Especial NAyA 2001 (version en linea del cdrom)

Folclore e Sociedade. Alguns comentários

Mauro Cherobim [1]

RESUMO

O artigo procurará mostrar a dificuldade em se caracterizar um fato folclórico, em face dos valores contidos na palavra decorrentes do momento ideológico que se passava na Europa quando foi criada esta nova área de estudos. Procura mostrar a relação do folclore com as mudanças sociais e o seu papel como mecanismo de identificação nacional e/ou étnica. Mostra, finalmente, a influência de interesses econômicos revitalizando alguns fatos folclóricos e deixando que outros se extingam.

PALAVRAS CHAVES: Folclore,  identidade, povo, saber popular, mudanças sociais.

Folclore e significados

É lamentável o desconhecimento sobre folclore neste país, do que até mesmo este prestigioso jornal não escapa. Duas reportagens publicadas nos dias 3/1 e 4/1 são a prova dessa deficiência. Na primeira, intitulada Cuba já não apresenta ameaça para os EUA, é difícil saber o que o autor, Paulo Sotero, quis dizer com "Fidel, aos 72 anos, converteu-se numa figura quase folclórica". Se chamar Fidel de figura folclórica é um despropósito, a qualificação "quase folclórica" é uma barbaridade. Na segunda reportagem, assinada por Liège Albuquerque, só o título já é uma aberração: Projetos `folclóricos' entulham Legislativo, como se o termo "folclóricos" caracterizasse o "entulho" das Câmaras. Esses fatos assumem maior importância quando se sabe ser o folclore um fenômeno cultural e objeto de estudos científicos, constituindo-se num importante fator na formação da nacionalidade e, portanto, da nossa brasilidade. Seria salutar que as pessoas se conscientizassem desse expressivo traço cultural do nosso povo e procurassem informar-se adequadamente, antes de abordar temas folclóricos ou de fazer uso de termos a eles relacionados. Sem isentar a imprensa da sua parcela de responsabilidade, entendemos caber às autoridades governamentais o maior ônus desse desleixo nacional, as quais, além de deixar ao abandono esse importante setor da nossa cultura, permitiram a destruição do pouco de organização existente nesse campo. A publicação desse nosso desabafo poderia contribuir para evitar erros por parte daqueles que escrevem para este jornal. É o caso da carta de Reynaldo Farah neste Fórum dos Leitores (14/12/98), na qual afirma que "falcatruas em obras públicas já fazem parte do nosso folclore". Quer dizer que, além de coisa supérflua e errada, folclore também passou a significar atividades suspeitas?! É demais! Maria do Rosário Tavares de Lima e Wilson Rodrigues de Moraes, membros da Associação Brasileira de Folclore, São Paulo" (O Estado de São Paulo. São Paulo: p.3, 14/1/1999 | Fórum dos Leitores |)"

Introdução

Ministrei um curso sobre Folclore há uns cinco anos nesta Universidade. Como resultado deste curso, um de seus alunos e professor da casa, elaborou sua dissertação de mestrado, cujo tema foi o fotógrafo lambe-lambe (Mello, 1996). Uma das primeiras perguntas do Autor da dissertação, ainda naquele curso, foi se esta atividade fotográfica é Folclore. Este pergunta levou a outras sempre no sentido de como se poderia caracterizar - ou identificar - um fato folclórico. Depois de tanto tempo, a carta transcrita acima me fez voltar ao tema. Levanta uma questão pouco discutida, que é a de se considerar o fato folclórico como algo subalterno, de significado menor. Isto não quer dizer que um fato folclórico não possa ser anti-social ou desviante. Se ele não é institucional, conceitualmente falando e como veremos mais à frente, os fatos apontados na carta poderão ser considerados como folclóricos.

Meu objetivo não é discutir a carta, e nem caberia a mim tal proposta, mas tê-la como base para nortear a reflexão que desenvolverei neste trabalho. Esta reflexão permitirá, espero, acrescentar dados aos temas nas áreas de letras e de artes.

O que é Folclore?

Roger Bastide (1959), na introdução de seu Sociologia do Folclore Brasileiro, escreveu que "o folclore é a cultura inteira do 'folk'" (p.I) e que o "primeiro Congresso Nacional do Folclore reunido no Rio de Janeiro (...) decidiu, (...) pela imensa maioria dos membros do Congresso, definir o folclore como um ramo da Antropologia, o que estuda a cultura popular em oposição à cultura erudita" (Id.). A diferenciação entre estas duas culturas (popular e erudita) poderia ser feita, com os devidos cuidados, respectivamente, como cultura não-formal e como cultura formal. A cultura não-formal seria a cultura não literária e a formal a literária.

Estou orientando a discussão sobre Folclore na atualidade e numa sociedade complexa como é a paulistana e num enfoque da Antropologia. Há, no entanto, uma particularidade conceitual, indicando que os fatos folclóricos se referem às  "condições primitivas nas comunidades civilizadas", como veremos adiante. Apesar dos valores que a expressão "primitiva" deve indicar, devemos considerá-las como sobrevivências ou persistências culturais em comunidades que tenham atrás de si uma sociedade nacional mais ampla (v, Mussolini, 1955:334). Sào nestas comunidades, as mais sedimentadas, que vamos encontrar "a vigência de 'folk ways', 'folk lore' e 'folk songs' em pleno funcionamento" (Id. p.333).

Esta visão remete alguns autores a conceituar cultura de folk como a "cultura de grupos humanos que estão numa fase de transição entre o primitivo e o urbano" (Aguiar, 1970:88). Este continuum primitivo-urbano tm a ver com vilarejos indígenas do México e da América Central estudadas por Robert Redfield (v. Redfield & Singer, 1971:344-7). Alguma coisa parecida à cultura folk no Brasil é o que se chama de "cultura caipira" [2] . Segundo Antonio Cândido, caipira exprime aspectos culturais. Este termo "tem a vantagem de não ser ambíguo (...) e a desvantagem de restringir-se quase apenas, pelo uso inveterado, à área de influência histórica paulista" (1971:22). Em outras regiões brasileiras existem outras formas culturais que se eqüivalem ao caipira [3] . Com observações semelhantes, Gioconda Mussolini fala de cultura caiçara ao se referir a aspectos da cultura e da vida social das populações rurais do litoral brasileiro (1953). Para estes dois autores culturas caipira e caiçara são sobrevivências de elementos culturais das primeiras ocupações. Com referência ao Vale do Paraíba, chamada cultura caipira ou civilização caipira, como se refere Maria Isaura Pereira de Queiroz, sobrevive como gênero de vida em determinadas camadas da população: "a civilização do café pode se instalar no Vale do Paraíba, ali florescer, decair e desaparecer, sem abalar a civilização caipira: enquanto perdurou a civilização do café, a civilização caipira continuou existindo, mas, pertencendo à camada rural diferente da dos fazendeiros, foi então obscurecida pelo esplendor do gênero de vida destes. Decadentes os cafeicultores, volta-se a constatar a existência da cultura caipira" (Queiroz, 1973:30). Mussolini constata que as áreas litorâneas, pelo menos às que se referem ao sul do país, converteram-se  "em áreas de deserção à medida que o povoamento avançava para o interior" (1953:81). Desenvolveu-se, nestas áreas, um tipo de vida fechada "com poucos contatos com o mundo de fora, ou recebendo dele um mínimo de influências e de produtos, por não dispor de meio aquisitivo, resultou um aproveitamento intensivo, quase exclusivo e mesmo abusivo dos recursos do meio, criando-se, por assim dizer, uma intimidade muito pronunciada entre o homem e seu habitat" (p.85). Este isolamento permitiu a perpetuação das  primitivas condições de vida, mas não de forma absoluta, pois parte destas comunidades mantinham relações com centros irradiadores, como Santos no caso do litoral paulista (Id., p.93). A persistência e a mudança sociais nestes grupos devem manter um certo equilíbrio, evitando-se, assim, um processo desorganizatório.

Já vimos que por definição não é todo fato cultural um fato folclórico. Poviña se refere a Folclore como "a ciência que estuda todas as manifestações tradicionais e espontâneas da mentalidade popular em uma determinada sociedade civilizada" (Id. p.25). O fato folclórico, então, será caracterizado a partir da oposição tradicional versus moderno, popular versus culto, não-formal versus formal - como se falou acima - ou seja, fatos que indiquem sobrevivência de elementos culturais de "condições primitivas nas comunidades civilizadas": antigas crenças, costumes não escritos, mitos e contos, fábulas, adivinhações, etc., que envolva um rótulo de "popular" (p.27). Os  "usos e costumes" presentes numa "sociedade civilizada" [4] ; aquele "tipo de fato social (...) que se caracteriza (...) por ser anônimo e não-institucionalizado e, eventualmente, por ser antigo, funcional e pré-lógico" (Carvalho Neto, 1970:134) [5] .

A condição pré-lógica do fato folclórico, conceituada na forma de Lévy-Bruhl, significa ser ele contrário à lógica aristotélica e em oposição ao saber culto e socialmente aceito (v. Carvalho Neto, 1970, op. cit.); e por não ser institucionalizado, fica fora das normas de controle social. O fato folclórico, neste caso, torna-se anti-social ou, quanto muito, desviante. Um projeto estapafúrdio no Congresso [6] , porque escapa das regras institucionais esperadas dos poderes da República, pode ser considerado perfeitamente normal e esperado numa comunidade ao preencher interesses de sua gente. As expectativas, os interesses, fazem parte de um saber nem sempre institucionalizado.

Os dois substantivos que compõem a palavra folclore, folk (povo, gente) e lore (conhecimento, saber) (v. Poviña, 1945:14), mostram uma hierarquização social que se traduz, na prática, à uma visão das pessoas cultas tentando entender os conhecimentos e o saber das pessoas incultas, o chamado "povão". O significado de  folk (povo) dá a idéia de interações mentais e/ou culturais; apesar de ter uma conotação de gente (people), os dois termos não são sinônimos; gente representa população em termos de unidades mensuráveis. Para Poviña folk significa, ao mesmo tempo, povo e gente, respectivamente uma abstração e um estado concreto. A aproximação destes dois termos é significativa para Poviña ao sugerir dois campos de preocupações para o Folclore: aquele que se preocupa com a compreensão dos fatos folclóricos, o dos folclorólogos, e aquele que se preocupa com a representação dos fatos folclóricos, o dos folcloristas (p.30).

Voltando à carta: os autores se queixam do "mau uso" da palavra folclore, associada, como eles próprios descrevem, ao exótico [7] . Os aspectos "folclóricos" das falcatruas não são exatamente os desvios do dinheiro e das coisas públicas, mas as formas como elas são feitas [8] . Existem falcatruas que são fragrantemente policiais e outras passam por definições consensuais, de interesses, etc., mascarando os aspectos criminais. Uma definição "amigável" das chamadas de "safadezas". Convencionou-se chamar a isto de "coisas folclóricas". E é a isto que se insurgem os autores da carta.

Este lado anti-social dos fatos folclóricos não é estudado como Folclore, mas sim em outras áreas das Ciências Sociais. Os estudiosos do Folclore concentram suas atenções naqueles fatos que representem "um fenômeno cultural (...) importante fator na formação da nacionalidade e, portanto, da nossa brasilidade", como escreveram os autores da carta. A formação de nossa nacionalidade não se constitui somente de fatos altruísticos e o altruísmo é construção de um momento histórico e ideológico. Assim, o Folclore, como área de conhecimento, é uma coisa; os fatos folclóricos não são nada mais que objetos de interesses de devem ser estudados como são, altruísticos ou não; socialmente aceitos ou não. A mudança de interpretação no decorrer da história nos dá muitos exemplos. A capoeira, para ficar num só.

Carvalho Neto (1956) publicou um manual de técnicas para investigação folclórica onde relaciona fatos reconhecidos como objetos de investigação da Antropologia e da Sociologia. Como comentamos acima, o que caracteriza o fato folclórico é fazer parte do conjunto cultural de uma "sociedade civilizada". O que consideraríamos, nesta larga faixa, de fato folclórico? Esta caracterização depende da interpretação do autor que desenvolve seus estudos. Roger Bastide (1959), por exemplo, considera as religiões afro-brasileiras como folclóricas; Florestan Fernandes (1979) estudou as brincadeiras infantis do Bom Retiro (bairro paulistano) considerando-as como folclore infantil. Ora se nem entre os especialistas existe um consenso - e nem seria bom que houvesse - a respeito de que fatos seriam efetivamente folclóricos, não seria de esperar que os não especialista tivessem. E daí a inclusão de fatos que o senso comum passa a considerar como folclóricos.

Os especialistas definem critérios para determinar se um fato é ou não é folclórico, mas não de forma absoluta. Fidel Castro é (quase) folclórico, como está na carta? Ao nosso olhar talvez seja em face de sua figura, de sua forma de se vestir e de falar, foge aos nossos padrões institucionais. Estaria, então, próximo do que consideramos folclórico. Mas ele não pertence à nossa sociedade e então não podemos considerá-lo folclórico por dois motivos. O primeiro motivo é de ele não pertencer à nossa sociedade; em sua sociedade é uma figura institucionalizada. O segundo motivo é a questão da relatividade cultural; nós não vemos Fidel Castro com os mesmos olhos com os quais é visto pelos membros da sociedade a que ele pertence. O mesmo poder-se-ia dizer ao uniforme militar de Augusto Pinochet. Para nós, um Presidente da República apresentar-se fardado, muito mais com um uniforme de campanha é folclórico, como foi dito ao então Presidente Collor de Mello quando vestiu, certa ocasião, um uniforme militar. O "quase" neste caso é uma fuga para uma qualificação não categórica.

A transformação da pilcha [9] em traje oficial no Rio Grande do Sul merece uma consideração à parte. As festas gauchescas são folclóricas [10] e seus trajes, neste momento, também o são. Aqueles elementos folclóricos tornados oficiais cumprem um demonstração de identidade regional dos gaúchos da mesma forma que acontece com os grupos folclóricos de afirmação de identidade étnica por descendentes de imigrantes.

Folclore, Identidade e Mudanças Sociais

A Europa do século XIX testemunhou movimentos sociais e políticos que se iniciaram no século anterior e se prolongaram até o século seguinte. A idéia de povo foi um elemento da construção ideológica para neste movimentos; era de um sujeito político que representava o oposto da aristocracia. Na passagem do século XVIII ao XIX, ); o ardor revolucionário empenhara-se no sentido de se afastar dos costumes políticos-morais da velha aristocracia (Costa, 1995:108) e tudo o que pudesse lembra-la: "Existe apenas um partido. O dos intrigantes! (...) O resto é o partido do povo." (Hunt, 1991:21-2).

A burguesia em ascensão, pouco mais tarde, para se impor "como classe criou emblemas de prestígio que deveriam distingui-la das classes subalternas [11] , dos povos colonizados e (também) da velha aristocracia" (Costa, op. cit. p.114). Em contrapartida, o romantismo, para se opor à expansão do capitalismo, passou a se interessar pelas camadas populares, a contar a sua história, procurando entender esta gente chamada de povo: suas crenças, costumes não escritos, mitos e contos, fábulas, adivinhações, etc.

Este foi o ambiente no qual a palavra folclore foi criada, dando identidade à uma área de estudos, no mundo científico (1846), para estudar "todas as manifestações tradicionais e espontâneas da mentalidade popular em uma determinada sociedade civilizada" (Poviña, 1945:25). Este conceito é emblemático; os fatos, objetos de interesse do Folclore, constituir-se-iam em sobrevivências de elementos culturais de "condições primitivas nas comunidades civilizadas" (p.27) e tudo aquilo que envolvesse um rótulo de "popular". Ou seja: os "usos e costumes" presentes numa "sociedade civilizada" [12] ; aquele "tipo de fato social (...) que se caracteriza (...) por ser anônimo e não-institucionalizado e, eventualmente, por ser antigo, funcional e pré-lógico" (Carvalho Neto, 1970:134).

Estes movimentos que envolveram ideologicamente o momento histórico em que o Folclore foi criado, fez com que os fatos sociais e culturais considerados como folclóricos fossem considerados algumas vezes de forma depreciativa e outras vezes de forma extremamente valorizada. Algumas das formas depreciativas foram citadas na carta transcrita no início deste artigo. As formas valorizadas são aquelas que contribuem na formação da nacionalidade e permitem dar identidade e relevância a alguns grupos. A festa de San Genaro no Brás [13] , para ficar num exemplo, mais do que uma festa religiosa é uma festa para reavivar as raízes étnicas dos descendentes de italianos da cidade de São Paulo. É considerada folclórica porque ali são representados alguns costumes, algumas crenças, de um grupo de nossa sociedade, apesar de suas origens étnicas. O mesmo poder-se-ia dizer das festividades que os descendentes de japoneses fazem anualmente no bairro da Liberdade [14] . Apesar de o entendimento usual de folclore referir-se às manifestações de origens mais antigas como por exemplo as Festas do Divino realizadas em Mogi das Cruzes e em diversas cidades do Vale do Paraíba.

O meio milênio de nossa sociedade, na história dos povos, indica pouca vida. O que chamamos de "mais antigos" foram tradições trazidas pelos primeiros colonizadores, adaptadas e reformuladas para este novo meio. Torna-se portanto um pouco difícil descrever características genéricas dos fatos folclóricos pois, além daquelas manifestações mais antigas, temos estas mais recentes que são praticadas pelos descendentes de imigrantes, ainda em fase reformulação à realidade brasileira. Em Curitiba, por exemplo, existem vários grupos folclóricos compostos de descendentes de imigrantes poloneses, ucraínos, italianos, portugueses, alemães, etc., etc. As representações  seriam do folclore de seus países de origem ou de um novo folclore brasileiro? Podemos dizer que elas são, já, folclore brasileiro e também uma afirmação de identidade étnica em relação a outros grupos étnicos aqui existentes, inclusive brasileiros "mais antigos". Este folclore "neo-brasileiro" faz parte de grupos brasileiros descendentes de imigrantes que procuram reconstruir a realidade social e cultural de seus antepassados hoje, lá, extinta ou uma sobrevivência.

A utilização dos fatos folclóricos para processos de afirmação étnica é importante e pode ser exemplificado por um acontecimento objeto de matérias jornalísticas. Os oitenta anos da União Soviética provocou importantes mudanças culturais nos países que a compunham, forçados a fazer parte de uma virtual hegemonia que procurava os unir. Com o desaparecimento da União Soviética e a volta da soberania naqueles países, cada qual procurou retomar sua nacionalidade - ou identidade - original. Na Ucrânia, um dos elementos para este retorno foi reaprender uma técnica de pintura em ovos já extinta, ligada a mitos de sua formação étnica. Esta técnica foi conservada por uma família que emigrou para Curitiba identificador de origem étnica, transmitida de geração a geração até os dias atuais. O governo da ucraniano convidou membros desta família para ir ao país de seus antepassados ensinar a técnicas para os atuais ucranianos.

Muitos descendentes de italianos ainda falam a língua de seus antepassados e alguns dialetos italianos já extintos. Há um grupo de descendentes de tiroleses em Piracicaba que ainda se comunicam no dialeto de seus ancestrais. Este grupo foi objeto de pesquisa de lingüistas italianos no intuito de recuperar uma língua que não mais existe lá [15] .

Uma das pistas para a caracterização de um fato folclórico é a sobrevivência cultural através da tradição oral. Como estamos falando de uma sociedade multicultural (a brasileira), teremos que incorporar a esta tradição os grupos de origem imigrantes, compostos em sua maioria de pessoas oriundas das zonas rurais de seus países de origem, também trouxeram uma tradição oral. Da mesma forma dos primeiros colonos brasileiros, também tiveram que adaptar suas tradições a este novo mundo, já povoada opor muitas outras tradições. O folclore passa, então, a cumprir uma dupla finalidade: a de reforço à identidade nacional, e através dela os conceitos de nacionalidade, de pátria, e marcar a identidade étnica os grupos imigrantes.

No mundo globalizado os contatos se estreitam permitindo que sociedades buscarem sobrevivências culturais entre seus grupos emigrados, como o caso da Ucrânia comentado acima, o de tomar conhecimentos de sobrevivências entre os outros países, como são as sobrevivências baianas no bairro "brasileiro" em Lagos, na Nigéria (v. Cunha, 1987) [16] .

A soma destes elementos culturais, dos mais antigos aos mais recentes, permitem que se construa uma identidade nacional e também identidades regionais.

A paulistanidade, por exemplo. Quando uma novela de televisão desenvolve sua trama com coisas de São Paulo, reproduzindo certas características do "ser paulistano", estará descrevendo a sua paulistanidade. Uma das características, muito explorada, é a italianidade [17] , um dos coloridos da capital paulista. O paulistano sentirá esta paulistanidade somente quando estiver fora dela.

O jornal Clarín, de Buenos Aires, publicou recentemente um artigo intitulado Refúgios da pátria. A globalização e o projeto de dolarização da moeda argentina tendem a esmaecer "o ser argentino", a argentinadade. Mas esta permanece ainda num sentido mais profundo que é o sentimento de pátria. Um dos componentes para acender este sentimento de pátria é o retorno vigoroso do folclore (Mayer,1999). Parece-me que foi este sentimento que povoou o cineasta brasileiro Hector Babenco, argentino de nascimento, e o levou realizar um filme autobiográfico que, na verdade, reviveu uma Argentina que não mais existe. Uma recuperação do pretérito. Há trabalho de antropólogos que estudaram comunidades em viveram; as declarações dos entrevistados coincidem com suas lembranças e elas se encaminha à busca de persistências no ensejo de comparações do pretérito com o presente. As persistências são, então, as sobrevivências do ontem no hoje. O trabalho de uma antropóloga argentina, ao procurar reconstruir a vida de um conjunto de casas populares de Buenos Aires na década de sessenta, onde ela viveu quando criança e adolescente, é ilustrativo (Holstein, 1997). As relações vicinais, os ritos de passagens de nascimentos, casamento e mortes, os sistemas de trocas de favores entre vizinhos e os modelos econômicos desenvolvidos nas relações com os comerciantes locais, fazem parte dos usos e costumes, que Poviña chama de folclore da atividade social (Id. p.49).

O fato folclórico, como qualquer fato cultural, é dinâmico. Com ritmo acelerado ou não, acompanha os processo de mudanças que ocorrem na sociedade. A sobrevivência não é do fato na sua integridade, mas de característica que o identificam. José de Souza Martins ao analisar comparativamente as músicas caipira e sertaneja, observou que a primeira é meio, isto é medeia relações sociais e a música sertaneja é fim porque não faz isto e é composta para o mercado fonográfico. O cantador de moda de viola canta "um acontecimento (que) depende basicamente de que se faça de conformidade com as expectativas e concepções dos circunstantes".  (Martins, 1974:33). A música sertaneja reinterpreta a vida rural no sentido de uma "visualização 'antecipada' da realidade 'produzida' pela indústria cultural" (Id.). Os ouvintes da música caipira não são os mesmos da música sertaneja, comenta Martins, em face da destinação desta última ao mercado fonográfico, e não seria, strictu sensu, uma música folclórica [18] .

Gostaria de refletir não do sentido do processo produtivo destas músicas, mas do "consumo". As músicas sertanejas vieram ao encontro de migrantes de zonas rurais para zonas urbanas, compondo aquela massa de excluídos das estruturas sociais e econômicas urbanas [19] . Para esta população as músicas sertanejas não trazem uma interpretação mas um mundo rural que ainda habita seus imaginários [20] ; uma interpretação do mundo que outrora fora um mundo real. Destarte, para o migrante rural, agora vivendo nas periferias das cidades, em nada diferem as músicas sertanejas das músicas caipiras.

Numa determinada época e por algum tempo, residi numa chácara da zona rural de uma cidade da região leste da Grande São Paulo, ligada com a capital pelo trem suburbano da Central do Brasil. Moravam nas imediações da chácara onde residia, alguns como empregados (caseiros) com tarefas delegadas às suas famílias, começavam a acordar por volta das quatro horas da manhã para tomar o trem. Começava-se ouvir os rádios ligados nos programas que tocavam músicas sertanejas e músicas nordestinas. Ao percorrer a estrada ao longo por onde residiam estes trabalhadores, conseguia-se identificar suas origens. Estas músicas acompanhavam estes trabalhadores, em suas permanências nas vendas da proximidade, nos finais de semana. Os programas de músicas sertanejas (e nordestinas) coincidiam com os horários de chegada e de saída de casas destes trabalhadores.

A música sertaneja, antes discriminada, adquiriu impulso comercial quando as duplas foram substituídas por cantores mais jovens e com a introdução de ritmos urbanos mesclados com outros da música country norte-americana. E os cantores começaram a vestir de maneira semelhantes aos vaqueiros (cowboys) dos filmes hollywoodianos.  Este incremento comercial da música sertaneja acompanhou o surgimento de um rico mercado centrado nas festas de peões boiadeiros que se assemelham em tudo com os rodeios norte-americanos. Encontramos estas manifestações nas zonas urbanas e rurais dos interiores dos Estados de São Paulo, Norte do Paraná, Mato Grosso do Sul e regiões mineiras e goianas que se aproximam daqueles Estados. A idéia de rural se expandiu englobando cidades do interior.

Conclusão

Este trabalho é uma reflexão sobre Folclore numa sociedade em mudança e complexa, procurando mostrar que a nossas interpretações sobre fatos folclóricos devem diferir um pouco de sua conceituação clássica. Se por um lado ainda encontramos comunidades que cultuam suas manifestações folclóricas, as influências dos grandes centros são muito mais presentes em face das telecomunicações e das facilidades de acesso. As antenas parabólicas são hoje encontradas em todas as pequenas comunidades e até em grupos tribais.

A industria cultural se apropriou e "domesticou" de muitos fatos folclóricos para adequa-los às suas condições de transmissão; alguns são valorizados e apropriados pelo mercado cultural; outros são relegados à extinção.

O enfoque, então, deverá ser numa sociedade em mudança. Há mais de duas décadas, Diegues (1976) criticava aqueles que viam os fatos folclóricos como "peças de museu". E agora acresce-se de vivermos num mundo chamado de globalizado e é nos fatos folclóricas que se vai buscar as formas de reforço de identidades. Cada grupo ainda assim age tendo à sua retaguarda uma sociedade nacional mais ampla.

Por fim, não mais se canta tanto, mas se conta "acontecimentos de conformidade e concepções dos circunstantes", segundo a citação de Martins, transcrita acima.

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NOTAS

[1] Prof. Adjunto Aposentado da Unesp. Docente da Universidade Guarulhos e da Universidade Ibirapuera. Docente do Programa de Pós Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências, Unesp, Câmpus de Marília.

[2] Ver discussão a respeito realizada pela Prof.a Gioconda Mussolini (1954).

[3] Caipira chegou a ser, também, todo aquele que não era da capital, mas tomou um significado mais amplo com a valorização da música sertaneja pela mídia. O "ser caipira" perdeu o significado pejorativo que aparecia retratado no personagem Jeca Tatu de Monteiro Lobato.

[4] Utilizo a expressão "sociedade civilizada" entre aspas porque é a forma que aparece na literatura mais antiga.  As "sociedades civilizadas" se opunham  às "sociedades não-civilizadas" ou "selvagens", as sociedades tribais. Estas expressões denotam valores, preferindo-se utilizar outros termos isentos.

[5] Veremos a seguir que numa sociedade em mudança, como a brasileira, o conceito de folclore pode ser ampliado com a introdução de novas formas de manifestações folclóricas, como as dos grupos imigrantes.

[6] Os jornais noticiaram que um deputado estadual paulista, recém eleito, conhecido por Turco Loco, tido como figura folclórica, irá apresentar um projeto para criar um escola de surfe em São Paulo com aulas práticas no litoral (Legislatura começa hoje com renovação recorde (O Estado de São Paulo. São Paulo: p.A5, 15?03/1999)

[7] Os conceitos de Folclore evidenciam um caráter de exótico aos fatos folclóricos pelo fato de serem diferentes.

[8] Segundo declarações de um dos envolvidos na chamada "Máfia dos Fiscais", processo que acusa fiscais e outros funcionários municipais da cidade de São Paulo, não havia nada de errado. O declarante afirmava que não passava de troca de favores e que era normal. Em outras palavras, fazia parte dos usos e costumes na administração municipal.

[9] Pilcha é a vestimenta tradicional gaúcha. Pilchado é estar vestido com a pilcha. Os cerimoniais gaúchos permitem que se vá vestido de roupas consideradas adequadas, como o terno para homens, ou de pilcha. O que poderá ser considerado de folclórico, pelos de fora, para os locais é uma identificação orgulhosa de regionalismo que os remete a uma também orgulhosa formação histórica.

[10] Os gaúchos preferem chama-las de tradicionalistas.

[11] Ver trabalho da Prof.a Urquiza Maria Borges, publicado neste mesmo exemplar  da Revista Universidade de Guarulhos. A Autora mostra as técnicas de disseminação de alguns emblemas da burguesia através de uma jornal paulistano (Correio Paulistano), durante a Segunda metade do século XIX.

[12] Os conceitos de "sociedade civilizada" e de "civilização" carregam valores e são empregadas para diferenciar estas sociedades daquelas que indicavam sobreviverem de modelos culturais "arcaicos" e para se opor às sociedades tecnologicamente mais atrasadas, como são as sociedades tribais. É por esta razão que estas expressões aparecem entre aspas. Apesar de ser a forma em que aparece na literatura mais antiga.

[13] Bairro da Capital paulista.

[14] Outro bairro da Capital paulista.

[15] Informações pessoais do aluno Rinaldo Correr, no Curso Educação e Construção Social da Identidade. 1996.

[16] Ver especialmente o capítulo "Brasileiros em Lagos", p.101-51. Esta obra é um trabalho de pesquisa da Prof.a. Manuela Carneiro da Cunha entre os descendentes dos escravos libertos que retornaram para a África.

[17] Ver Cherobim, 1995.

[18] O jornal O Estado de São Paulo publicou no caderno Seu Bairro - Norte uma matéria sobre os Grupos de Folia dos Reis no bairro do Limão, baseada na pesquisa da Prof.a Márcia Orlando de Moraes. A pesquisadora declara que estes grupos tendem a desaparecer porque a geração mais nova é formada de cidadãos urbanos (Pereira, 1999:z4). Na linguagem de Martins perdeu sua função meio. O processo de extinção terá continuidade desde que estas manifestações folclóricas não adquiram prestígio para com a mídia.

[19] Devemos lembrar que os trabalhadores rurais (bóia-frias) são moradores das periferias das cidades; suas vidas são urbanas e seus contatos com o mundo rural é restrito ao veículo que os transporta e à área de lavoura que trabalham.

[20] Uma análise que nos permite entender o papel dos meios de comunicações e sua manipulação do mundo simbólico da população por eles atingidos, ver Miceli, 1972, em especial seus capítulos "Rentabilidade Simbólica" e "O Campo Simbólico Dependente".


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