TURISMO CARNAVALESCO NO BRASIL: aspectos identitários e pedagógicos
(Profa. Cristiana Tramonte - Núcleo Mover/Centro de Educação
Universidade Federal de Santa Catarina)
Resumo
O turismo carnavalesco brasileiro tem como signo cultural mais importante as escolas de samba. Estas manifestações tem origem na população afro-brasileira que desenvolveram, há um século, estratégias organizativas culturais para resistir aos processos opressivos da escravidão. Portanto, para além de ser um produto midiático, estas agremiações são portadoras de elementos culturais com significado educativo relevante para estas populações que, mutias vezes excluídas da escolarizaçào formal, exercem, nestes espaços seus direitos humanos de acesso ao conhecimento formal, expressão política e social e articulação pedagógica em torno de projetos sócio-educativos.
O artigo vai examinar a estrutura e organização interna das escolas de samba enfocando basicamente seu caráter comunitário e organizativo, locus de ação de iniciativas de turismo educativo, tanto para aqueles que participam de sua estruturação, como para visitantes e turistas interessados na valorização da identidade e cultura popular brasileiras.
A trajetória das escolas de samba demonstra claramente que existem processos sociais organizativos que a tornam um fenômeno turístico nacional único, cujas características tem chamado a atenção de vários estudiosos da área ao longo deste século. Sua existência como organização social carnavalesca com características próprias e únicas, sua perpetuação no tempo, suas origens sociais e sua composição cultural, sua força como evento turístico, representam um amálgama rico de processos que por aí perpassam, refletindo a história e a cultura do povo brasileiro, representando, portanto, uma alternativa formidável para pensar as possibilidades do turismo educativo no Brasil.
INTRODUÇÃO
A trajetória das escolas de samba demonstra claramente que existem processos sociais organizativos que a tornam um fenômeno turístico nacional único, cujas características tem chamado a atenção de vários estudiosos da área ao longo deste século. Sua existência como organização social carnavalesca com características próprias e únicas, sua perpetuação no tempo, suas origens sociais e sua composição cultural, sua força como evento turístico, representam um amálgama rico de processos que por aí perpassam, refletindo a história e a cultura do povo brasileiro, representando, portanto, uma alternativa formidável para pensar as possibilidades do turismo educativo no Brasil.
" À medida em que valoriza, transmite, cultiva e reelabora os aspectos fundamentais da cultura do grupo que a viabilizou, desempenha no Mundo do Samba função semelhante à das instituições educacionais de uma dada sociedade" .
O que vai nos interessar particularmente no estudo das escolas de samba como evento turístico é seu caráter educativo que se desdobra em inúmeros processos nos quais as classes populares educam-se entre si na relação com os outros a exemplo da metodologia expressa pelo educador Paulo Freire: "Ninguém educa ninguém. Ninguém educa a si mesmo. Os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo ". Paulo Freire alerta ainda para o fato de que este processo auto-educativo ocorrerá pela mediação de "objetos cognoscíveis", em nosso caso, os variados e múltiplos elementos do Mundo do Samba.
Para CURY , a "categoria da mediação expressa as relações concretas e vincula mútua e dialeticamente momentos diferentes de um todo ". Não se pode compreender os fenômenos que perpassam pelas escolas de samba sem compreender que estes fenômenos se interrelacionam dialeticamente formando uma rede contraditória que se imbrica mutuamente. Essa teia de relações é mediada pelas escolas de samba.
É essa teia de relações que nos permitirá compreender a complexidade do universo humano que se constrói em torno das escolas de samba, um dos mais atraentes eventos turísticos brasileiros, que lança sua imagem ao exterior. Entretanto, por trás do fato em si, há uma complexa rede de relações, que se auto-denomina "Mundo do Samba" . LEOPOLDI assinala que "O Mundo do Samba recobre o conjunto das relações sociais de um grupo considerável de agentes , cuja especificidade reside na valorização coletiva de um gênero musical - o samba ". Para GOLDWASSER "O chamado Mundo do Samba que se revela de forma tão espetacular no desfile é para o sambista uma realidade bem palpável, seu meio próprio e familiar de convivência social" . LEOPOLDI chama a atenção para o fato de que o aspecto fundamental do Mundo do Samba é justamente o contexto em que o samba se insere, que remete ao ethos de um grupamento específico.
DUALIDADE DO ÂMBITO FAMILIAR E DO ÂMBITO PÚBLICO
É este ethos que permite distinguir um sambista, agente do Mundo do Samba de um outro compositor qualquer; é o "sentimento" de se definir num coletivo relacionado ao samba que passa a ser, assim, um elemento estratégico de grande significação na rede das relações vivenciadas, como verificaremos na Pedagogia da Ação Cultural.
A configuração do Mundo do Samba, bem como o papel mediador nos processos pedagógicos cumprido pela escola de samba, delineará suas características conforme o momento histórico e o contexto social em que se inserem. Tentaremos compreender como se desenrola a pedagogia das escolas de samba de Florianópolis junto aos componentes do Mundo do Samba.
Em primeiro lugar, é necessário compreender como se estrutura o Mundo do Samba em Florianópolis. Os espaços principais são:
1. Pontos de encontro consagrados dos sambistas: no ano de 1995, podemos dizer que estes pontos são basicamente o "Bar do Cal", o Mercado Público nos sábados pela manhã (podendo prolongar-se pela tarde) e os programas radiofônicos destinados a este público como a programação transmitida, diretamente do Mercado, pela Rádio Guarujá e o freqüentado programa radiofônico "Clube do Samba", coordenado pelo jornalista Aldírio Simões. Funcionou, durante o ano de 1994, a Rádio Cultura, com uma programação específica para os integrantes do Mundo do Samba: Fontela e "Festinha", respectivamente locutor e responsável pela programação transmitiam diretamente para os morros. Segundo Márcio de Souza, diretor da Acadêmicos dos Samba, "Nestes espaços do samba você vai encontrar muita gente. Ali fazemos política, falamos da vida, nos apaixonamos, nos casamos". Além disso, alguns programas televisivos buscam de tempos em tempos dar cobertura as atividades dos sambistas como o Programa Mulheres, coordenado por Luiza Gutierrez; também alguns colunistas publicam em jornais locais notas esporádicas sobre as escolas de samba, como por exemplo o colunista Cacau Menezes.
2. Rodas de Samba e Concursos: outra oportunidade de encontro de sambistas são as programações que algumas escolas de samba desenvolvem em suas sedes, geralmente nos finais de semana com o objetivo de ajudar a manter as mesmas e, eventualmente, acumular recursos para contribuir na organização dos desfiles. Há também concursos e promoções que ocorrem durante o ano que permite o encontro de compositores e freqüentadores do Mundo do Samba. Exemplo destes eventos ocorridos nos anos de 94 e 95 são o Prêmio Zininho de Música, a entrega do troféu Oscar Berendt e a inauguração do Museu do Carnaval com o apoio da Prefeitura Municipal. Também alguns eventos isolados compõem este universo como por exemplo a articulação dos sambistas, coordenada por Edu Aguiar, da Copa Lord, em torno da gravação do "CD Ilha" com o apoio de músicos radicados na Áustria; o "Kizomba", evento de valorização da cultura afro-brasileira organizado geralmente por Graça Mello e Jorge Rubinei Vaz na Escola de Samba Consulado; a organização de um grupo de sambistas para atuar na organização de uma escola de samba na cidade francesa de Saint-Etienne ; "Dia da Consciência Negra", comemorado no dia 20 de Novembro, quando ocorrem também múltiplos eventos de valorização da cultura afro-brasileira.
3. Fazem parte do Mundo do Samba também as Associações de Escolas de Samba LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba) e ASSECAF (Associação de Entidades Carnavalescas de Florianópolis) e a recém-criada COPERCA (Comissão Permanente do Carnaval).
Para adentrar o Mundo do Samba há um ritual de iniciação como demonstra esta declaração de Carioca, da Filhos do Continente: "O samba é do meu sobrinho. Jogamos ele na avenida para apanhar o terreno, tomar caminho". Há diversos requisitos para ser considerado um integrante: gostar de samba, freqüentar os espaços tradicionais onde o samba acontece, freqüentar os eventos promovidos por seus integrantes, respeitar o código de ética e moral elaborada pela convivência interna e ter certo tempo cronológico de freqüência nos ambientes e eventos. O Mundo do Samba tem como um de seus motores principais as escolas de samba e um dos ideais mais fortes "salvar o carnaval" e "promover a valorização do samba". Grande parte dos indivíduos tem um apelido que o torna reconhecível pelos outros componentes do grupo. " Essas agremiações (as escolas de samba) consistem num veículo de valorização dos aspectos culturais e sociais específicos daquele universo, consubstanciado na amalgamação dos ambientes no inicio do século em que a relação intima com o samba se revelava um denominador comum" .
Os espaços do Mundo do Samba são ocupados durante boa parte do ano, mas sua movimentação torna-se pública principalmente nos meses de novembro a março quando se intensificam as programações das escolas de samba, carros-chefe do Mundo do Samba.
O Mundo do Samba cumpre um papel fundamental na fabricação do ideário e na manutenção da memória, da história e da coesão interna de seus participantes. "Do ponto de vista histórico, o Mundo do Samba corresponde quase a uma construção mitológica, povoado de heróis e episódios extraordinários, contados e recontados pelos sambistas históricos ou autênticos e que invariavelmente atravessam as fronteiras entre as Escolas para se transformarem em patrimônio de todos os sambistas" (grifo da autora) .
Esta construção mitológica cumpriu um papel fundamental no registro da história das escolas de samba. Afinal, sua relevância como objeto de estudo acadêmico data dos finais da década de 60, início de 70. Seus primeiros 40 anos de história foram basicamente registrados pela memória oral destes sambistas "históricos e autênticos" aos quais se refere a autora e algum registro jornalístico recuperando esta memória. Apesar da importância social que adquiriram as escolas de samba, ainda hoje a documentação escrita é falha, como identifica GOLDWASSER no seu estudo sobre a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, do Rio de Janeiro. Este fator agrava-se ainda mais no caso das escolas de samba de Florianópolis, onde a memória oral ganha preponderância absoluta e a documentação escrita disponível nas entidades era completamente insuficiente para a reconstrução histórica .
Apesar da precariedade da documentação formal, um intenso processo pedagógico desenvolve-se juntamente com o desenrolar histórico das escolas de samba de Florianópolis que será objeto central deste capítulo. Para entender como esta pedagogia se desenvolve, consideramos que o ser humano é complexo, multifacetado e que os processos educativos se desenvolvem coerentemente com esta multiplicidade de facetas que compõem o universo humano. "A proposta político-educativa da práxis, portanto se refere a uma educação omnilateral e omnidimensional, que abrange todos os campos essenciais da realidade humana e natural...Omnidimensional, buscando envolver todos os modos e faculdades de conhecimento que o trabalhador possuir, introduzindo na aventura de conhecer não apenas o cérebro mas o ser humano integral como ele é: sentidos do corpo, a mente, a emoção, a intuição, a vontade, o sentido da Unidade, o espírito " . Entretanto, como lembra ARRUDA, a proposta de uma práxis político-educativa integral esbarra em dificuldades de ordem exterior, (os obstáculos políticos, institucionais e culturais que a ordem instituída tende a levantar contra ela) e de ordem interior, gestadas pelas próprias contradições das relações humanas.
Para se compreender a práxis educativa das escolas de samba de Florianópolis é necessário descrever suas estruturas essenciais: a estrutura sócio-política que se configura em torno do carnaval, que será analisada em seguida na Pedagogia da Ação social e o desfile, momento de consagração máxima desta estrutura organizativa.
Os elementos do desfile são o resultado de um processo de aprendizado vivo e dinâmico, que se transmite de geração a geração, reorganizados e redefinidos constantemente conforme a dinâmica social, como assinala QUEIROZ: "A simples tradição apenas comunica às gerações novas o que existiu outrora, incitando-as a repetir sempre os comportamentos considerados estimáveis, volta-se essencialmente para o passado. O Carnaval brasileiro apresenta algo mais: encerra também a imagem de uma sociedade alternativa e desencadeia a ação no sentido de colocá- la no lugar daquela que existe. Não existiria um mito carnavalesco do qual a festa seria um rito?" . Para se entender o rito carnavalesco e, particularmente o rito do desfile da escola de samba é importante notar que os rituais exprimem as relações sociais que os engendram. Assim, "os rituais dizem as coisas tanto quanto as relações sociais. Tudo indica que o problema é que, no mundo ritual, as coisas são ditas com mais veemência...os rituais seriam instrumentos que permitem maior clareza às mensagens sociais" . Para se compreender as mensagens sociais que os ritos expressam é necessário compreender sua estrutura. Os elementos do "rito" do desfile estão assim constituídos :
Comissão de Frente: Grupo de componentes que tem por finalidade "abrir o tema do enredo", apresentando-o ao público. Antigamente a Comissão de frente era representada pela diretoria que saudava o público e apresentava a escola.
Carro abre-alas: Carro alegórico simbolizando a escola de samba, surgindo no desfile logo depois da comissão de frente, informando o tema do enredo.
Mestre-sala e Porta-Bandeira: casal de "anfitriões" da escola. Sua missão é carregar a bandeira da escola e saudar o público, fazendo evolução. São escolhidos entre os melhores passistas da escola.
Alas : Grupo organizado de passistas ou pastoras, uniformemente fantasiados, obedecendo a uma coreografia, improvisada ou não, conforme o enredo que a agremiação carnavalesca apresenta no desfile. Dentro do sistema administrativo das escola de samba, a bateria e os compositores formam grupos autônomos chamados "alas técnicas". Uma ala tradicional e obrigatória é a ala das baianas. No carnaval de 85, a ala das crianças tornou-se obrigatória.
Ala das Baianas: geralmente composto pelas sambistas mais idosas e vestidas como no tempo do Brasil Colônia. Inspiradas nas mulheres vindas da Bahia para o Rio de Janeiro nas últimas décadas do século passado, mais conhecidas por "tias" .
Ala dos Compositores: Grupo de compositores responsável pela criação musical da escola de samba. Geralmente os compositores recebem um resumo do enredo para desenvolvê-lo através da letra do samba a ser preparada para o desfile. Algumas escolas transformam sua ala dos compositores em departamento musical; às vezes comandam a 'puxada" do samba na avenida.
Bateria: Grupos de instrumentistas de percussão responsáveis pelo ritmo da escola de samba em desfile. À semelhança de uma orquestra, há momentos em que todos os instrumentos tocam, noutros instantes apenas um setor fica em ação.
Destaque: figura isolada, viva, fantasiada com luxo e bom-gosto, representando um personagem de importância no enredo. Sua função é mitificar um personagem, desfilando de modo a ser notado; às vezes são pessoas conhecidas.
Grupos de shows: Grupos de passistas que dão shows isolados com passos fantásticos e instrumentos.
Passistas: Integrantes de escola de samba que se exibem com total liberdade de movimentos numa coreografia dominada pelo improviso do malabarismo das pernas. São os sambistas que "dizem no pé" ou seja, sambam com muita arte.
Coordenadores de Harmonia: Grupo de responsáveis da escola, geralmente incluindo os diretores que cuidam da "direção" do desfile, percorrendo a avenida e cuidando do entrosamento do samba cantado com o samba tocado, da evolução das alas, de modo a que não sobrem espaços vazios no grupo ou concentração desordenada em outros pontos, da animação dos desfilantes, etc. É um dos mais importantes setores do desfile. Inclui todo tipo de tarefas: primeiros socorros, costura de fantasias que se rompem no momento, distribuição de panfletos na avenida, contagem de componentes da escola, controle de componentes bêbados ou em atitudes reprováveis, etc. Nas escolas de samba de Florianópolis geralmente o grupo da Harmonia compõem-se de cerca de cento e vinte pessoas .
ASPECTOS IDENTITÁRIOS E PEDAGÓGICOS
Uma das formas de aprendizado das escolas de samba de Florianópolis é a Pedagogia da Ação Social. Este aspecto desenvolve-se sobre dois eixos: viver em comunidade e relacionar-se com o "exterior" à comunidade. O aprendizado gesta-se na convivência com o igual e com o diferente, nos pequenos grupos e no coletivo. A estrutura administrativa e diretiva das escolas de samba visa organizar e refletir esta vivência social bem como responder aos seus anseios e promover seus valores. O aspecto comunitário da escola mantém a coesão interna e o espírito de solidariedade. O direito ao lazer passa a ser uma reivindicação comunitária. A Pedagogia da Ação Social das escolas de samba de Florianópolis ajuda a promover também a auto-valorização da comunidade que a organiza, contribuindo para a construção da cidadania e para a auto-estima das populações que aí vivem. Reorganizando o universo valorativo dessas populações, os processos pedagógicos promovem a substituição do "malandro" pelo cidadão, ao mesmo tempo em que cumprem uma função "recuperadora" e preventiva da marginalidade social e suas conseqüências. Dentro desta função preventiva, a escola de samba propõe-se também a ser um campo de trabalho alternativo às classes populares de origem negra, cujo âmbito possível de atuação profissional ainda é imensamente restrito. A Pedagogia da Ação Social também se reflete nos pontos de conflito: promover a convivência e a aceitação mútua entre os diferentes, aproximar modernidade e tradição, "velhos" e "novos", combinar características possíveis de serem articuladas, trabalhar os constantes embates e conflitos, recriando-se permanentemente também faz parte da função educativa. Assim, as escola de samba de Florianópolis cumprem uma função pedagógica de regulação das relações sociais.
Além da função reguladora, as escolas de samba de Florianópolis cumprem também um papel mediador das relações sociais com setores que não integram a comunidade, buscando garantir o equilíbrio interno e externo entre comunidade e "forças externas", negros e brancos, pobres e ricos, autenticidade e mercantilização e fortalecer alianças que contribuam para seu desenvolvimento. A luta por hegemonia determina as relações de força e poder nos diferentes momentos históricos. A construção do poder político nas escolas de samba é resultado de um intrincado sistema de relações que congrega instâncias internas e externas às escolas de samba. Por isso é necessário não confundir a aparência que emerge nos desfiles com a essência da organização real das escolas de samba.
A construção de um processo coletivo enfrentando conflitos e antagonismos é o eixo da atuação da Pedagogia Social das escolas de samba de Florianópolis, que busca pautar suas ações por processos orientados na direção da democracia, exercitando a descentralização do poder e valorizando as escolas de samba como locus de brasilidade, de aglutinação da nacionalidade brasileira em sua diversidade de raças, classes sociais, culturas, religiões, etc. Promovendo esta convivência, busca atenuar o preconceito racial e social, proclamando o mito da sociedade igualitária e lamentando o curto espaço em que se realiza. Possibilitando a convivência de diferentes extratos sociais auxilia a ampliar o leque de alianças das classes populares de origem negra que detém a hegemonia do processo cultural e educativo.
Combinada à ação da Pedagogia Social, há a Pedagogia da Ação Política das escolas de samba de Florianópolis que atua principalmente no sentido de trabalhar o consenso nos níveis interno e externo e fazer conviver as diferenças político-partidárias, atrelando ou mantendo a autonomia da escola. Um dos alvos da Pedagogia da Ação Política é a descentralização das estruturas de poder e a adequação desta às novas exigências emergentes das transformações. Trata-se de promover instâncias decisórias e organizativas que aumentem a democracia interna e trabalhar com as oposições, de modo a manter o desenvolvimento e o equilíbrio interior ao Mundo do Samba. Esta convivência com a pluralidade e a diversidade promove, pedagogicamente o diálogo e a participação na construção do consenso.
Faz parte da Pedagogia da Ação Política das escolas de samba de Florianópolis a articulação das escolas de samba em torno de uma única entidade associativa que represente a totalidade das escolas e dialogue com o Poder Público. O processo educativo reside justamente no aprendizado da organização representativa, da autonomia, na superação da dependência e na prática das alianças políticas com outros setores. Na relação com o Poder Público o aprendizado constitui o exercício da cidadania, da prática dos direitos e deveres e da luta pela garantia de espaços já conquistados, como a participação do Estado na responsabilidade sobre os desfiles (ainda que somente como facilitador de gestões). Resultado desse exercício pedagógico é a elevação da capacidade e agilidade política de seus dirigentes para utilizar na prática conceitos como "formação de opinião pública", "credibilidade", "composição de forças", etc. e também, a capacidade de elaborar propostas a partir de problemas concretos, como por exemplo a questão financeira, os conflitos inter-classes, os conflitos de ponto-de-vista em relação às questões artísticas, em relação à participação da comunidade, etc.
Outro resultado da Pedagogia da Ação Política é o aprendizado da iniciativa junto a outros setores sociais ou seja, a maturidade que os dirigentes e organizadores atingem quando admitem suas próprias limitações na tomada de atitudes de captação de recursos, um primeiro passo para a superação da dependência.
Um aprendizado democrático é o das instâncias de participação político-partidária e os limites desta, sendo questionadas abertamente as práticas anteriores de atrelamento das escolas a facções políticas. O envolvimento de dirigentes de escolas de samba com políticos tradicionais numa relação mesclada de paternalismo e clientelismo - uma prática relativamente comum no passado - será abertamente questionado nos anos 90. Não se deixar manipular, diferenciar posição política pessoal de prática política coletiva, perceber os limites e possibilidades da representação e da liderança, são outros aprendizados em curso na Pedagogia da Ação Política desenvolvida pelas escolas de samba de Florianópolis. Um exercício pedagógico relevante é a construção da credibilidade pública que desenvolverá nos componentes do Mundo do Samba habilidades e capacidades diversas tais como: maturidade política, senso de responsabilidade, noção de representatividade, visão micro e macro da estrutura social, noção de âmbitos decisórios e de representação, etc.
Para solidificar e garantir estes processos, o Mundo do Samba elabora um código de ética e moral que cumpre função educativa entre seus componentes. A Pedagogia dos Valores Éticos e Morais justifica-se em torno da "salvação do carnaval". "Salvar o carnaval" é o grande elemento de unidade das escolas de samba, o ideal máximo. Quando a unidade interna ao Mundo do Samba se vê ameaçada por conflitos e dissensões, invoca-se a necessidade de "salvar o carnaval" para retomar a harmonia. A participação no carnaval e nas escolas de samba - cuja expressão máxima são os desfiles - é considerado uma necessidade tão premente quanto educação, saúde ou alimentação para os participantes do Mundo do Samba. Deste ponto de vista, os integrantes do Mundo do Samba rejeitam a visão que propugna a superioridade das instâncias da economia e da política sobre as instâncias da cultura e da religião e recusam a assumir o ponto de vista elitista, segundo o qual as classes populares deveriam preocupar-se exclusivamente com sua reprodução enquanto corpo físico e força de trabalho. A prática dos integrantes das escolas de samba recupera o direito ao lazer e ao aspecto lúdico-espiritual como uma necessidade fundamental às quais as classes populares também tem direito. Ao mesmo tempo, através da arte, promovem o mundo da expressão simbólica como uma maneira legítima de discursar sobre a realidade.
Sobre esses valores se funda o mito da democracia racial e social , que considera o carnaval das escolas de samba como a entidade máxima que congrega e fortalece o desenvolvimento de uma rede viva de relações, congregada no Mundo do Samba, aliando a força ritual do desfile à força mítica do carnaval. Pelo carnaval justifica-se o trabalho gratuito e todo tipo de sacrifício possível. Em torno da capacidade de sacrificar-se e de "salvar o carnaval" nascem os heróis deste mundo particular; todos aqueles que, em geral gratuitamente, lutam para que o desfile aconteça e a escola de samba sobreviva, geralmente os dirigentes, os organizadores e o "pessoal do bastidor, ou galpão". Não são consagrados heróis pelo poder político e econômico que possuem; são heróis míticos porque conseguem, através do esforço e do despojamento pessoal, "salvar o carnaval", o maior bem da comunidade.
Em torno desta premissa máxima constrói-se o valor da solidariedade, que emerge principalmente na última década no enfrentamento com o Poder Público, pelos motivos já apontados anteriormente. É no bojo destes elementos valorativos que a "armação" (ou tramóia) é substituída pelo "trabalho sério", significando um salto de qualidade nos valores éticos das escolas de samba - passar das articulações nem sempre lícitas, às vezes feitas no passado, para o desenvolvimento de um trabalho constante, lícito, transparente, visível e público. A solidariedade é mantida a duras penas e percorre um caminho que possui momentos diferenciados que se interpenetram e influem no seguinte: durante o ano a solidariedade predomina; nos 2 ou 3 meses que antecedem o desfile ela sobrevive cercada de tensões; na avenida, a competição é aberta e não há lugar para solidariedade; a solidariedade rompe-se totalmente logo após o desfile com o descontentamento das perdedoras e as acusações mútuas. Rapidamente, quase concomitantemente, o descontentamento é expelido para fora do Mundo do Samba ( jurados ou Poder Público) a fim de manter a coesão interna e "salvar o carnaval", e a fraternidade é retomada tempos após os desfiles para predominar novamente no Mundo do Samba. Esta separação de espaços e tempos em função de um objetivo coletivo é um dos resultados da Pedagogia dos Valores Éticos e Morais das escolas de Samba de Florianópolis. O terreno fértil da solidariedade entre as escolas de samba é o campo da arte, do espaço possível para o espírito, para o lazer, para a convivência, para o estabelecimento de relações amistosas. Neste sentido, pode-se afirmar que o "espírito carnavalesco" opõe-se ao espírito do capitalismo clássico que proclama as virtudes do trabalho incansável, da produtividade e da acumulação de riquezas como o valor máximo dos seres humanos. O espírito carnavalesco questiona a visão paternalista e autoritária que define as prioridades as classes trabalhadoras reduzindo-as a "corpo de trabalho" e proclama a ominidimensionalidade humana e a possibilidade de uma sociedade igualitária.
Outro signo de grande valor simbólico é "vestir a camisa". No período inicial das escolas de samba "vestir a camisa" significava adotar uma única escola. Um dos resultados da Pedagogia dos Valores Éticos e Morais das escolas de samba de Florianópolis é expandir este significado ao Mundo do Samba, ou seja, "vestir a camisa" passa a ser não a fidelidade a uma única escola mas a um projeto coletivo do qual o centro é o carnaval e o Mundo do Samba.
O aprendizado ético e moral resulta também em um "código de honra" que regula as relações, estabelece limites e elabora normas coletivas. Em troca do rígido comportamento moral do indivíduo a escola de samba oferece convívio social, respeitabilidade e todo um mundo alternativo onde se reinventa valores e inverte-se a lógica da sociedade atual. No Mundo do Samba não se condena os indivíduos à marginalidade por razões sociais ou econômicas, mas por transgressões de normas que o indivíduo conhece e que normalmente pode controlar, incentivando assim a autoconfiança e auto-estima. A Pedagogia dos Valores Éticos e Morais possibilita a educação comportamental de acordo com seus valores e, para isso, oferece um ambiente receptivo que propicia condutas construtivas no Mundo do Samba, dando chances e oportunidades para aqueles que estão excluídos e são rejeitados por uma lógica que tem como premissa máxima o poder econômico. Além do aspecto do comportamento social em sentido mais amplo, também o comportamento sexual é rigidamente controlado, invertendo a aparência que os meios de comunicação de massa exploram no carnaval: na essência deste código ético e moral, não há lugar para exploração sexual no ambiente das escolas de samba.
A Pedagogia da Ação Escolar das escolas de samba de Florianópolis considera que elementos da escolaridade formal são desenvolvidos pelas escolas de samba que tem potencialidade para penetrar em alguns vácuos da escola pública. A construção do enredo muitas vezes foi utilizado como aulas de história para crianças e para os integrantes mais próximos às escolas de samba; possibilita acesso a temas que a história oficial não registra, como personagens importantes das lutas sociais brasileiras. Os enredos funcionam como temas-geradores de conhecimento para as comunidades as quais, a partir do contato com o tema, apreendem e constróem diversos espaços de aprendizado, numa relação horizontal de troca de saberes. O enredo propicia também o desenvolvimento de noções de dramaturgia, o registro da memória oral e a pesquisa da história local, contribuindo para o reconhecimento da comunidade nos níveis interno e externo. Além do enredo, a letra do samba contribui para o alargamento do universo cultural dos componentes e para a capacitação na elaboração poética. Como escola profissionalizante, as escolas de samba desenvolvem noções de artes plásticas, pintura, escultura, costura, serralheria, marcenaria, música, etc. As escolas de samba de Florianópolis atuam com uma visão interdisciplinar de educação abarcando diversos campos de saberes que poderiam ser aproveitados pelas escolas públicas. Além do mais contribui para a manutenção da criança na escola e incentiva a aprendizagem, na medida em que organiza atividades que colocam como única pré-condição para participação, o bom desempenho escolar.
Uma das facetas da ação educativa das escolas de samba de Florianópolis é a Pedagogia da Ação Cultural, fundada no princípio da valorização da "negritude". Ou seja, apesar de buscar contemplar a pluralidade racial e social brasileira, o valor mais importante para legitimar uma escola de samba como veículo cultural é "ter negritude". Trata-se de uma inversão do preconceito racial e social vigente na sociedade. Além da afirmação das raízes culturais, a valorização da "negritude" significa também, no caso das escolas de samba de Florianópolis um signo de resistência contra o desprezo que sofre a cultura afro-brasileira em relação à cultura germânica e outras de origem européia predominantes no estado de Santa Catarina.
Em torno da "negritude" também organizam-se diversas atividades comunitárias de caráter cultural como dança, música, etc. Se ter negritude atesta a legitimidade, "branquear" é sinônimo de perda de prestígio e de qualidade artística. O elemento mais importante da "negritude" é o samba, símbolo máximo integrador e catalisador do Mundo do Samba, uma vivência concreta e cotidiana que supera a visão folclórica e conservacionista que por vezes lhe é atribuída. O samba promove a familiaridade, a convivência íntima no momento do lazer, regula toda uma rede de relações de apoio aos integrantes, contribui para a integração social e promove a criação artística coletiva. Em Florianópolis a ênfase dada ao espetáculo visual em detrimento do musical provoca conflitos, rapidamente superados pela combinação entre estes elementos, novamente reagrupando modernidade e tradição. Apesar de aceitar a modernidade, as escolas de samba não abrem mão das tradições culturais, que significam exatamente as raízes afro-brasileiras, uma preocupação particularmente presente em meados da década de 90, num processo de "retomada da autenticidade".
A Pedagogia da Arte contribui para a diversificação do universo estético das classes populares. As discussões estéticas representam momentos preciosos de aprendizado de elementos artísticos. A questão da participação das classes médias principalmente na estética dos desfiles traz à tona uma polêmica que resulta em fecundas discussões sobre o significado social da arte popular e seus modos de afirmação. Atualmente existe, como resultado deste processo, exigências artístico-visuais, além das musicais, também por parte das classes populares que frequentam o Mundo do Samba ou que simplesmente acompanham os desfiles, que não podem ser creditadas ao "sucesso" da influência das classes médias, mas que é resultado de um aprendizado das próprias classes populares no trabalho de elaboração dos desfiles e competição na avenida. Para os componentes do Mundo do Samba, beleza artística é fundamental porque promove a identidade com o espetáculo e o direito aos conhecimentos acumulados pela humanidade neste campo. Além do mais, a Pedagogia da Arte possibilita uma forma de conhecimento sensitivo que outros domínios de saberes não atingem.
A Pedagogia das escolas de samba de Florianópolis deve ser considerada como o resultado de uma vitória das classes populares de origem negra as quais, através de muita luta e capacidade organizativa, logram hegemonizar culturalmente o carnaval, dando-lhe sentido artístico, força cultural e social e potencializando sua organização como veículo fundamental de educação e formação.
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NOTAS
A Pedagogia do Oprimido, 1987:69
Promovido pela Casa do Jornalista, em 1995, homenageando personalidades ligadas ao carnaval.
Ver a este respeito no capítulo II.
Nas sedes das escolas quase não havia material documental e a precária documentação existente junto aos integrantes restringiu-se a poucos recortes de jornais e folhetos dos desfiles guardados individualmente por alguns sambistas, tornando indispensável uma extensa e minuciosa pesquisa de dados, como já assinalamos.
ARRUDA, Marcos - Metodologia da Práxis e Formação dos trabalhadores, PACS- Políticas Alternativas para o Cone Sul. RJ, 1988:4, mimeo
Categorização baseada em NICEAS, Alcides, 1985; Diário Catarinense, 23/2/90 e observações pessoais.
"Tema sobre um fato, ou figura da História do Brasil, lenda folclórica ou vulto de expressão carnavalesca apresentado de forma artística e competitivamente luxuosa, com os participantes das agremiações que desfilam no carnaval exercendo o papel de personagens ou símbolos do assunto enfocado ". NICEAS, 1985:68.
"A ala é a unidade mínima de organização da escola. São recrutadas basicamente dentro de círculos de relações primárias, amigos, parentes, conhecidos destes, etc.". GOLDWASSER, 1975:45. Os desfilantes que não integram cargos diretivos e/ou administrativos são denominados "componentes".
A respeito das famosas "tias" cariocas de origem baiana, ver capítulo I.
"Puxar o samba na avenida" significa cantar o samba, geralmente em cima de um carro de som, que acompanha todo o desfile. A puxada de samba é feita geralmente por um grupo de sambistas.
A "armação de uma bateria de escola de samba" é a ordem de seqüência geográfica em que os instrumentos se sucedem no desfile: mestre de bateria (com apito, na frente), seguido por fileiras de chocalho, fileira de caixas, entremeadas por surdos de terceira marcação, fileiras constituídas por repique, surdos de terceira e segunda marcação e caixas. No centro da bateria, pode localizar-se outro diretor de bateria, seguido por fileiras de repiques, caixas e surdos de primeira, segunda e terceira marcação. Seguem-se fileiras de tamborins, novamente chocalhos entremeados com agogô e fechando a composição fileiras entremeadas de cuícas e pandeiros e fileiras entremeadas de cuícas, pandeiros e reco-reco. Ao final, pode localizar-se outro diretor de bateria. (Extraído de representação gráfica de uma bateria. In: MEMORIA DO CARNAVAL, RIOTUR, 1991, encarte especial. Evidentemente, outras composições de instrumentos são possíveis. Atualmente, algumas escolas cariocas estão inovando inserindo até mesmo instrumentos de cordas, mas a acima exposta é uma das armações tradicionais de bateria de escola de samba.
Conforme reunião da Ala da Harmonia presenciada por esta autora na sede da Embaixada Copa Lord em 6/2/95.
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