ARQUEOLOGIA DE SÍTIOS SUBMERSOS: ESTUDOS DE CASOS NO BAIXO VALE DO RIBEIRA (LITORAL SUL DO ESTADO DE SÃO PAULO / BRASIL).
Por Gilson Rambelli
Por Gilson Rambelli
O presente trabalho é um resumo da dissertação de mestrado intitulada: "A Arqueologia Subaquática e sua Aplicação à Arqueologia Brasileira: o exemplo do Baixo Vale do Ribeira de Iguape" (litoral sul de São Paulo - Brasil), faz parte de um projeto mais amplo: "Projeto Arqueológico do Baixo Vale do Ribeira" , coordenado pela Profa. Dra. M. C. M. Scatamacchia, e buscou a realização de um projeto arqueológico integrado, incorporando a pesquisa subaquática sistemática.
O objetivo foi não só ampliar a extensão do potencial arqueológico da região para o domínio submerso, como também oferecer, através de uma síntese de exemplos sobre métodos e técnicas desenvolvidos e utilizados nas pesquisas de arqueologia subaquática de vários países do mundo, subsídios que poderão servir como referência para futuros trabalhos a serem realizados no Brasil.
Trata-se portanto de um projeto pioneiro na arqueologia brasileira, a qual até então, nunca havia se pronunciado oficialmente frente ao interesse e à possibilidade de inserir em seus domínios, o ambiente aquático. Também chama a atenção, à divergência entre o estudo e a preocupação com o Patrimônio Cultural Brasileiro que está em superfície e o estudo e a preocupação com o Patrimônio Cultural Brasileiro que se encontra submerso.
Desta forma, o presente trabalho apresenta algumas considerações teórico-metodológicas de como se fazer arqueologia no ambiente aquático, visando exemplificar concretamente, através das etapas de campo realizadas na região do Baixo Vale do Ribeira de Iguape, as possibilidades seguras de inserção deste domínio de pesquisa no contexto da arqueologia brasileira. Procede-se desta forma por entender-se que a designação "subaquática", longe de formalizar uma disciplina sui generis, serve apenas como indicador do aproveitamento da pesquisa arqueológica ao ambiente aquático.
Direcionamos nossas pesquisas subaquáticas à extensão territorial dos limites de três sítios arqueológicos ao ambiente aquático, levando-se em conta a relação direta deles com os recursos hídricos da região. De forma que, as pesquisas arqueológicas subaquáticas passaram a se interrelacionar e a se integrar com os trabalhos arqueológicos realizados em superfície.
Os sítios arqueológicos escolhidos para exemplificar a aplicação da pesquisa arqueológica subaquática ao "Projeto Arqueológico do Baixo Vale do Ribeira", e concomitantemente as possibilidades da prática da arqueologia no ambiente aquático com a mesma seriedade que em superfície, foram: o sítio pré-histórico "Sambaqui do Prefeito", o sítio de contato interétnico indígena-europeu "Toca do Bugio" e o sítio histórico "Porto Grande de Iguape".
Cabe chamar atenção, que embora exista na região vários relatos de naufrágios, preferimos nesse primeiro momento, devido a polêmica que envolve esses sítios no Brasil, optar por estudar outros tipos de sítios arqueológicos submersos.
Os sítios em questão, embora apresentem diferentes contextos arqueológicos,
têm semelhanças marcantes representadas nas dificuldades para a
intervenção subaquática, devido as condições
do Mar Pequeno e do Rio Ribeira de Iguape. Neste sentido, a realização
da nossa pesquisa arqueológica sistemática - rigorosa e criteriosa
- exigiu, não só um maior preparo por parte dos mergulhadores,
como a escolha de um método eficiente, pois a quase inexistência
de visibilidade devido a suspensão constante de sedimentos confunde a
visão e atrapalha o registro, consequentemente o resultado das observações
feitas no fundo.
Para conciliar estes problemas à qualidade dos trabalhos, fizemos a adaptação
do método de triangulação eqüilateral utilizado pelo
CNRAS (Centre National des Recherches Archéologiques Subaquatiques) na
França, que permite mapear extensas áreas com grande precisão,
mesmo levando-se em conta à dura realidade dos trabalhos realizados nas
águas turvas do Mar Pequeno e no Rio Ribeira de Iguape.
Este método, desenvolvido por BOCQUET; COLLARDELLE & LAURENT (1976),
para a intervenção arqueológica subaquática em um
lago alpino, buscou responder de maneira segura, os princípios de escavações
enunciados por A. Leroi-Gourhan:
- exploração das camadas por decapagem horizontal,
- localização precisa dos vestígios em três dimensões,
- extração do máximo de informações dos sedimentos
sobrepostos.
O emprego deste método de construção de triângulos eqüilaterais, através de cabos gabaritos facilita os trabalhos, pois mesmo sozinho um mergulhador é capaz de construir com precisão quantos triângulos forem necessários independente do fator visibilidade, assim como, registrar com exatidão a possível existência de vestígios arqueológicos em seus interiores.
As medidas no interior do triângulo são feitas a partir de estacas numeradas, obedecendo a ordem crescente da menor para maior. Por exemplo, no triângulo 401-601-603 (números referentes às estacas que formam o triângulo) as medidas deverão seguir esta mesma seqüência, ou seja, da estaca n° 401 estica-se a trena até o(s) achado(s), e se anota sobre uma prancheta, depois da estaca n° 601, e por último da estaca n° 603.
Depois em superfície, estas três medidas em relação
ao(s) achado(s), são facilmente transportadas ao papel milimetrado. A
transformação de escalas permite a substituição
do gesto feito anteriormente com a trena de cada estaca, pelo movimento do compasso
no papel. Assim, na interseção das três medidas pode-se
transformar em desenho as evidências localizadas com precisão no
interior do triângulo do sítio arqueológico em questão.
Vale ressaltar, que este método garante o mapeamento eficiente de grandes
áreas e a representação precisa dos achados em escala (uma
vez que a fotografia é quase impossível), onde a passagem do plano
da área trabalhada para o papel não apresenta um erro superior
a 2 cm.
Dos triângulos materializados pode-se optar pelo simples levantamento
superficial (coleta sistemática de superfície); por uma prospecção
mais detalhada, com a execução de sondagens e poços testes
em determinados locais; até uma escavação propriamente
dita, onde os cabos gabaritos são substituídos por gabaritos rígidos
(réguas de alumínio) alinhados, que - como foi comentado - garantem
com fidelidade os princípios de escavações enunciados por
A. Leroi-Gourhan.
Além das medidas descritas, um triângulo eqüilateral de cinco
metros de lado (medida que optamos), também pode ser subdividido em vinte
e cinco triângulos eqüilaterais de um metro de lado. Esta subdivisão
interna permite um detalhamento ainda maior dos procedimentos de intervenção.
Outro fator importante referente ao método de triângulos eqüilaterais
em nossa área de trabalho, é que na medida em que os triângulos
vão se materializando, eles ajudam o movimento direcional do mergulhador,
como uma espécie de cabo-guia, ou "fio de Ariádine".
A realização das etapas de campo em uma pequena região nos chama atenção ao potencial arqueológico subaquático brasileiro. Pois, fatores como as variações naturais do nível marinho , indicam a existência de sítios pré-históricos submersos em nosso litoral, e a localização dos mesmos em toda extensão nacional seria de grande valia para nossa pré-história, como enfatiza PROUS (1992), quando diz que "o homem pleistocênico conheceu uma faixa litorânea muito mais larga que a atual e deve ter assim ocupado zonas atualmente submersas, fato que explica a ausência de indícios pleistocênico nas orlas marítimas, um dos ambientes mais favoráveis à implantação de populações não agrícolas" (PROUS, 1992:121 - 122).
Quantos outros testemunhos arqueológicos - pré-históricos
e históricos - se encontram submersos devido a estas mudanças
do nível marinho?
Outros fatores também contribuem para a formação de diferentes
sítios submersos, como as variações artificiais dos níveis
das águas, através das construções de represas,
barragens, açudes, etc.. Poderíamos citar vários sítios
que foram inundados pela ação antrópica, como "Canudos"
(estado da Bahia) por exemplo - que vem sendo estudado por ZANETTINI & GONZÁLES
(1997) -, onde parte dos testemunhos arqueológicos se encontravam até
bem pouco tempo abaixo do nível das águas do Açude de Cocorobó,
e hoje a seca da região está revelando a cada dia, os antigos
testemunhos submersos.
Em outras situações, a possibilidade de se retomar o contato com
sítios estudados antes da inundação, pode oferecer não
só uma continuidade das pesquisas iniciadas no momento do salvamento,
como também, permitir uma avaliação dos efeitos da água
sobre o estado de conservação dos mesmos. Estes estudos também
podem ser aplicados na verificação - in situ - dos sítios
com pinturas e/ou gravuras rupestres que ficaram submersos.
Além dos sítios vitimados pelas mudanças (naturais e/ou
artificiais) dos níveis das águas marítimas e/ou interiores,
muito outros sítios arqueológicos no Brasil estão localizados
próximos ou na interface com o ambiente aquático. A probabilidade
de se encontrar vestígios submersos relacionados aos sítios em
questão, são muitas. Daí a possibilidade de pesquisas arqueológicas
submersas acompanharem - como os exemplos dos sítios "Toca do Bugio"
e Porto Grande de Iguape" - as pesquisas terrestres enquanto extensão
dos mesmos ao ambiente aquático, aumentando assim, a qualidade dos resultados
das pesquisas.
O alcance da pesquisa arqueológica em ambiente aquático perde-se
de vista, e não pode ser limitada àquela visão romântica
dos naufrágios marítimos, ou pior, da retirada de objetos dos
mesmos. Desta forma, devemos ressaltar que enquanto persistir o distanciamento
da arqueologia brasileira em relação ao patrimônio arqueológico
submerso, muitos sítios arqueológicos irão desaparecer.
Não só pela ação gananciosa de caçadores
de tesouros, mas também, pelas obras de impacto ambiental que acontecem
diretamente no ambiente aquático e/ou na interface com o mesmo.
Vale ressaltar, que essas obras de dragagens não contemplam a possível
existência de bens arqueológicos submersos, como chama atenção
OLIVEIRA (1997), em um artigo publicado sobre a avaliação do impacto
da Hidrovia Paraguai-Paraná . Vale lembrar, que o efeito das dragas é
destruidor e irreparável ao patrimônio submerso.
Neste sentido, nosso trabalho pretendeu ser mais uma proposta, do que um resultado
concluído (pois, as pesquisas ainda estão em andamento), buscando
uma sistematização sobre o problema, possibilitando o debate e
chamando a atenção para o crescimento da destruição
dos sítios submersos e o desrespeito patrimonial existente em águas
brasileiras, ressaltando a necessidade de revertermos urgentemente este quadro,
caso contrário, numerosos sítios desaparecerão literalmente
sob nossos olhos.
A temática nos remete a uma reflexão. Quanto se perdeu e ainda
se perde de informações importantíssimas para a arqueologia
brasileira através da destruição dos sítios arqueológicos
que se encontram, por um motivo ou outro, encobertos pelas águas?
Uma coisa é certa, o Brasil desconhece-se - "arqueologicamente"
falando - embaixo d'água.
BOCQUET, Aimé; COLLARDELLE, M. & LAURENT, R.. Méthode de fouille en lac ou en rivière. Prétirage, IX Congr. UISPP, Nice, 1976. 15p..
BOCQUET, Aimé & MARGUET, André. "L'Archeologie Subaquatique" L'Archéologie et ses méthodes - prospection - fouille - analyse - restauration. Roane/Le Coteau, 1985 (pp. 137 - 157).
BOCQUET, Aimé. "Charavines il y a 5000 ans" Les Dossiers D'Archéologie. Paris, n° 199, Decembre 1994. 103p..
COLLARDELLE, Michel & VERDEL, Eric. "Méthodologie" in Les Habitats du Lac Paladru (Isère), dans leur environnement. La formation d'un terroir au Xie siècle. Ed. Maison des Sciences de L'homme. Paris, 1993.
OLIVEIRA, Jorge Eremeites. "Parecer Acerca da Avaliação do Impacto da Hidrovia Paraguai-Paraná Sobre o Patrimônio Arqueológico de Mato-Grosso do Sul" Atas do Simpósio Sobre Política Nacional do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural. Goiânia: Universidade Católica de Goiás - Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia/Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia, 1997 (pp. 191 - 196).
PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Distrito Federal, Ed. UnB. Brasília, 1992.
RAMBELLI, Gilson. "O Abandono do Patrimônio Arqueológico Subaquático no Brasil: um Problema para a Arqueologia Brasileira" Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, n° 7, 1997 (pp. 177 - 180).
RAMBELLI, Gilson. "A Arqueologia Subaquática e sua aplicação à Arqueologia Brasileira: o exemplo do Baixo Ribeira de Iguape". Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Departamento de Arqueologia / SP, 1998.
ZANETTINI, P.E.; GONZÁLES, E. M. R. & NASCIMENTO, J.G.C... "Retomada das Pesquisas Arqueológicas do Parque Estadual de Canudos - Estado da Bahia" Revista Canudos. Universidade do estado da Bahia / Centro de Estudos Euclydes da Cunha, v. 2, n 2, outubro de 1997 (pp. 179 - 195).