outras transformações na sua composição social. A população do bairro tende a diminuir. Por um lado, isso deve-se à destruição do Martim Moniz nos anos 40/50 que desfalcou aquele tecido. Por outro lado, à diminuição da população a nível nacional, sobretudo a partir dos anos 60/70. A população actual da Mouraria deverá rondar os 4.000 habitantes, sendo maioritariamente originária do Concelho de Lisboa.

A dimensão média dos agregados familiares ronda os 2-3 habitantes e 22.3% são pessoas isoladas, reflectindo-se esta situação no elevado número de idosos. Devido à exiguidade dos edifícios e à malha urbana apertada, a densidade habitacional é elevada. O nível de escolaridade média encontra-se muito abaixo da escolaridade mínima obrigatória. Relativamente às actividades profissionais verifica-se a predominância dos serviços pessoais e domésticos, do qual se destacam as empregadas de limpeza, empregados de hotelaria e domésticas. Num segundo plano destacam-se as actividades ligadas ao trabalho artesanal e industrial. Por último, as actividades relacionadas com o comércio, com predomínio dos empregados de balcão e dos vendedores. No que respeita as actividades económicas predominantes na área e envolvente destacam-se: arrecadações e armazéns, comércio de variedades e alimentar, serviços, escritórios, restaurantes e cafés, fábricas e oficinas. A oferta de equipamentos sociais na área é bastante precária. O estado de conservação das habitações é muito deficiente e com sérios problemas ao nível da oferta de equipamentos, como por exemplo, casas de banho (wc) e lava-loiças.

Nas extremidades do bairro encontram-se algumas actividades marginais [4] (prostituição, tráfico de droga, local de dormida para os “sem abrigo”). É dos poucos “bairros típicos” da cidade que, apesar de possuir um fraco grau de abertura e deficientes acessos viários, possui uma ligação a rede de metropolitano da cidade [5] . Na sua proximidade instalaram-se dois shopping centers com características singulares, sendo que um deles se chama “Centro Comercial da Mouraria”. Parte dos lojistas são chineses, indianos, paquistaneses ou dos países africanos de língua portuguesa. A Mouraria dos nossos dias é uma soma de territórios sobrepostos e dinâmicas que, para além de conjugarem as características mais tradicionais da sua população e mesmo do seu espaço físico, lida com novos e outros estilos de vida. Estes não se explicam somente pelo fenómeno de gentrification, mas também por fenómenos de multiculturalidade. Por exemplo, um morador residente há poucos anos no bairro falou-me da Mouraria como sendo o “Centro Comercial da Mouraria”; uma moradora, referiu-me que “a Mouraria foi um bairro de mouros, mas eles foram expulsos. Mas agora voltaram, os mouros voltaram todos, é só ir ali embaixo e ver tudo cheio de paquistaneses, indianos e chineses”.

Uso e apropriação dos espaços públicos e semi-públicos

Paralelo ao tecido urbano fechado, o interior dos bairros da Madragoa [6] e Mouraria, possuem poucos espaços exteriores (como jardins e praças) para além daqueles que servem de passagem, espaços domésticos exíguos e uma intensa vida nos espaços da rua, esquinas, travessas e a porta dos edifícios, cafés e tabernas.

O quotidiano espelha-se nos jovens que perambulam pelas ruas; nas crianças que brincam e jogam nas travessas e ruas; nos homens idosos e reformados que conversam nas esquinas, nos poucos bancos públicos que existem e nas tabernas. Alguns homens e mulheres seguem cedo o caminho do emprego, muitas vezes fora do bairro, retornando ao fim do dia. As mulheres interrompem, por instantes as lidas domésticas e encontram-se nas esquinas e ruas, nas mercearias e cafés. No contacto com os habitantes somos surpreendidos com frases como: “Ah, a rua é o nosso quintal” (morador da Madragoa). A sobreposição da esfera pública e privada do espaço também se dá, para além das ruas, nas colectividades de bairro, nos cafés, nas tascas e, em alguns casos, nas leitarias-mercearias, bem como à porta da casa do edifício residencial e à janela da casa. Na rua, nos tempos de “antigamente”, até se dormia quando era muito calor. Hoje em dia esta pratica se dá mais esporadicamente e normalmente somente durante o dia. Na rua as crianças brincam, os produtos são ali vendidos em mercados ambulantes, há discussões e às vezes brigas (“zaragatas”), convive-se, estende-se a roupa, e às vezes alguém ainda canta o fado. A rua é um local de passagem, encontro e permanência. Por exemplo, para os habitantes mais antigos da Madragoa estar no bairro é como estar em casa e vice-versa. Daí o estranhamento que muitos têm relativamente aos novos moradores, pois segundo um morador: “(...) não se sabem quem são, não garantem a segurança, estão pouco tempo no bairro, utilizam a casa, praticamente como dormitório”.

Na rua as esferas públicas e privadas do espaço se sobrepõem, se misturam e articulam, criando espaços semi-públicos. Casa e rua se interceptam mutuamente no tempo e no espaço. E o verão é o tempo da máxima comunhão entre o público e o privado, entre a rua, casa e bairro. Neste período o quotidiano dos bairros é transformado e dá-se início a um “novo quotidiano”, fortemente marcado pelo poder do efémero. Este tempo circular que volta todos os anos e se ocupa dos espaços dos bairros de forma específica, tem início com as festas dos santos populares – Santo António, São João e São Pedro – que se dá no mês de Junho. No verão, vê-se mais pessoas nas ruas, todos estão mais sociáveis e descontraídos. As ruas são decoradas, algumas janelas enfeitadas, fazem “barraquinhas” para venda de comes e bebes (sobretudo à noite e aos fins-de-semana), assam sardinhas ao ar livre e as refeições são, muitas vezes, servidas em mesas colocadas nas ruas.

Aproximadamente três meses antes deste período iniciam os ensaios da “marcha popular” de cada um dos “bairros típicos” de Lisboa, e o seu desfile reaviva as pertenças bairristas na medida que todos os anos existe um bairro vencedor da marcha. O desfile das marchas dá-se em dois períodos e espaços distintos – num pavilhão fechado e depois numa das principais avenidas da cidade, a Av. da Liberdade –, sendo o desempenho objecto de uma classificação. Contudo, o desfile culminante para os bairros é na Avenida da Liberdade e dá-se na véspera do dia 13 de Junho, dia de Santo António, enchendo os corações dos bairristas de emoção e ansiedade pela classificação do seu bairro. Mas hoje em dia o desfile na avenida é transmitido pela televisão e muitos vêm a marcha do seu bairro através deste meio. No entanto, trazem as suas televisões para o espaço da rua e assistem a marcha junto aos outros moradores e possíveis visitantes que pelo bairro passam.

Entre as características intrínsecas ao espaço público dos bairros da Madragoa e da Mouraria, destacam-se, então:

§         Físicas: aberto/semi-aberto, acessível/semi-acessível, sendo sobretudo as ruas, esquinas, travessas e escadarias, cafés, bar e tascas;

§         Sociais: facilitam o contacto social, expõem práticas e discursos (a priori identificados com o espaço privado), as condutas de uso e apropriação “domesticam” o público tornando-o semi-público, facilita o controlo social – vê-se os outros, se é visto pelos outros –, suporte para a manifestação dos rituais comemorativos (festas dos santos populares, natal, carnaval, etc.)

§         Simbólicas: utilizado ou não mediante as representações que dele são feitas, características públicas diluídas numa apropriação “domesticada” deste espaço, eliminando a relação que a priori teria com o profano (DaMatta:1991), referência às memórias sociais, suporte dos momentos efémeros e relacionados com um tempo cíclico, reflecte a importância dos interstícios na apropriação do espaço versus a constituição de territórios.

Na Madragoa e na Mouraria os espaços da rua, travessa e esquinas são fundamentais na reafirmação e reprodução da identidade socio-espacial e, neste sentido, da própria comunidade local. Os espaços privados e públicos enquanto tais parecem ser subestimados nas relações locais e a esfera semi-pública do espaço emerge como fundamental para o desenvolvimento destas relações. Mas nem tudo é tão pacífico e significado de um mundo fechado e idealizado. O local se articula com o global e os efeitos desta relação são visíveis nas condutas sociais de uso e apropriação do espaço.

Por um lado, na envolvência e cada vez mais no interior de ambos os bairros se instalam actividades económicas que atraem indivíduos de outras áreas da cidade. Restaurantes, bares, discotecas e cafés, sobretudo no caso da Madragoa. No caso da Mouraria, lojas de bijuterias e quinquilharias e centros comerciais, um comércio de revenda cujos proprietários são predominantemente indianos (hindus e muçulmanos), chineses e africanos das ex-colónias portuguesas, e os clientes são oriundos de toda parte do país e, entre os quais se destacam os ciganos. Estas actividades atraem indivíduos/grupos utentes destes equipamentos mas que, em muitos casos, se caracterizam por uma situação passageira, na medida que não residem nestes bairros. Por outro lado, estes bairros ao serem objecto de um ideal patrimonial passam a atrair novos moradores, com referências culturais e sociais diversificadas das populações autóctones.

O quotidiano destes bairros passa a ser uma realidade multicultural e multifacetada. Os territórios públicos são apropriados por grupos específicos e em horários próprios. Na Madragoa os espaços lúdicos tornam-se espaços da cidade e, muitas vezes a esfera semi-pública do espaço é interceptada por uma esfera eminentemente pública. Na Mouraria, os territórios semi-públicos são usualmente interceptados por transeuntes relacionados com o comércio lojista, enquanto os espaços públicos, como por exemplo uma praça situada na envolvência próxima, tornou-se ponto de encontro de africanos e indianos e, as galerias exteriores do Centro Comercial da Mouraria – a priori um espaço público – é, durante a noite, local de dormida para os sem abrigo, respectivamente com territórios separados em termos daqueles que são mais “tradicionais” e os toxicodependentes [7] .

Por seu termo, problemas de degradação física e de falta de condições de habitabilidade, o desemprego e a precariedade económica, a emergência de grupos de risco (jovens e idosos), trazem consigo problemas de toxicodependência, tráfico de drogas, prostituição, insegurança, etc. e dão uma outra expressão aos espaços semi-públicos. Estes fenómenos ganham, muitas vezes visibilidade nos acessos estreitos e labirínticos (sobretudo escadarias e passagens entre edifícios) e ainda nas esquinas, conotando estes espaços com um carácter ambíguo. Por outro lado, alguns dos habitantes destes bairros estão interessados em alterar as suas condições socio-económicas e habitacionais, sobretudo os casais jovens. Alguns saem do bairro e vão viver para casas e bairros mais “modernos” (conforme expressão de moradores) e em melhores condições de habitabilidade. Muitas vezes esses bairros ficam na periferia da cidade. Outros alteram a sua situação no próprio bairro e, em certa medida, esta é facilitada com as obras de reabilitação urbana. Contudo, a promoção do novo estatuto habitacional para aquele indivíduo/família que fica no bairro é muitas vezes mediada pelo investimento material e simbólico que passa a fazer no espaço privado, a casa, em detrimento do espaço semi-público, a rua. E, alguns daqueles que foram viver para outros lados, sobretudo se nascidos no bairro, costumam voltar ao bairro (“voltar à terra” – no dizer de muitos que já viveram na Mouraria), e em especial na época dos santos populares, reafirmando a sua pertença comunitária ao mesmo tempo que, nos espaços semi-públicos, promovem o seu novo estatuto económico e habitacional.

Paralelo as ambiguidades que se começa a observar em certas áreas que inicialmente se identificavam como territórios semi-públicos, observa-se ainda que estes passam a transitar entre uma dimensão pública e intermédia. Na medida que não são apropriados por nenhum indivíduo/grupo em específico tornam-se uma espécie de “terra de ninguém” e, por exemplo, nele são depositados elementos identificados com a sujidade, e muitas vezes essas áreas servem como locais de estacionamento. Por seu lado, ao serem apropriados por um indivíduo ou grupo, a segregação a qual este território se encontra sujeita dá visibilidade às situações de exclusão, como por exemplo, é o caso dos sem abrigo.

Os espaços públicos e semi-públicos detém uma importância crucial nos processos de construção da identidade socio-espacial destes bairros. Dir-se-ia que estes espaços servem como suporte para a manifestação destes processos. Esta importância ainda contribui para construção de imagens que, associadas à outros aspectos socioculturais característicos destes contextos, recuperam a ideia de “tradicional”, “típico” e “popular”, sendo este um discurso manifestamente assumido pela proposta de reabilitação urbana em que é proposto a revitalização do carácter tradicional destes bairros. Por outro lado, esta dimensão “tradicional” e “popular” é vivamente assumida pelos habitantes, bem como é claramente assumida pelas imagens construídas no exterior do bairro [8] . Mas à estas imagens também se encontram associadas ideias de falta de condições, marginalidade, sujidade e perigo, complexificando a relação que os indivíduos, sobretudo exteriores ao(s) bairro(s), e neste senso a cidade, têm com estes bairros, bem como servem de pretexto para a saída do bairro dos estratos mais jovens da população, até porque muitas vezes algumas dessas imagens não são somente estereótipos. Dir-se-ia que estas imagens, positivas e negativas são, profundamente suportadas por aquilo que se passa nos espaços públicos e semi-públicos destes bairros.

PATRIMÓNIO URBANO E DINÁMICAS SOCIO-ESPACIAIS

Preservação, conservação, reabilitação e requalificação do património urbano aparecem nos últimos anos como perspectivas de intervenção na cidade existente. Entre as principais estratégias de acção inerentes à este tipo de intervenção é salientado a importância de se reverter o processo de degradação física dos núcleos históricos, promovendo com isso a sua revitalização, recuperação ou requalificação, bem como a importância de se dinamizar estes contextos do ponto de vista económico, social e cultural. Deste modo, associado à estas práticas procuram-se desenvolver perspectivas interdisciplinares através da constituição de equipas técnicas polivalentes, sendo usual encontrar técnicos das ciências sociais integrados em equipas deste tipo de intervenção.

No entanto, muitas vezes a prática dos cientistas sociais nestes tipos de trabalho referem-se a realização de diagnósticos sociais e a gestão social do processo de intervenção. Sem aqui questionar a importância destas acções – diagnóstico e gestão –, pois as considero essenciais ao processo de intervenção urbana. Parece-me, entretanto, importante ainda observar que tais contextos, considerados como “património urbano” (Choay:1992), somente se tornam objectos (e talvez sujeitos) de uma intervenção, por se encontrarem num acelerado processo de degradação ambiental e arquitectónica, situação que em muitos casos é decorrente de fenómenos de envelhecimento da população (no caso europeu), de segregação e de pobreza socio-espacial. Portanto, mediante situações de precariedade social e urbana quais são os aspectos e/ou valores socioculturais que o processo de reabilitação pretende potenciar e revitalizar?

Aqui não tenho respostas para a resolução de problemáticas tão complexas e que, numa óptica de desenvolvimento social [9] , implicam a definição de estratégias urbanas que permitam integrar a cidade existente na globalidade urbana. Entretanto, considero que a dinamização social, cultural e económica destes contextos não deve reduzir-se ao diagnóstico, mesmo que dinâmico e interactivo, nem à gestão do(s) processo(s). Num sentido mais pragmático, creio que a promoção de uma lógica de dinamização sociocultural implica trabalhar de forma inter-relacionada:

§         os indivíduos/grupos: população residente (crianças, jovens, adultos, idosos), população activa e inactiva, população de risco, população utente do local, etc.;

§         os espaços: casa, rua, pátio, largo, praça, jardim, teatro, fábrica, e/ou públicos, privados, semi-públicos, intermédios, de transição, etc.;

§         as áreas de acção: cultural, social, económica, urbana, e/ou lazer, trabalho, convívio, técnica, etc.;

§         os estudos: pesquisas nas diferentes vertentes disciplinares e acerca da diversidade dos fenómenos;

§         os projectos de intervenção: social, cultural, económico, urbano, arquitectónico, educacional, tecnológico, informativo e de divulgação, formativo, etc.

§         os diagnósticos: de caracterização (socio-demográfico, económico, dos percursos residenciais) e de avaliação (dos projectos, planos e programas, das intervenções, etc.);

Parto do princípio que os estudos de antropologia urbana são fundamentais para o conhecimento das dinâmicas socioculturais e, neste sentido, podem ser importantes na definição de estratégias de dinamização do património urbano. No entanto, não abordo aqui todas as implicações inerentes aos estudos antropológicos e as dinâmicas de intervenção urbana. Procurei antes abordar a importância que os espaços públicos e semi-públicos em dois bairros do centro histórico de Lisboa detém nos processos de construção das identidades socio-espaciais e das imagens internas/externas e negativas/positivas de determinados contextos urbanos. E é por isto que aqui se considera que estes espaços são fundamentais na dinamização sociocultural do património urbano.

BIBLIOGRAFIA

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CHOAY, Françoise (1992) – L’Allegorie du Patrimoine. Paris. Seuil.

DAMATTA, Roberto (1991) – A Casa & A Rua. Rio de Janeiro. Ed. Guanabara.

FIRMINO DA COSTA, António (1999) – Sociedade de Bairro. Oeiras. Ed. Celta.

LEACH, Edmund (1976) – Culture and Communication: the logic by wich symbols are connected. Cambridge. University Press.

LÉVY, F. Paul; SEGAUD, Marie (1983) – Anthropologie de l’Espace; Paris, Centre Georges Pompidou/CCI

VALENTE PEREIRA, Mª da Luz (1986) – Reabilitar o Urbano ou Como Restituir a Cidade à Estima Pública. ITE 16, Lisboa. LNEC.

MENEZES, Marluci (1996) – Territórios e Representações Colectivas do Espaço. Estudo de Caso: o Bairro da Madragoa. Tese de Mestrado. Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

REMY, Jean (1986) – “La limite et l’intesticie: La strucutration spatiale comme resource sociale”, in La Theorie de l’Espace Humain – Transformations Globales et Structures Locales. Genéve. CRAAL-FNSRS, UNESCO.

SCHULZ, Christian Norberg (1992) – Genius Loci. Milano. Electa


NOTAS

[1]   Geógrafa, Mestre em Antropologia, Assistente de Investigação do Grupo de Ecologia Social (GES) do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Nova de Lisboa (UNL), Bolseira do Programa PRAXIS XXI. Endereço: Av. do Brasil, nº 101, 1799 Lisboa, e-mail: marluci@lnec.pt

[2] À esta prática de intervenção na “cidade existente” aliava-se um conjunto de estratégias cujo objectivo era (e ainda é) reverter o processo de degradação física dos núcleos históricos, e neste sentido dos “bairros típicos”, a partir da sua revitalização, recuperação e requalificação, bem como a partir da sua dinamização económica, social e cultural.

[3] Entendo por “domesticidade” do espaço público a emergência de práticas e mesmo de objectos (por exemplo: mesas com toalhas, cadeiras, almofadas, braseiros) relacionados com o espaço doméstico, ou seja, a casa.

[4] A existência de algumas actividades marginais na envolvência do bairro contribui para a construção de um sentimento de periculosidade relacionado com o bairro.

[5] Actualmente o Bairro Alto também está servido por esta rede de transportes públicos.

[6]   Menezes:1996

[7]   Como se pode falar em territórios privados e públicos num bairro em que alguns dos moradores têm a sua casa na rua (os sem-abrigo)?

[8] Fala-se aqui daquilo que Firmino da Costa chamou de “redobramento simbólico” (1999).

[9] Segundo Valente Pereira (1986) a lógica de desenvolvimento social deve ter como objectivo central “a resolução prioritária das questões que interessam às pessoas a quem a área diz directamente respeito – os seus interesses legítimos, problemas, capacidade, relações sociais e valores próprios, dificuldades de realização do quotidiano, exigências de qualidade e de apropriação dos espaços de vida, necessidade de informação, sociabilidade e de progresso económico – e na aplicação dos seus recursos, iniciativas e capacidades de organização e realização”.


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