Especial NAyA 2003 (version en linea del cdrom)

"As cartes de visite no Brasil: um estudo sociológico das imagens fotográficas de Militão Augusto de Azevedo em São Paulo (1865-1885)".

Marcelo Eduardo Leite*

* Faculdade de Ciências e Letras da Unesp/Araraquara SP (Financiamento FAPESP), Programa de Pós-graduação em Sociologia (pesquisa em andamento) e-mail: marceloeduardoleite@hotmail.com]

I. Resumo.

          A presente pesquisa tem como objetivo central analisar a produção de retratos de Militão Augusto de Azevedo na cidade de São Paulo, entre os anos de 1865 e 1885. Embora mais conhecido, e estudado, como fotógrafo de paisagem urbana em transformação, Militão é possuidor de uma das mais interessantes coleções de retratos de personagens da sociedade paulistana do século XIX. As figuras por ele retratadas atestam sua grande preocupação com o contexto social e com a ampla gama de tipos humanos que compunham a cena paulistana da época. A análise desta produção retratística de Militão oferece uma via de acesso privilegiada para a compreensão da sociedade brasileira no século XIX. Pelas lentes do fotografo é possível captar a heterogeneidade humana e social que compõe o cenário urbano de São Paulo, com ênfase nos gestos e  atitudes, nos modos e modas.

 

II. Introdução: objetivos da pesquisa e justificativa

                A presente pesquisa tem como objetivo central a análise da produção retratística de Militão de Azevedo em São Paulo, especialmente de uma coleção de retratos por ele organizada entre 1865 e 1885. A escolha desse fotógrafo se justifica, antes de mais nada,  pela grandeza do material por ele deixado, que pode ser aferida tanto pela qualidade técnica e artística dos retratos, como também pelo seu volume. Militão deixou um importante acervo que possibilita as mais variadas abordagens e interpretações, e que vem sendo trabalhado por estudiosos das mais variadas áreas do conhecimento. Se isto é verdade, as pesquisas têm recaído fundamentalmente sobre as suas paisagens urbanas e não sobre os retratos, objeto de interesse deste trabalho. Dentre os retratos foram selecionados os "retratos de corpo inteiro", que oferecem um maior número de elementos para a análise.

                 As fotografias de Militão, de modo geral, se inserem num novo bloco de produções imagéticas do século XIX no Brasil, que vem à tona a partir de 1860 com o surgimento de um grande número de ateliês fotográficos nas mais importantes cidades o país. Este momento tem na carte de visite[i] e no cabinet portrait[ii] seus principais produtos. A produção de Militão, no entanto, se diferencia daquela do período, voltada sobretudo para o registro das elites, principalmente pelo fato de retratar os mais variados personagens da sociedade paulistana; por isso mesmo seus registros impõem uma profunda reflexão a respeito da sociedade brasileira da época. É o que indica Kossoy, quando afirma que estes retratos chamam a atenção pelo fato de formalizarem não "[...] apenas os representantes da elite. O vasto arquivo comprova não existirem distinções sociais nem raciais diante de sua objetiva"(KOSSOY, 1978,:  117). Para o autor, as lentes "democráticas" de Militão "[...] constituem-se  para historiadores, antropólogos, sociólogos, e outros estudiosos [...]", farta documentação que sugere interpretações significativas (KOSSOY,1980:51).

                Seguindo a trilha dos trabalhos que apontam para a importância da fotografia no Segundo Império, este trabalho, ao privilegiar a análise do material fotográfico produzido por Militão de Azevedo, visa acompanhar, pela análise detida nas imagens, como novos segmentos sociais vão tendo acesso ao recurso fotográfico, desenhando novas caras do país e do povo brasileiro, e destacando a heterogeneidade do período. Os  retratos de Militão permitem realizar uma reflexão a respeito da sociedade brasileira e sobretudo da sociedade paulistana no final do século XIX, permitindo também acompanhar as transformações da fotografia como recurso técnico, como forma expressiva. Jogam luz ainda sobre a figura do fotógrafo, como profissional e artista no período em questão. 

III. O universo da pesquisa: síntese da bibliografia sobre o tema

                O século XIX, já no seu início, é marcado pelo advento da fotografia, fruto dos mais variados estudos que buscaram, pela  união dos conhecimentos da física e da química, a produção de uma imagem reprodutível. A descoberta se acomoda com perfeição em um cenário atravessado por grandes transformações técnicas em todas as áreas e atividades. Em 19 de agosto de 1839, o daguerreótipo é reconhecido como o primeiro registro fotográfico, porém em cópia única. Posteriormente, novos experimentos possibilitam a reprodução em série; em 1850, por exemplo, temos o aparecimento do colódio úmido[iii] que, permitindo uma maior difusão de imagens, se adapta melhor ao mercado em formação e às necessidades das novas camadas sociais.

                O daguerreótipo chega ao Brasil em 1840, apenas poucos meses depois de sua difusão e encontra aqui um ambiente com características bem diferentes das européias. O país vive o início do Segundo Império, sob o comando de um novo imperador, que assume o poder aos 14 anos de idade, após o golpe da maioridade.  A sociedade encontra-se dividida basicamente entre o aparato imperial, a aristocracia rural, uma população de trabalhadores livres e a mão-de-obra  escrava.  Se, de um lado, observa-se uma estrutura agrária tradicional, que herdara da época colonial toda uma estrutura sócio-econômica,  por outro, novos valores e modismos se difundem no país sobretudo através da elite que viaja freqüentemente para o continente europeu. O desenvolvimento do uso do daguerreótipo se dá inicialmente nas áreas portuárias, o que reflete a realidade de um país colonizado, regido por um modelo exportador de produção e para a importação de novidades européias.

                 A fotografia chega então ao país simultaneamente ao seu lançamento na França,  e é acoplada de imediato  ao aparato imperial. D. Pedro II, um apaixonado pelo registro fotográfico, é o primeiro cliente dos fotógrafos que aqui se instalam. Ao contrário das aristocracias européias que viam a pintura como a "verdadeira" forma de registro, considerando a fotografia como uma "imagem burguesa" e, portanto "menor", o imperador procura, já no início do seu governo, aliar a sua imagem ao significado moderno da fotografia. Os registros fotográficos são responsáveis pelo reconhecimento do governo imperial mundo afora e, mesmo nos locais mais distantes, os artistas se colocam a serviço de um Império  preocupado em mostrar ao mundo sua almejada solidez. Num projeto modernizador que contraditoriamente mantém, dentro de sua estrutura econômica e social, a escravidão.

                As imagens do Brasil dos primórdios do Segundo Império, sejam aquelas fixadas pelas litografias, pinturas ou daguerreótipos, têm a preocupação de projetar a magnitude das obras aqui desenvolvidas, como ferrovias e construções arquitetônicas, sublinhando a existência de uma civilização dos trópicos, como indicam as fotos exibidas nas Exposições Universais. Diante disso, é possível afirmar que os primeiros registros produzidos entre nós se caracterizam  pelo desenvolvimento de um olhar mais ligado ao futuro do império do que ao passado  colonial.

                Mas, em uma monarquia na qual convivem escravidão, miscigenação, um projeto civilizador de cunho europeizante, personagens variados, cenário urbano em construção, elites agrárias, índios etc., é natural que, do jogo de representações que a fotografia permite explorar, participem todos os elementos da nação. Os fotógrafos e seus trabalhos permitem inclusive que a população da capital tenha contato com as "entranhas" da nação. A fotografia tem, também desta maneira, um papel fundamental no "estreitamento" do espaço geográfico de um país continental,  permitindo que o país se conheça através das imagens fotográficas.

                Assim, os fotógrafos pioneiros não se voltam exclusivamente para os índices de modernização, de acordo com as demandas do monarca e de suas elites. Se estes profissionais, em algumas ocasiões, mantém vínculos diretos com o imperador e os setores dirigentes do Segundo Império, em outros, estabelecem laços seja, por exemplo, com missões científicas estrangeiras, seja com as elites agrárias; atendem ainda a uma vasta clientela urbana com o advento das carte de visite. Ao descrever o trabalho dos primeiros fotógrafos atuantes no Brasil, Gilberto Ferrez, na precursora obra  A fotografia no Brasil (FERREZ, 1953: 99), já menciona que, paralelamente à prestação de serviços ao imperador e à elite cafeicultora, os fotógrafos pioneiros buscam novos temas participando inclusive de importantes expedições  etnográficas pelo interior do país.

                Na segunda metade do século XIX, a capital imperial conta com um crescimento dos estúdios fotográficos e, sobretudo com a grande expansão cafeeira, vários estúdios são instalados no Vale do Paraíba e na cidade de São Paulo. Em um momento em que os elementos da vida burguesa são difundidos com rapidez e uma nova força surge dos escombros da antiga ordem, as representações de status ganham importância diante de uma nova realidade que acena para a possibilidade de ascensão social. Forma-se assim uma sociedade "[...] em que as relações sociais estão sujeitas a freqüentes mudanças no tempo e no espaço; em que predomina uma variedade muito grande de critérios de julgamento; em que as demarcações sociais não são intransponíveis e a comunicação entre os grupos é uma regra [...]" (SOUZA,1987:123). Assim,  partir de 1877, principalmente após a ligação por ferrovia entre São Paulo e Rio de Janeiro, os novos costumes da capital imperial se difundem com maior facilidade. Para a população das cidades do Vale do Paraíba nota-se a necessidade de registrar a prosperidade vivida e, ao mesmo tempo, é possível perceber, em diferentes regiões, a influência da moda, da arte e da cultura européia, sobretudo francesa.

                É em um momento marcado pela procura de novos mercados que o jovem Militão vem para a província de São Paulo, em 1862. Nascido em 1840 no Rio de Janeiro,  vindo a falecer em 1905 em São Paulo, Militão inicia  sua atividade fotográfica, ainda na capital imperial, quando provavelmente trava "[...] conhecimento com os proprietários do estúdio Carneiro & Smith [...] ainda nos anos 50"(KOSSOY, 1980: 17). Tendo desenvolvido paralelamente as atividades de ator e de fotógrafo, Militão atuou na Companhia Joaquim Heleodoro (1858-1860), mas foi a vinda da Companhia Dramática Nacional, onde trabalhou entre 1860-1862, o verdadeiro motivo da sua vinda à capital paulista, quando esta "[...]se estabelecia na cidade para uma temporada e da qual Militão participava como ator” (CARVALHO e LIMA, 1998: 111).

               Esta experiência no teatro, a meu ver, tem influência decisiva no modo de Militão fotografar. Enquanto outros fotógrafos dedicam-se prioritariamente aos retratos, o grande mercado da época, notamos que ele exerce uma liberdade criativa ao eleger a paisagem urbana como objeto de seus registros. Nota-se, assim, como característica fundamental do seu trabalho, sobretudo nas paisagens de 1862, o que Lima e Carvalho chamam de o olhar de um "[...] visitante aprendiz de fotografia e não de um profissional contratado por uma instituição ou empresa" (IDEM).

                Estas fotos tiradas em 1862 foram usadas posteriormente num dos mais importantes documentos existentes a respeito da cidade de São Paulo no século XIX, o Álbum Comparativo de Vistas da Cidade de São Paulo. Fruto do reaproveitamento de paisagens urbanas que não foram vendidas pelos ateliês de Carneiro & Gaspar e Photographya Americana, bem como de devoluções de fotos enviadas a outros ateliês, o Álbum Comparativo de Vistas da Cidade de São Paulo confronta registros fotográficos tirados entre 1862 e 1887 que mostram várias localidades da cidade e  suas transformações urbanas. Para Lima, o Álbum Comparativo "[...] pode ser considerado um exemplo da percepção do discurso baseado na idéia de progresso que iria justificar as intervenções urbanísticas na cidade nos anos subseqüentes"(LIMA, 1991:68).

                Paralelamente às paisagens urbanas, já a serviço do ateliê Carneiro & Gaspar, Militão é responsável por milhares de retratos. Segundo Kossoy, os retratos de Militão "[...] denotam a visão crítica de um fotógrafo que vai além do simples ato repetitivo de operador da câmera, ao retratar os mais diferentes tipos humanos de uma sociedade em formação e constituem um documentário único da paisagem urbana de São Paulo da época"(KOSSY, 1978:12). Sobre os retratos, o autor considera, ainda, que estes "gravaram democraticamente os tipos dos diferentes estratos sociais" (KOSOY, 1980: 51), fornecendo "um farto arquivo visual de tipos da época [...]" (KOSSOY, 1978: 08).

                Fruto da atividade profissional fotográfica mais popular e mais rentável no século XIX, estes retratos chamam a atenção pelo fato de, em muitos casos, os retratados serem registrados, com sua indumentária habitual e em poses que denotam maneiras cotidianas. Militão registra estes mais diferentes tipos sociais, num período em que a fotografia, e sobretudo as carte de visite, ainda está a serviço, como vimos, da construção simbólica e da afirmação social dos segmentos emergentes, no campo e nas cidades. Isto é: podemos considerá-lo um fotógrafo diferenciado no tocante  ao uso da carte de visite, já que  retrata inúmeros personagens comuns da urbe paulistana, como escravos, estudantes, padres, soldados, músicos, atores, colonos, políticos, etc..

                Estudos recentes apontam que o Photographia Americana, criado em 1875 por Militão, muito provavelmente, tinha uma clientela mais popular que os demais estúdios instalados em São Paulo neste período. Segundo Lima, o preço cobrado pelas fotos era um dos mais baratos de São Paulo: "uma dúzia de retratos era vendida no Photographia Americana por 5$000, o equivalente a duas camisas para homem ou cinco passagens para a Penha"(LIMA, 1991: 75). A própria localização do ateliê de Militão, defronte à "[...] Igreja do Rosário, freqüentada pela população negra [...] na então rua da Imperatriz, 58" (CARNEIRO e LIMA, 1998: 116), talvez explique a grande quantidade de negros fotografados, bem como a própria forma em que estes aparecem nessas fotos, não como escravos, tal como nas fotos de Christiano Júnior, que toma o modelo na sua condição escravista. Inúmeras cartes de visite mostram ainda artistas de teatro e coristas, muitos retratados quando da passagem  por São Paulo para as apresentações. Esta proximidade existente entre o trabalho de Militão e o meio artístico - do qual, lembremos, ele nunca se desligou totalmente - é mais um elemento diferenciador a ser considerado na análise.

                Descontente com o desempenho do seu estabelecimento, Militão coloca-o à venda no ano de 1884, alegando, como mostra sua correspondência com amigos, a falta de um profissional retocador, além de um gerenciamento melhor. Enfrentando sérios problemas comerciais, acaba por  liquidar o Photographia Americana  em outubro de 1885 enviando ao procurador da Câmara Municipal e ao coletor de Rendas Gerais o aviso de que estaria encerrando as atividades seu estabelecimento, após 10 anos de atividade. Após o leilão dos equipamentos e móveis de seu ateliê, parte para a Europa. É interessante observar que é após essa viagem que ele tem a idéia de produzir o Álbum Comparativo, possivelmente influenciado pela febre das vistas urbanas, dos postais e dos álbuns mostrando as cidades européias. Ao vender o Álbum Comparativo, segundo ele sua obra prima, Militão de Azevedo, em carta a seu amigo Portilho, diz: "[...] como Verdi despedindo-se da música escreveu seu Otello, eu quis despedir-me da photographia fazendo o meu" (AZEVEDO apud, GRANGEIRO, 1993: 164).

IV. Referenciais metodológicos

                 A fotografia vem sendo utilizada pelos historiadores como documento de época, já há muito tempo. Porém, nas últimas décadas, constatamos o aumento do número de trabalhos que têm os registros fotográficos como objeto de análise, por exemplo Carneiro, Paula e Andrade. Ainda no campo da pesquisa histórica, pesquisadores como Leite e Von Simson, por exemplo, vêm se utilizando da fotografia com o intuito de desenvolver trabalhos que abordam aspectos da memória social. Se a fotografia tem sido bastante utilizada como fonte, também tem sido objeto de preocupação dos historiadores como recurso técnico e artístico. Neste terreno da história da fotografia, os trabalhos de Ferrez, Kossoy, Turazzi, Vasquez e Grangeiro são referências obrigatórias, sobretudo  para o acompanhamento do desenvolvimento da fotografia no Brasil, no século XIX.

                Paralelamente aos estudos históricos que se apóiam nos materiais visuais, sobretudo  nas últimas décadas, as Ciências Sociais também têm avançado no terreno da visualidade e, ao avançar, fica claro que não é apenas o olho humano, mas também o registro mecânico uma forma possível de melhor aprofundamento e compreensão do "[...] poder significante de realidades [...]" por meio de sua visualidade (SAMAIN, 1987: 6). As discussões acerca do uso da imagem na, e para, a pesquisa têm provocado muitas mudanças nos métodos das Ciências Sociais. Dentre estas mudanças está a  procura dos mais variados registros visuais como objeto de  estudo e como instrumento de expressão social, isto é: a imagem é objeto de estudo e também como recurso metodológico. Segundo Silvia  Caiuby Novaes, "Não é mais aceitável a idéia de se relegar a imagem a segundo plano nas análises dos fenômenos sociais e culturais"(NOVAES, 1998: 116). Desta forma, inúmeros trabalhos vêm sendo desenvolvidos tendo como fonte os registros visuais - tais como pintura, cinema e a moda - e grande parte destes tem contemplado a própria fotografia.

                Estas novas incursões no campo da análise de imagens criam caminhos teórico-metodológicos inéditos que podem ser aferidos, entre outros, pelo desenvolvimento recente da  Antropologia Visual, que busca levar o uso da imagem, seja fotográfica, cinematográfica  ou videográfica, para o centro da pesquisa antropológica. Na Antropologia Visual, a imagem ocupa um lugar central na investigação, e é utilizada como forma direta para o conhecimento. Cabe observar que em alguns trabalhos neste campo, os pesquisadores auxiliam-se de conhecimentos da semiologia para decifrar o teor simbólico presente nos registros imagéticos. Como exemplo desta modalidade de pesquisa, temos algumas experiências onde o próprio grupo, objeto da investigação, registra o seu cotidiano em imagens. Imagens estas que, sob a coordenação do pesquisador, tornam-se o material a ser utilizado no estudo antropológico. Nesta modalidade de trabalho, o material levantado permite que o  pesquisador, numa segunda etapa, realize uma  reflexão que congrega conhecimentos de várias áreas, entre elas a Semiologia, Semiótica, Psicologia e a Sociologia, além da própria Antropologia.

                É importante lembrar que ainda na área da Antropologia, há pesquisas apoiadas em documentos visuais, sem no entanto serem propriamente classificadas de Antropologia Visual. Um bom exemplo é o estudo acerca das representações simbólicas do imperador d. Pedro II, desenvolvido por Lilia M. Schwarcz, já citado nesse projeto, que tem na iconografia um recurso fundamental para análise. O que os estudos específicos sobre fotografia têm ensinado, antes de mais nada, é  que devemos considerar que as fotografias são construções definidas por uma complexa trama de técnicas intrínsecas a elas, "[...] mas cuja combinação e manipulação são diretamente definidas pelo operador. Este operador não é neutro nem inocente. Ele está determinado pela cultura a qual pertence, desejoso de transmitir uma mensagem, num momento histórico particular, para um público preciso." (SAMAIN, 1987: 49) Desta forma, é preciso compreender o registro fotográfico como resultado dos valores sociais e culturais de seu tempo e espaço, e reconhecer o operador como um filtro cultural das condições que geraram o registro fotográfico.

                A fotografia, no termos de Burke, não é apenas "[...] um registro objetivo da realidade, enfatizando apenas a seleção feita pelos fotógrafos segundo seus interesses, crenças, valores, preconceitos, mas também seu débito, consciente ou  inconsciente, às convenções pictóricas"(BURKE, 1992: 27). de sua época. Nos mais variados trabalhos fotográficos, notamos uma comunicação entre os valores canônicos do período e a produção de imagens em questão, e que os "[...] fotógrafos não apresentam  reflexos da realidade, mas representações da realidade [...]" (IDEM).

                Na fotografia, "[...] a linguagem fotográfica - como uma elaboração sistemática de significações de uma sociedade - apresenta-se como uma resposta provisória, parcial e fragmentada de questões já feitas” (LEITE, 1998: 24) Estas significações existentes nos registros fotográficos são para as sociedades retratadas, ao mesmo tempo,  "[...] as imagens que esta sociedade produz de si mesma, concretamente e em termos simbólicos".(TURAZZI, 1995: 110). Desta forma, "Estas imagens não falam por si sós, mas expressam e dialogam constantemente com os modos de vida típicos da sociedade que as produz"( NOVAES, 1998:116).

                Isso posto, este trabalho, que tem na análise da fotografia seu ponto central, está baseado em dois pressupostos.  Primeiramente, na idéia  que as fotografias são materiais produzidos socialmente e, portanto, fruto das condições oferecidas pela realidade social em questão. Disto deriva a necessidade de considerar as condições técnicas da produção e a formação social do fotógrafo escolhido, bem como  o ambiente em que este material foi produzido e as motivações que permeiam esta produção. Em segundo lugar, deve-se levar em conta como estas imagens podem conter informações que estão, na verdade, extremamente ligadas às formas de leitura que o ambiente que as produziram elabora, de acordo com seus anseios.


Homen com pá, 1883

Atriz, 1880

Casal, 1880

Menina Negra, 1880

 

V. Fontes e procedimentos da pesquisa

                A presente pesquisa vem se utilizando de fontes primárias formadas por álbuns de fotografia de autoria de Militão que pertence ao "Acervo Militão" da Seção de Documentação do Museu Paulista, e por livros que correspondem à sua produção retratística. O conjunto do material é formado por um total de seis volumes contendo aproximadamente 12.000 retratos. Estes livros são "[...] o que se acredita ser o livro de controle e mostruário dos dois estúdios (Carneiro & Gaspar e Photographia Americana), são retratos produzidos originalmente no formato carte de visite e cabinet portrait [...]"(CARVALHO e LIMA, 1997: 209). Tais álbuns foram produzidos originalmente entre os anos de 1865 e 1879 ( livro I, 1865; livro II, 1870; livro III, 1874; livro IV, 1877; livro V, 1879; livro VI, sem data). O material imagético a ser pesquisado encontra-se sob a forma de um banco de dados no qual os retratos podem ser examinados por temas.

                Para efeitos desta análise, pretende-se privilegiar, como indicado antes, os retratos classificados sob a palavra-chave "retratos de corpo inteiro". Esta escolha se dá principalmente pelo fato destas imagens permitirem uma maior compreensão do contexto social retratado, já que congrega uma maior gama de elementos para serem analisados (vestuário, objetos e adereços do ateliê e até elementos que parecem ter sido levados para a "cena" fotográfica pelo próprio retratado).

VI. Bibliografia

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NOTAS

[i] A carte de visite,  desenvolvido pelo fotógrafo André Disdéri (1819-1889) na França no ano de 1854,  consistem em cartões fotográficos nos quais as pessoas posam, em geral individualmente. São retratos que permitiam a reprodução em maior escala graças ao sistema de lentes múltiplas; Boris KOSSOY, Origens e Expansão da fotografia no Brasil. século XIX. p. 38, Carlos Eugênio Marcondes de MOURA. "Retratos quase inocentes", In: Retratos quase inocentes (org. Carlos E. M. MOURA), São Paulo, Nobel, 1983, pp. 11-2.

[ii] O cabinet portrait uma modalidade fotográfica difundida a partir da década de setenta do século XIX, consiste em um cenário fotográfico formado por um ambiente decorado, onde o fotografado tem a favor da construção simbólica um ambiente que lhe ’permite’ desempenhar com maior clareza, diante da câmara do fotógrafo. A esse respeito consultar, Aracy A. AMARAL, "Aspectos da comunicação visual numa coleção de retratos", In: Retratos quase inocentes (org. Carlos Eugênio M. de MOURA), São Paulo, Nobel, 1983, p. 12.

[iii] O colódio úmido é um recurso no qual os produtos químicos tinham que ser levados para o local da execução da fotografia para a revelação o que limitava o seu uso. Por outro lado foi a primeira reprodução oriunda de um negativo a ser difundida em larga escala. Esse método veio a ser substituído por volta de 1870 pelas chapas secas,  Gilberto FERREZ, A fotografia no Brasil. Rio de Janeiro, Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1953, p. 100. É importante lembrarmos também o advento, por volta de 1850, do ambrótipo, uma imagem em positivo feita a partir de um negativo do colódio úmido, que colocado sobre um fundo negro e instalado em estojos imitavam o daguerreótipo, porém, com um custo muito menor, o que tornaram-nos muito populares. Outra variação do colódio  foi o ferrótipo, também derivado do colódio que constituía-se  de "um positivo obtido diretamente sobre fina placa de ferro laqueada", oferecendo uma maior durabilidade, foi muito usado por fotógrafos ambulantes até o final do século XIX; Boris KOSSOY, Fotografia e História, São Paulo, Série Princípios, Ed. Ática, 1989, p. 103-5.


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