ASPECTOS DA SOCIABILIDADE ESTANCIEIRA DO SÉCULO XIX: A LOUÇARIA DA ESTÂNCIA VELHA DO JARAU [*]
Márcia Solange Volkmer
Tânia Tomázia do Nascimento
Fernanda Codevilla Soares
Saul Eduardo Seiguer Milder
RESUMO
O Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas da Universidade Federal de Santa Maria vem desvelando importantes aspectos de nossa História na Campanha Sul-Riograndense. Neste cenário, situa-se o sítio arqueológico RS Q-17 Estância Velha do Jarau. As ruínas encontram-se na base do Cerro do Jarau e instigam pesquisas que tem por objetivo principal compreender a complexa organização e as relações da antiga Estância. Trata-se de um estudo de caráter multidisciplinar, no qual a Arqueologia Histórica utiliza-se de um amplo leque de fontes de informação para conhecer esse passado tão ligado a nós. A fim de incorporar ao seu contexto histórico-geográfico os aspectos de sua cultura material, o sítio, com 30 hectares de área construída, teve todas as suas estruturas mapeadas, e cerca de 100 m2 foram escavados utilizando-se da decapagem e de um detalhado controle dos níveis estratigráficos. Em laboratório, estão sendo analisados os fragmentos de louça recuperados da sede da Estância. Essa cultura material torna possíveis algumas interpretações a cerca do cotidiano desse grupo, bem como dos fatores que tornaram possível e "necessária" a presença de tais peças nesse importante ambiente social do século XIX.
ABSTRACT
The Laboratory of Studies and Archeological Researches of UFSM are revealing important aspects of our History in the Campaign South-Riograndense. In this scenery, he locates the archeological site RS Q-17 Old Stay of Jarau. The ruins are in the base of the Hill of Jarau and they urge researches that he has for main objective to understand the complex organization and the relationships of the old stay. It is a study of character multidisciplinar, in which the Historical Archeology is used of a wide fan of sources of information to know that passed so linked to us. In order to incorporate to his historical-geographical context the aspects of his material culture, the ranch, with 30 hectares of built area, had all their mapped structures, and about 100 m² they were dug being used of the decapagem and of a detailed control of the stratigraphical levels. In laboratory, the recovered dish fragments of the headquarters of the Stay are being analyzed. That material culture turns possible some interpretations the about of the daily of that group, as well as of the factors that turned possible and "necessary" the presence of such pieces in that important social atmosphere of the century XIX.
INTRODUÇÃO
A formação do Estado do Rio Grande do Sul traz em seus primórdios uma organização social e territorial bastante característica. O desenvolvimento de estabelecimentos denominados Estâncias – que surgem para ocupar e povoar essas terras que se encontram sob constante ameaça espanhola – acaba por delinear e firmar alguns padrões de relacionamento e conduta. Dessa forma, as Estâncias contribuem para a formação de uma base econômica – a criação de gado – mas fundamentalmente, são ambientes cuja organização e complexas relações dão origem a um referencial cultural, a hábitos e costumes caracteristicamente denominados “gaúchos”.
Considerando-se tal importância, o sítio arqueológico RS Q-17 Estância Velha do Jarau, através do presente estudo, muito tem a nos revelar a cerca deste contexto sócio – cultural rio-grandense. As ruínas da antiga Estância encontram-se na base do Cerro do Jarau, a sudoeste do Estado, na região denominada Campanha. Trata-se de uma área com especial importância histórica e arqueológica: fronteiras, lutas, gado, estâncias, além de serem encontrados aí os vestígios mais antigos de ocupação humana do Rio Grande do Sul. As datas sugerem aproximadamente 12 mil anos A.P. [1].
A Estância Velha do Jarau, que tem suas primeiras estruturas construídas por volta de 1817 [2], em meio a lutas que visam definir os limites territoriais nacionais, e alternando-se seus proprietários, vai, gradualmente, adquirindo proporções imponentes - é estabelecimento produtivo e locus residencial - e até 1905, quando é abandonada em função de um incêndio, constitui um importante ambiente de complexas relações.
A fim de incorporar ao seu contexto histórico - geográfico: uma estância na Campanha do século XIX, os aspectos de sua cultura material, várias escavações foram realizadas a partir do Projeto Salamanca. Só de área construída, registrou-se cerca de 30 hectares de terra, e a cultura material, minuciosamente resgatada na área central – que constitui a sede da Estância - é hoje objeto desta pesquisa. A análise dos fragmentos de louça recuperados – contextualizados ao sítio e relacionados com estruturas específicas – possibilita a reconstituição de um quadro mais amplo sobre os modos de vida e o cotidiano desse grupo. Ou ainda, permite-nos relacionar cultura material e o modo de vida em um ambiente rural, rústico, heterogêneo e complexo, onde uma Estância, com o proprietário e sua família, os peões e escravos, possui características e necessidades que lhe são próprias.
METODOLOGIA
A fim de se obter as informações tidas como indispensáveis para uma melhor compreensão do objeto em estudo, fizeram-se necessárias várias intervenções arqueológicas, análises laboratoriais e uma intensa e variada busca por fontes escritas. Todas as atividades, intrinsecamente relacionadas, dão a este estudo um caráter multidisciplinar, com o uso de variadas fontes de informação.
Em campo, todas as estruturas da Estância foram mapeadas e, além de sondagens e prospecções, mais de 100m² foram escavados desde o início do Projeto utilizando-se da decapagem e de um detalhado controle dos níveis estratigráficos.
O presente estudo, dentre a cultura material resgatada, vem, em laboratório, analisando os fragmentos de louça. A significativa quantidade e diversidade desse material, a priore, possibilita variadas inferências. No entanto, é necessária a sistematização de alguns dados. Para isso, procedeu-se a uma classificação que prioriza a identificação de pasta, técnica de decoração e padrão decorativo dos fragmentos. A partir desses dados, e de um amplo referencial bibliográfico, resultados e novas questões surgem constantemente.
RESULTADOS
Através de classificações e tipologias realizadas com os fragmentos de louça recuperados da Estância Velha do Jarau, constatou-se que em sua quase totalidade são pertencentes a peças de louça inglesa. A faiança fina (louça de textura granular) é tida como a mais popular no Brasil do século XIX [3]. Isso se deve a um incremento na indústria cerâmica inglesa, que a partir de 1770 aplica a técnica de impressão conhecida por transfer-printing, dispensando as pinturas à mão [4]. Com isso os produtos adquirem preços mais acessíveis, são produzidos em massa e dispersos mundialmente [5].
A faiança fina oriunda do Sítio estudado apresenta em sua grande maioria decoração
branca, seguida pelos fragmentos com diferentes padrões realizados em transfer-printing.
È o que mostra a figura 1: Faiança Fina-DECORAÇÃO
Figura 1- Fragmentos:
1- Branca (650); 2- Azul Borão (100); 3- Annular (99); 4- Italian
Scenery (56); 5- Willow (55); 6- Branca Porcelana (53); 7- Policroma
(45); 8- Creamware (38); 9- Shell Edged (21); 10- Branca Trigal (8).
De acordo com Miller [6], o valor das faianças finas varia conforme a técnica de aplicação da decoração. Se comparados aos seus níveis de preços, a grande quantidade de fragmentos da Estância do Jarau pertencentes às louças brancas sem decoração seriam os de menor preço. Por outro lado, todos os demais motivos – transfer-printing – estariam no nível mais elevado de sua escala. Vale ressaltar que o Azul Borão (encontrado em maior quantidade) dentre as louças decoradas por essa técnica é a de maior valor.
Esses fragmentos muito têm a revelar.
É preciso, no entanto, que primeiramente se conheça o modo de viver daqueles que, a sua maneira, fizeram uso dessas peças. Conhecer o nível socio-econômico dos moradores não satisfaz a essa necessidade. “Variáveis como etnicidade, distância dos núcleos urbanos, composição e ciclo de vida do grupo são fundamentais para a compreensão desse passado revelado agora pela cultura material” [5].
Sabe-se, por exemplo, do diferencial que há entre os modos de vida no meio rural e urbano. Nota-se o caráter mais conservador do primeiro, em contraponto com as constantes mudanças de hábitos e comportamentos ocorridos no segundo. Esse aspecto também não se caracteriza como definidor, mas aliado a outros fatores ajuda-nos na correta interpretação do que é sugerido pelos vestígios materiais.
Seria inconveniente afirmar que as louças da Estância Velha do Jarau caracterizam-se como de baixo valor por serem usadas no meio rural. Da mesma forma, é inconveniente atribuir à presença de peças mais caras algum gesto de ostentação por parte do grande proprietário. É indispensável que se considere a simultaneidade dos fatores, não sendo cada qual, isoladamente, responsável por um modo de vida. O fato de um estancieiro possuir muita riqueza em terras, não faz com que tenha de ostentar essa riqueza em seus comportamentos diários, por exemplo. Diferente de outras regiões, no Rio Grande do Sul, entre a própria camada senhorial não houve grande refinamento dos hábitos [7]. Portanto, para que esses fragmentos de louça analisados caracterizem-se como reveladores de alguns aspectos do cotidiano estancieiro, é elementar que se considere a Estância Velha do Jarau como ambiente sócio-cultural específico.
“A louça recebe significados distintos segundo o grupo social, o local, o tempo ou a cultura a qual pertence” [8]. Dessa forma, os fragmentos de louça inglesa resgatados da Estância devem ser considerados a partir do modo de vida estancieiro, e ainda considerando-se as particularidades de seus membros.
CONCLUSÕES
A manutenção de hábitos simples, que vão se contrapondo com a aquisição crescente de produtos industrializados [9] é uma constante na Estância Velha do Jarau. O acesso a essas mercadorias era limitado, mas não inexistente. A ação dos mascates e o contrabando intenso e variado [10] tornavam possível tal aquisição.
Se por um lado a presença dessas peças inglesas é indicativo de um aprimoramento dos hábitos, uma vez que o uso da louça sugere uma maior individualização referente às práticas alimentares, por outro, fica evidente que certas práticas não são alteradas devido aos costumes.
Ao serem considerados todos os aspectos da vida diária na Estância Velha do Jarau - criação de gado, estabelecimento rural auto-subsistente, a dependência aos recursos naturais, hábitos tradicionalmente incorporados - bem como dos fatores que a ligam a uma estrutura maior - condução do gado para charqueadas, presença dos mascates, constantes "contratos" políticos e militares - percebemos que há um modo de vida próprio neste ambiente. Um modo de viver imbuído, essencialmente, de simplicidade.
A figura 2 mostra o aspecto rústico da casa/ sede da Estância Velha do Jarau. Essa estrutura, parcialmente preservada até a década de 1970, é indicativo do modo de vida estancieiro, que poderia definir-se como de hábitos mais simples. O viajante Saint-Hilaire confirma essa arquitetura "pobre" e atribui às sedes das estâncias do século XIX um aspecto de "choupanas" [2].
Figura 2- As estruturas remanescentes da antiga Estância /1960
Considera-se, portanto, a Estância Velha do Jarau como um ambiente sócio-cultural específico. Em seu cotidiano, hábitos e necessidades características. Pretende-se, ainda, conhecer a fundo esse cotidiano estancieiro do século XIX, por meio da cultura material e considerando a especificidade desses hábitos domésticos.
Por hora, sabe-se que a rusticidade da cultura estancieira acaba por atribuir um significado que, aparentemente, não excede ao aspecto funcional no que se refere a aquisição e uso da louçaria inglesa.
[*] Universidade Federal de Santa Maria. Centro de Ciências Sociais e Humanas. Departamento de História. Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas. Avenida Marechal Floriano Peixoto, 1184 (anexo). Prédio da Antiga Reitoria. CEP:97015-130. e-mail: mvolkmer@mail.ufsm.br
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] KERN, Arno Alvarez. "Cultura Européia e Indígena no Rio da Prata nos Séculos XVI/ XVIII”.In: Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993.
[2] PONT, Raul. "Campos Realengos -Formação da Fronteira Sudoeste do Rio Grande do Sul”. Porto Alegre: Renascença, 1983.
[3] LIMA, Tânia Andrade, et alli. "A tralha doméstica em meados do século XIX: reflexos da emergência da pequena burguesia no Rio de Janeiro”. Dédalo, Publicações Avulsas, 1989.
[4] SCHÁVELZON, Daniel. "Arqueologia Histórica de Buenos Aires”. Buenos Aires, Ediciones Corregidor, 1991.
[5] SYMANSKI, Luís Cláudio Pereira. "Espaço Privado e Vida Material em Porto Alegre no Século XIX”. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.
[6] MILLER, George. "Classification and economic scaling of 19 th. century ceramics." APUD [5].
[7] PESAVENTO, Sandra Jatahy. "História do Rio Grande do Sul”. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994.
[8] CARVALHO, Marcos Rogério R. de. "Pratos, xícaras e tigelas: um estudo de Arqueologia Histórica em São Paulo, séculos XVIII e XIX”. Dissertação de Mestrado. São Paulo, 1999.
[9] GOMES, Flamarion F. da Fontoura. "Aspectos da Cultura Material e Espacialidade na Estância Velha do Jarau (1828- 1905). Um estudo de caso em Arqueologia Histórica Rural”. Dissertação de Mestrado. Santa Maria, 2001.
[10] CÉSAR, Guilhermino. "O Contrabando no Sul do Brasil”. GRAFOSUL, 1978.
Buscar en esta seccion :