Especial NAyA 2003 (version en linea del cdrom)

ANÁLISE DA LOUÇARIA DO SÍTIO CASARÃO DOS MELLO, RS /BRASIL. [1]

Fernanda Codevilla Soares
Márcia Solange Volkmer
Tânia Tomázia do Nascimento
Cristiane Debus Pistóia
Neli Teresinha Galarce Machado
Saul Eduardo Seiguer Milder

Resumo:

Este trabalho tem por objetivo o estudo do sítio arqueológico Casarão dos Mello, que se situa no município de São Martinho da Serra, localizado 23 Km ao norte de Santa Maria, na região central do Estado do Rio Grande do Sul, no limite físico entre a Serra Geral e a Depressão Central. Devido a sua posição geográfica, a região foi um importante ponto de disputa entre os Impérios Ibéricos. O sítio insere-se no contexto do século XIX e aborda um leque de informações sobre definições de limites territoriais e povoamento do RS. A metodologia utilizada para o estudo do sítio pode ser compreendida entre: pesquisa histórica (em fontes documentais e orais), prospecções de campo e análise laboratorial do material resgatado. A cultura material pode ser divida entre: louças, vidros, metais, ossos e cerâmicas. Dentre este material as louças estão em maior número e se constituem no foco de atenção deste artigo.

Abstract:

This work has for objective the study of Mello's site archeological, that locates in the district of São Martinho da Serra, located 23 Km to Santa Maria's north, in the central area of the State of Rio Grande do Sul, in the physical limit between the Serra Geral and Depressão Central. Due to his geographical position, the area was an important dispute point among the Iberian Empires. The site interferes in the context of the century XIX and it approaches a fan of information on definitions of territorial limits and settlement of RS. The methodology used for the study of the site can be understood among: researches historical (in documental sources and orals), field searches and analysis laboratorial of the rescued material. The material culture can be divides among: dishes, glasses, metals, bones and ceramic. Among this material the dishes are in larger number and they are constituted in the focus of attention of this article.

INTRODUÇÃO

São Martinho da Serra localiza-se na região central do Estado do Rio Grande do Sul, próximo à Santa Maria. O município possui um potencial arqueológico muito grande, compreendendo sítios do período colonial ao pré-colonial.


Fig. 1: Mapa do RS com a localização de São Martinho da Serra,
detalhe da área urbana do município.

A arqueologia vem realizando intervenções arqueológicas na área desde a década de 60, quando o arqueólogo BROCHADO (1969) identificou um sítio guarani na região, chamado Sítio Dalla Lana. Posteriormente, já na década de 80, entre os anos de 1984 e 1985 foram estudados mais dois sítios na área, sendo eles: Boca da Picada e Lava – pés, também caracterizados como acampamentos guaranis pesquisados pelo professor Vitor Hugo do LEPA – UFSM. No entanto, nada foi publicado.

E por último, nos anos de 1994 a 2002, sob a coordenação do arqueólogo Saul Eduardo Seiguer Milder do LEPA – UFSM, foram pesquisados mais cinco novos sítios, entre eles o Sítio Casarão dos Mello, objeto alvo deste estudo. O sítio Casarão dos Mello está sendo escavado periodicamente desde 1998 e se constitui em uma residência do século XIX.

As preparações para os trabalhos de campo (prospecções arqueológicas) trouxeram a necessidade de uma revisão da história local, a fim de levar luz aos conhecimentos sobre o contexto da região. Nesse sentido, autores como BELTRÃO (1979), CORUJA FILHO (1963), GUILHERMINO CESAR (1970) e MOREIRA BENTO (1976) foram consultados.

Esses autores são caracterizados como fontes primárias sobre a história da região central do estado do Rio Grande do Sul e contribuíram com questões importantes para as pesquisas em São Martinho da Serra.

A partir da leitura, foi possível identificar o caráter bélico do município: São Martinho situava-se exatamente na fronteira entre os Impérios Português e Espanhol no século XVIII e sua posição geográfica (localizado na borda de um monte íngreme) caracterizavam o local como um ponto de disputa no sistema de guerras do período.

 A efetiva urbanização da região ocorreu durante o século XIX, no qual o contexto bélico do município caracteriza a importância da sua ocupação.

 O século XIX é marcado pelo incentivo, por parte da coroa portuguesa, ao povoamento do estado do Rio Grande do Sul. De acordo com a situação histórica de guerras e disputas territoriais, o povoamento da região se constituía numa maneira de defesa do território contra invasões estrangeiras. O incentivo dado pela coroa portuguesa ocorria através da doação de terras e/ou do favorecimento da imigração.

O sítio Casarão dos Mello se situa nesse contexto de povoamento, no qual, o proprietário do casarão era um comandante militar que lutou na guerra do Paraguai e recebeu como recompensa uma grande propriedade de terra (sesmaria). O processo de doação de sesmaria na região central do estado iniciou-se em 1812, sendo o dono do Casarão, João Batista de Oliveira Mello, um dos contemplados.

Fig. 2: Foto do sítio arqueológico Casarão dos Mello.

Coletou-se desde ossos (restos de alimentação), peças de metal, vidros e uma enorme quantidade de fragmentos de louças. A freqüência dessa centena de fragmentos de louça trouxe a necessidade de uma reflexão sobre os possíveis significados desses artefatos para os grupos que os incorporavam.

Sendo assim, esse trabalho propõe-se a realizar um estudo sobre os fragmentos de louça coletados no sítio, levando em consideração o contexto histórico de São Martinho da Serra.

METODOLOGIA:

Os fragmentos de louça estão presentes entre o maior número de materiais arqueológicos coletados em sítios coloniais de caráter doméstico. Esses fragmentos correspondem a peças de serviços de jantar, chá e café, como pratos (rasos, fundos, sobremesas), xícaras, pires, malgas, canecas, tigelas, bules e açucareiros, em uma variedade de tipos decorativos.

Fig. 3: Foto dos fragmentos de louça.

A metodologia utilizada para o estudo deste tipo de material iniciou-se pela lavagem, contagem, catalogação e classificação dos mesmos. Passados esses estágios iniciais, os fragmentos foram submetidos a uma ficha tipo – quantitativa, no qual eram enunciados a parte da peça pela qual pertenciam (borda, corpo, fundo, alça, apêndice) e o tipo decorativo.

É interessante observar que a conceituação dada para a definição de “tipos” decorativos, advém das necessidades internas das pesquisas, ou seja, da necessidade de separar os fragmentos por grupos de semelhanças, tanto a nível constitutivo (material), como de decoração. A nível constitutivo, os fragmentos variavam quanto à pasta e esmalte.

Ident. sítio

Quadr.

Catálogo

Borda

Fundo

Apêndice

Alça

Corpo

Tipo Cream.

IBM – 11

Lixeira

244

x

       

X

IBM – 11

Lixeira

244

 

x

     

X

IBM – 11

Lixeira

244

     

x

 

X

Fig. 4: Exemplo de ficha Tipo – Quantitativa.

RESULTADOS

Foram elaboradas 52 fichas tipo – quantitativos e analisados 2801 fragmentos de louças. A partir destas fichas podemos elaborar o seguinte gráfico:

Fig. 5: Gráfico dos tipos decorativos

Os gráficos apresentam a louça “branca” como a de maior quantidade entre os fragmentos do sítio, totalizando em torno de 1605 fragmentos. Seguidas das louças brancas aparecem os fragmentos do tipo “creamware”, faiança típica da segunda metade do século XVIII, com o número total de 258 fragmentos. As louças do tipo “brancas” e “creamware” são caracterizadas como as mais baratas do século XIX, compondo-se de pratos, tigelas, utensílios de cozinha e urinóis.

A partir dos resultados do gráfico, é possível notar que, entre as louças decoradas, o tipo “willow” apresenta-se com o número mais relevante de fragmentos. Este tipo de louça enquadra-se no grupo das decalcadas, cuja técnica permitiria a fabricação de peças exatamente iguais, com decoração bastante complexa. Na última década do século XVIII, elas custavam entre três e cinco vezes mais que a “creamware”. Esta diferença, no entanto, caiu para uma vez e meia a duas vezes mais, em meados do século XIX.

A louça “willow” tornou-se extremamente popular no século XIX, sendo produzida até 1880 por 54 estabelecimentos ceramistas ingleses. Foram fabricadas maciçamente na cor azul, embora existam exemplares em verde e rosa. Foram identificados 460 fragmentos de louça do tipo “willow” no sítio em estudo.

Dentre essa categoria de louças decalcadas, o tipo “willow” era o mais barato enquanto os “borrados” os mais caros. Obtivemos um total de 81 fragmentos de louça “borrada”, ou “azul borrão”. A técnica de decoração dessas louças era o decalque, na qual, a tinta escorria dentro do esmalte produzindo um aspecto borrado. Seu período de produção abrange de 1835 a 1902.

Como pode ser notadas no gráfico, seguidas das louças “willow”, apresenta-se às louças do tipo “florais”, com o total de 118 fragmentos, o que a classifica entre as terceiras mais numerosas do sítio. Estas louças exigiam habilidade suficiente para que em um mesmo serviço as peças ficassem razoavelmente semelhantes. Seus preços estavam em um patamar abaixo da “willow” porém superior às louças do tipo “Shell”.

Foram coletados 77 fragmentos de louça do tipo “shell”, caracterizados com um tipo de louça de decoração pouco complexa e que não exigem muita habilidade do artesão, permitindo diferença entre as peças. Esse tipo de fragmento apresenta a borda moldada com suaves incisões, estando a decoração pintada limitada a um friso ao redor da borda. Embora a decoração em azul seja a predominante, existem ainda variedades nas cores verdes, rosa, castanho e púrpura. Devido ao seu baixo custo, essas louças foram amplamente consumidas na década de 1850, isso fez com que sua produção fosse abruptamente interrompida, justamente quando estava no auge do seu consumo. Normalmente, a louça “Shell” é avaliada num preço intermediário entre a louça branca “ordinária” mais barata e as louças “pombinhos” (willow) mais cara.

Além das louças acima referidas, foram classificados outros tipos decorativos entre os fragmento, porém, podemos agrupa-los em quatro categorias:

1.        Louças mais baratas, sem qualquer decoração. Incluem-se as “brancas” e as “creamware” – maior número de fragmentos.

2.        Louças decalcadas, cuja técnica permitia a fabricação de peças exatamente iguais, com decoração complexa. Incluem-se as “willow” e “borrão” – segunda mais numerosas.

3.        Louças pintadas com motivos florais – quartas mais numerosas.

4.        Louças com decoração pouco complexa, como as “Shell” e “anelar”, que não exigiam demasiado esforço do artesão – menos numerosas.

CONCLUSÃO

Nos estudos sobre louças, é comum estabelecer um paralelo entre louças, cronologias de sítios e/ou poder aquisitivo do grupo que as incorporou.

De acordo com o primeiro tipo de análise, as louças apresentariam a cronologia do sítio por se constituírem em um produto padronizado com períodos específicos de produção, o que indicaria o período no qual o sítio foi ocupado.

Entretanto, é interessante observar, que as louças não são necessariamente utilizadas no período de sua produção. A existência de um possível “atraso” causado pela distância cronológica entre o período de fabricação do material e o período de utilização possui uma série de motivos a serem analisados.

Nesse sentido, São Martinho da Serra mostra-se um bom indicador dessa disparidade. A maior parte dos fragmentos de louça consumidos no casarão dos Mello são de origem inglesa, o que nos leva a concluir que, desde o período de sua fabricação na Inglaterra até o período de sua utilização no interior do RS, está presente uma enorme distância espacial e conseqüentemente cronológica. Assim, seria complicado tentar estabelecer o período de ocupação do sítio a partir do período de fabricação das louças.

Um outro tipo de análise no qual os fragmentos de louça estão sujeitos, é a representação destes como indicadores do poder aquisitivo do grupo que os adquiriu. Nesse sentido, determinados tipos de louça (mais baratos ou mais caras), indicariam o “status” social do grupo que as tivesse comprado.

Segundo LIMA (1995), o século XIX é marcado pelas alterações na estrutura das refeições e na sofisticação dos equipamentos à mesa. Segunda a arqueóloga, a ânsia por parte dos grupos sociais deste período por identificação e reconhecimento perante a sociedade, tornava-os absorventes das novidades do período. Assim sendo, as louças serviriam para indicar o “status” e o poder de compra de quem as incorporassem durante os cerimoniosos jantares ou chás do século XIX.

Entretanto, a presença de centenas de fragmentos de louça mais barato ou mais caros no Casarão dos Mello não remetem necessariamente para a posição social do grupo que os adquiria. A distância entre o município e as principais cidades portuárias (pontos de recebimento e distribuição dos manufaturados importados) alteram e limitam as possibilidades de escolha desses itens de consumo. Dessa forma, só era possível comprar o que estava sendo disponibilizado nos mercados locais (ou através dos caixeiros viajantes) independentes do seu poder de compra.

Por fim, as análises das louças e os modelos elaborados para a sua interpretação, apresentam dificuldades quando aplicados nos sítios do interior do Rio Grande do Sul e geram a necessidade de novas abordagens para as interpretações no cenário riograndense.

NOTAS

[1] Universidade Federal de Santa Maria. Centro de Ciências Sociais e Humanas. Departamento de História. Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas. Avenida Marechal Floriano Peixoto, 1184 (anexo). Prédio da Antiga Reitoria. CEP:97015-130.  e-mail:codevilla2001@mail.ufsm.br

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