CONGRESO VIRTUAL 2000

A crítica intelectual ao movimento indígena-camponês de Chiapas

Texto para o II Congresso Virtual de Antropologia e Arqueologia
Grupo: Globalização
Autor : Prof. Dr. Antônio da Silva Câmara
Professor Adjunto: Departamento de Sociologia
Universidade Federal da Bahia
Chercheur invité du GRAL-CNRS (Groupe de Recherche de l'Amérique

A crítica intelectual ao movimento indígena-camponês de Chiapas

Neste texto· resolvemos analisar as diversas perspectivas dos intelectuais acerca do movimento neo-zapatista por entendermos que no atual cenário político onde se opõem o governo mexicano e o movimento guerrilheiro, as informações e reflexões sobre o movimento de Chiapas são instrumentos importantes para a formulação de juízos sociais e políticos a nível internacional

Neste sentido compreendemos que este movimento repõe a questão da polaridade esquerda-direita, que após a queda do muro de Berlim e, sobretudo, após a emergência das teorias pós-modernas e do neoliberalismo tem sido criticada enquanto uma miríade dos saudosistas do mundo bi-polar (EUA/URSS) que não perceberiam a emergência de um novo mundo onde reinaria a diversidade em relação à arte, à cultura e à sociedade.

Para alguns autores estaríamos num mundo pós-econômico e, em certa medida também pós-político pois as antigas noções de Estado-nação, classes e poder político não teriam mais vigência ou estariam começando a desaparecer. Essa pretendida superação das relações econômicas e da sua determinação sobre todas as demais relações sociais não impede, no entanto, a formação de um pensamento de quase unanimidade em torno da economia de mercado e do retorno do liberalismo econômico, acolhidos como a única forma de gestão da vida econômica. Poderíamos arriscar-nos a afirmar que, se de um lado o mundo econômico é escamoteado por essa teoria da diversidade e fragmentação do real, por outro lado isso é nutrido pela aceitação passiva do mercado enquanto realidade única que permitiria o relacionamento de todos os povos e grupos sociais. Em certa medida o conceito weberiano de capitalismo, a-histórico, compreendido apenas enquanto relações de mercado não subordinadas às relações sociais de produção, é retomado na atualidade com o objetivo de fixar o capitalismo enquanto uma realidade permanente impossível de ser superada.

No mundo dos debates intelectuais o cruzamento destas duas noções teóricas: a diversidade cultural e a unanimidade econômica conduziu à ampliação do pensamento à direita, pois novos porta-vozes do pensamento direitista agregaram-se à velha direita instituída. Isto também ocorre nos episódios que envolvem a luta do EZLN contra o governo mexicano, tanto no plano concreto, envolvendo grupos sociais e sujeitos que ocupam posições sociais importantes na sociedade mexicana, bem como no intenso debate intelectual que se seguiu ao levante de 1994. Jornalistas, cientistas sociais, escritores e outros intelectuais, de imediato posicionaram-se a nível internacional sobre o significado do Exército Zapatista de Libertação, suas características, amplitude do movimento, conceituação etc. Emerge, no seio intelectual debates que retomam as antigas diferenças entre a esquerda e a direita, os primeiros buscando compreender e defender o movimento e a sua universalidade, os últimos acusando-o de retrógrado, pré-moderno, anti-democrático etc.

A ofensiva do neo-zapatismo impede que se complete o mecanismo ideológico de negação e esquecimento dos grandes movimentos sociais com objetivos utópicos, considerados pelo pós-modernismo enquanto formas ultrapassadas de protesto social, inadequadas à nova era. O EZLN ao recriar a revolução, incomoda o meio intelectual, pois exige que os indivíduos posicionem-se ideológica e politicamente obrigando-os ao rompimento da indiferença generalizada.

Talvez um dos pontos de partida mais frutíferos para compreender esta disputa seja o texto Oximoros do intelectual e militante do EZLN o Sub-Comandante Marcos, que ao questionar « a globalização fragmentada »[1] busca refletir sobre as formas como esta teria atingido os intelectuais, tanto os identificados com a direita clássica, quanto aqueles que teriam sido convertidos e seduzidos recentemente pelos meios de comunicação Este novo tipo de intelectual combateria os movimentos sociais e, em particular o neo-zapatismo. Marcos contrapõe estes intelectuais aos intelectuais progressistas que apoiam a luta social e defendem a paz e a justiça para as populações indígenas.

Neste ensaio aceitamos o desafio de verificar como o neo-zapatismo é interpretado tanto pelos progressistas e quanto pelos que se lhe opõem, escolhendo alguns estudos e examinando as formulações em relação a três questões básicas : a) as causas b) a definição do movimento ; c) os atores da rebelião A nossa análise toma por objeto alguns textos e livros, divulgados em francês e em espanhol que mostram essa diversidade de enfoques sobre o movimento neo-zapatista.

As causas da Rebelião

Praticamente todos os autores analisados buscam entender as causas que teriam dado origem ao levante do EZLN na região de Chiapas. Uma multiplicidade de causas são apontadas pelos diversos autores. Alguns buscam entendê-las a partir da própria história do México.Vários são os autores que entendem que as raízes da rebelião se encontraria na própria história de exclusão dos indígenas. Condearena (1997).  reconstitui os marcos da ocupação hispânica e da luta pela independência, a revolução mexicana e, concomitantemente, a exclusão da população indígena. Alguns chegam mesmo a buscar o entendimento acerca do levante e do seu apoio pela população mexicana uma cultura de rebelião que se formou no país e estaria “inscrita en la pratica social y en la estructura de los textos legales. Esa cultura hace que en la concinencia social y jurídica d ela república, en determinadas condiçiones y momentos, pueda parecer a casi todos los estratos sociales un derecho natural y un recurso legítimo.” (GILLY: 1998: p: 13)

Ives Le Bot, observa que dentre as causas originárias do conflito deve-se relacionar o esquecimento em que vive a população indígena do país, que constitui entre 10 e 15 por cento da população e, que toda a política em relação às suas necessidades teria sido constringida ao indigenismo oficial “O indigenismo oficial, a partir das flutuações sexenal e variações regionais, demonstrou até aquele momento sua capacidade de absorver ou de neutralizar as reivindicações indígenas”.  ( LE BOT: 1997: pp 31).

Este movimento indígena seria fruto deste esquecimento e da própria modernização do México:

“Os insurrectos zapatistas são ao mesmo tempo o produto de um movimento de modernização, são os atores, as vítimas e os beneficiários de uma revolução silenciosa, do desenvolvimento e da democratização da sociedade de Chiapas, o que passou despercebido para o resto da sociedade mexicana e frequentemente da própria sociedade chiapaquense” (Op. cit: pp 38).

O autor para provar a sua tese discorre sobre os efeitos da modernização sobre os indios de Chiapas, salientando a migração para a Selva, a mudança nas tradições e a criação de uma nova identidade cultural “uma nova indianiade genérica, aberta, modernizada “. Será este novo tipo de indígena que encontrará os militantes do EZLN; estes últimos também sofreriam metamorfoses no seu modo de pensar a revolução, vendo-se obrigados a aprender com a comunidade indígena e abandonar certos princípios estabelecidos das suas doutrinas revolucionárias. Desta forma, Le Bot percebe a dimensão material das transformações econômicas do México contemporâneo e os seus resultados sobre as formas de vida indígenas, permitindo o surgimento de uma nova mentalidade.

No entanto, como veremos, essas caracterizações convergem quanto ao entendimento de que às condições sócio-econômicas da população indígena foram o fermento básico da preparação da rebelião ocorrida em 1994 e da sua continuidade os dias atuais.

Casanova destaca a resistência maia, sobretudo chama atenção para a crise da fazenda tradicional, que tem ocorrido desde 1930 e aprofundou-se na década de 70, após o decreto do governo concedendo a maior parte da Selva Lancadona à etnia, quase extinta, dos Lancadonas, beneficiando desta forma as grandes empresas madeireiras  e os latifundiários. Todo este período conheceu ondas migratórias para o interior da Selva, tonrando-se mais agudo após o decreto acima mencionado. Por outro lado, esta migração teria permitido o encontro de várias etnias e a formação de uma nova cultura política.

“ Na Selva, tzeltales, choles, zoques, tojoloboles e mestiços se relacionam entre si. Surgiu então entre todos uma identidade de etnias oprimidas frente a fazendeiros, pecuaristas e “klaxlanes”, como são chamados os “ladinos” ou mestiços”. (CASANOVA:1996: p47)

O cientista social Rodolfo Stavenhagen localiza causas estruturais para o conflito:

En primer lugar, está presente lo que podríamos llamar el conflicto estrutural. Este no es privativo de Chiapas, ya que existe en muchas otras partes del país, particularmente en aquelas zonas donde predominam pueblos y poblaciones indígenas. El conflicto estrutural tiene varias raíces históricas, basado como lo esta en un sistema socio-económico que ha generado grandes desigualdades sociales y producido la discriminación y la marginación de amplios sectores d ela población, así como una estrutura simétrica del poder .”  (Stavenhagen: 2000: p: 01)

O autor identifica como componentes deste conflito estrutural: a concentração de riquezas desde a época colonial, a concentração fundiária, a corrupção e o caciquismo como formas de controle político. Stavenhagen afirma que esta situação histórica e o seu desenrolar teriam sido estudados por teorias como o da colonização interna, do subdesenvolvimento e mais recentemente pelos que analisariam a globalização e a modernização do México.

Ainda enquanto elemento do conflito estrutural este autor levanta o conflito étnico:

“às vezes latente a veces aberto, entre indígenas y mestizos, enraizado también en la situación de colonialismo interno. Contrariamente a lo que afirmam algunos comentaristas tal conflicto no es una invención de los antropólogos. No solo ellos quienes han inventado las diferenças étnicas. Aunque sí las han estudiado y analizado, sino que estas son el producto de las relaciones assimétricas de poder econômico y social que se establecieron desde la Colonia ” (Op Cit p. 02)

Outros autores acentuam algumas destas causas. Assim é que o escritor Montemayor, tomando cuidado para compreender o conflito para além da sua dimensão militar, caracteriza o estado de pobreza da população que habita a area conflagrada , situando a questão da terra enquanto principal elemento detonador da guerra

La disposición  de comunidades inteiras para apoyar un movimiento así, al menos con le silêncio, la provocan y explican agitadores sociais muy evidentes en Chiapas: la hambre, el despejo, la repression, la cerrazón de autoridades políticas e judiciais, la presión de ganaderos u terratenientes. Casi 80 por 100 de la población en las zonas de conflicto, no tienen agua corriente y potable, no tienen luz elétrica, no tienen sistemas hospitalares, no tienen comida. Debíamos compreender ya extrema pobreza puede alguna vez marcar la disposición la violência”. (Montemayor:1998: p74)

Para Montemayor a terra seria o principal componente desta luta, pois par as comunidades indígenas ela teria um caráter sagrado e, por isso essas comunidades teriam bastante dificuldade em adaptar-se à uma ordem social que a limitou à função de meio de meio de produção privatizado objetivando a produtividade e o lucro:

“La tierra  para las comunidades indígenas no es sólo un asunto de productividad y competitividad: es, el suelo que les ata a la vida, que las une al mundo invisible y al mundo visible, que las une con la comunidad ancestral de hombres y dioses, que contiene la raíz de sus valores éticos, económicos, familiares; que es el suporte de su cultura. Por ella siempre han sido capazes de dar la vida. Por ella son capaces de apoyar, cuidar, encubrir o sumar-se a un movimiento armado que osa enfrentar-se al gobierno y al ejército nacional.” Op: cit: p: 75)

Posição semelhante é compartilhada por outros autores, tais como Hernandez que identifica a ausência de  ausência de reforma agrária  em Chiapas, mesmo depois da revolução mexicana

“Chiapas, es un hogar común no vivió en plenitud la revolución de 1910-17. Fueron ironicamente los terratenientes herenderos de encomenderos  y hacendados, quienes codujeron el reparto de la tierra. Los resultados son evidentes: ese Estado concentra, por si solo el 30% de regazo agrario nacional.

Sobre la permanência de grandes latifundios se levantó un poder econômico que generó una intricadared de intereses y el control del poder político regional” (Hernandez: 1998: p: 28-29)

Para Montemayor o racismo é um dos elementos mais explosivos que se encontra na origem do levante de Chiapas.

Pero hay otra dimensi6n mayor que engloba este conflicto y que lo ilumina desde otros  ângulos de la realidad nacional e incluso continental: el racismo. Chiapas es solamente el punto extremo de la discriminaci6n racial que padece ci indígena en Mexico. Solo un prejuicio racista tan arraigado como el que prevalece en la mayoría de los ganaderos, empresarios y politicos chiapanecos, y aun en gran parte de la población mestiza de clase media, puede explicar la falta absoluta de respeto por el patrimonio, la vida, la salud, la educaci6n, la alimentaci6n, la cultura y las tierras, los bosques y las selvas de las comunidades indígenas. Los ganaderos de las zonas en conflicto han pedido durante los últimos diez añios que el ejército mexicano entre a sofocar toda resistencia agraria de los indios. Vocaci6n tan sanguinaria floreci6 entre los encomenderos y estancieros de los siglos xvi y xvii. La superaci6n de ese racismo tan atrasado en Chiapas requiere de una madurez civil, inteligente, política, para aceptar que el mestizaje es una realidad vital en Mexico y en nuestro continente. El desprecio taimado o abierto que en la sociedad mexicana todavia se siente contra el color de la piel, el lenguaje y los rasgos indígenas nos indica que aún no resolvernos nuestro mestizaje ni nuestra admiraci6n o respeto por las culturas que florecieron aqui. » (op. Cit. p. 76)

Por outro lado autores como Carlos Tello[2], destacam sobretudo as causas externas à comunidade tais como: a atuação de grupos de guerrilha, a importância da teologia da libertação na versão do arcebispo de San Crsitóbal de las Casas e certa omissão do governo, admitindo no entanto a insatisfação do povo indígena e a sua interiorizarão forçada pelo decreto da selva lancadona enquanto circunstâncias que provocaram a rebelião em Chiapas.

 Logo, as diversas análises sobre as condições sociais que permitiram o levante aproximam-se, em que pese a diferença entre a visão de totalidade que permite a alguns autores relacionar os fatos locais com a conjuntura nacional e internacional e os regionalistas, que a partir de perspectiva de estudo contrária partem do pressuposto de que é necessário entender a realidade na sua especificidade. Defendendo esta última perspectiva metodológica Lagoretta ( LEGORRETA:2000:P:01), acredita que as análises que buscam as causas da rebelião em fatos conjunturais tais como o neo-liberalismo ou a globalização estariam equivocadas e não permitiriam a compreensão deste fenômeno social.

b. Um movimento moderno, pós-moderno? Retrógrado ou revolucionário

 O movimento de Chiapas rapidamente encontrou repercussão na imprensa mexicana e na imprensa  internacional, em função disto, os intelectuais, em diversas partes do mundo se pronunciaram contra ou a favor do levante. No México, Octavio Paz, pronuncia-se contra o movimento, considerando-o retrógrado:

“O prêmio Nobel da literatura Octavio Paz exprime ardorosamente a opinião daqueles que desejavam ver na rebelião apenas a revolta de algumas comunidades tradicionais, atrasadas, manipuláveis e manipuladas pelos guerrilheiros anacrónicos, por ideólogos e por forças interessadas em mergulhar o México na violência e com isso levar ao fracasso sua entrada no grande mercado internacional e na modernidade” (LE BOT.1997; p. 14)

 Outros reconhecidos intelectuais de direita como Carlos Monsovic, também põem-se  contra o movimento, “? uma verdadeira loucura que um grupo de mil ou duas mil pessoas declarem a guerra ao estado mexicano. (…) Seu discurso político é rudimentar e sua idéia de socialismo é o resultado de uma interpretação confusa de certas utopias” ( Cf. LA GRANGE e RICO: pp 22) . No entanto outros, tais como Fuentes, ou em escala internacional o sociólogo Alain Touraine saúdam esta nova forma de movimento social.

Passado este primeiro momento, diversos foram as pesquisas realizadas sobre o EZLN, sua base indígena e sua direção política. Abaixo tentaremos a partir de alguns textos básicos verificar os dois tipos de caracterização mais corrente sobre o EZLN.

Um dos entusiastas do neo-zapatismo, Luiz Hernandez, numa série de artigos organizados no livro: Chiapas – a nueva lucha india, critica os que consideram o movimento como uma proposta do passado; para este autor a queda do muro de Berlim pôs fim à dominação soviética e aos empecilhos que esta erigiu contra o próprio socialismo, por outro lado, ela ocorre ao mesmo tempo em que se esgota o estado de Bem estar social na Europa Ocidental. Para este autor

El zapatismo irrumpe en la escena  internacional cuando los sueños de liberación de los pueblos han sido aduermecidos por el decreto del fin la historia. Emerge cuando la ideia de la revolución, tan cara a los proyectos transformadores, había caído en desuso u era visto como una excentricidad (HERNANDEZ. 1998; p. 20)

Este autor localiza o discurso zapatista tanto no que seria denominado mundo moderno ou discurso moderno, quanto na perspectiva do pós-modernismo. Citando autores que postulam ora o estatuto moderno, ora o estatuto de pós-moderno, Hernandez sugere que:

“En suma, el discurso zapatista es un pensamiento complexo, lleno de paradojas y de conceptos que simultaneamente son antagônicos y complementarios. Los ejemplos son muchos, y rebasan el campo de sus relaciones con la modernidad. Entre los muchos ejemplos pude verse: el ser un movimiento armado que lucha por la paz, o de ser un ejército que no dispara”. (….) “No busca volver a un pasado idílico que ya se fue, y que en muchas ocasiones nunca existió. Pero recupera  y reelabora una parte de él. Se trata d ela búsqueda d e otra modernidad, necesariamente incluyente, expressada a través de las consignas: “Nunca más un México sin nosotros ”; (Op. cit., p. 7)

O cientista social Ives Le Bot considera que este movimento se insere num quadro de insurreições indígenas recentes em vários países da América latina,  tais como o Equador, Guatemala, Colombia etc. Tais movimentos teriam, em

comum o fato de portarem uma nova modernidade ligando na tensão a identidade e a integração cultural, a cultura e a economia, a utopia e o pragmatismo, o coração e a razão, o particular e o universal. Se a insurreição em Chiapas conseguiu desde sua aparição o mais amplo eco, é sem dúvida porque, escusando-se a ser tratada como um problema simplesmente local, regional ou de minoria, ela colocou d e maneira espetacular questões políticas e intelectuais que hoje são centrais em todas as sociedades”. ( LE BOT. 1997; p. 20)

A incorporação dos valores indígenas à luta dos oprimidos contra os seus opressores, a nosso ver leva também este autor a adotar o parâmetro discursivo, compreendendo que se trataria do surgimento de uma “nova modernidade”. Buscando entender o movimento para além das suas características regionais, Bot afirma:

  “O zapatismo não consiste em condutas de retorno à comunidade ou de reações nacionalistas fechadas. Ele articula as experiências de comunidades heterogêneas, divididas e abertas, a questão da democracia nacional e o projeto de uma sociedade de sujeitos, individuais e coletivos, que se reconhecessem na diversidade. Ele luta por um mundo onde numerosos mundos possam convier (un mundo donde quepan muchos mundos), um mundo uno e diverso. O ator zaoatiste é étnico, nacional e universal. Ele se vê como mexicano sem deixar de ser indígena. Ele quer um México onde ele seja reconhecido e escutado. Ele é universal não em detrimento de sua identidade indígena, mas porque é indígena ”. (LE BOT. 1997 ; p. 22-23)

A preocupação de inseriria a rebelião chiapaneca em quadros teóricos mais amplos não se encontra em autores tais como Tello,  que preferem entender o movimento sobretudo a partir da organização guerrilheira que o precedeu , o ELN (Exército de Libertação nacional),

Los zapatistas encontraron en la causa de los indios, en su lucha por sus derechos, lo que tanta falta les hacía: un proyecto. Un proyecto viable, serio, riguroso, pensado con responsabilidad, apoyado por una parte de la población, sobre todo popular frente a la opinión pública. (Tello.2000; p.4)

        Quem são os atores deste movimento?

Na resposta à esta questão encontramos uma gama significativa de formulações que diferenciam os campos em que se colocam os interpretes do movimento.

Para Marcos o grupo armado que organizou-se na Selva Lancadona desde 1983 teria se transformado plenamente no contato com as comunidades indígenas e, desta forma o neo-zapatismo é o resultado da fusão de idéias oriundas da esquerda com as concepções e práticas indígenas, deste processo teria surgido um novo ator social identificado com a defesa dos direitos indígenas e dos direitos universais. Neste sentido o EZLN seria uma organização indígena, devendo obediência às suas comunidades.

Na tentativa de superar as análises de ordem estruturalistas, marcos identifica estes componentes indígenas e acentua a participação da mulheres indígenas na formação desta novo movimento. A antropóloga francesa Stutz (1998)  que viveu alguns meses com comunidades zapatistas, compreende a importância dessa dimensão ao analisar as precárias condições em que vivem as mulheres indígenas, menosprezadas nas vilas e subordinadas aos homens nos seus povoados. “ O movimento zapatista não tinha outra escolha senão a de se unir à causa das mulheres e vice-versa”(SHUTZ. 1998; p. 7).

 Em vários dos seus textos, Marcos constrói metaforicamente a identidade dos índios com todos os excluídos: os proletários, as mulheres, os homossexuais, os negros etc.; dessa forma fusiona-se-se o ator local, regional com todos aqueles que lutam, em algum lugar do mundo, em busca de condições de vida, dignidade e justiça[3].

Esta posição é compartilhada por numerosos observadores do movimento, talvez uma das melhores definições desta perspectiva encontre-se no francês Le Bot, que afirma na Introdução à entrevista com Marcos que para compreender o movimento zapatista, na sua originalidade e especificidade, é necessário tomar como elemento central de análise o papel das comunidades indígenas. O indígena seria o ator principal, e seria equivocado vê-lo como “marionete manipulado por uma organização político-militar exterior às exterior às comunidades, ou pela igreja ou um setor da igreja”. Este autor atribui ao movimento uma dimensão nacional e planetária, que não poderia ser entendido apenas enquanto “a  resistência de algumas comunidades de Chiapas ou um sobressalto na história mexicana recente marcada por fortes turbulências (...)”. Ao contrário o EZLN articularia experiências “heterogêneas, divididas e abertas” e construiria uma nova universalidade.

O ator zapatista é étnico e universal, ele se vê enquanto mexicano sem deixar de ser indígena, ele quer um México onde ele possa ser reconhecido e escutado. Ele é universal não porque nega a sua identidade indígena, mas porque ele é índio.”(LE BOT. 199; p.23)

Hernandez, também responde à esta questão de forma extremamente lúcida:

La insurrección zapatista de 1994 catalizó la gestación de un Nuevo movimiento indígena en el país. Este tenia, empero, raíces prévias. En su expression moderna, como una série de organizaciones etnopolíticas, agrárias,produtivas ou cívicas, el movimiento indio tienen mais de veinte años de existência”. (HERNANDEZ. 1998. p. 8 5)

 Casanova vê no zapatismo a herança das lutes revolucionárias no mundo e dos próprios movimentos indígenas, este movimento concentraria portanto a tradição revolucionária, trazendo uma nova fisionomia e capacidade de unir os aspectos racionais com os imperatives morais, pois defende a dignidade; neste sentido para este autor se trata de uma rebelião de um novo tipo. Os zapatistas seriam ao mesmo tempo indígenas e universais, ou talvez os atores indígenas recuperem através do EZLN a sua tradição e a sua universalidade, o seu próprio passado e o futuro da humanidade.

Estes autores retomam a tradição maia de luta, o espírito comunitário e as experiências de conscientização vivenciadas em Chiapas a partir da teologia da libertação para, enfim concluírem que este processo teve por resultado a formação de um novo tipo de ator social indígena, diferenciado tanto das tradições mais fechadas, quanto das experiências mais recentes do caciquismo que cooptou durante todo o século XX expressivas lideranças indígenas integrando-as aos quadros do PRI

Para os autores que tentam circunscrever à escala regional o movimento social, os atores indígenas que construíram um movimento desde a década de 70, teriam aceitado a oferta de radicalização apresentada pela antiga organização que deu origem ao EZLN. Em que pese a notória distância deste tipo de interpretação para a daqueles que situam o movimento dentro de uma conjuntura nacional e internacional, verifica-se também aqui que este movimento não é resultado de manipulação política, mas um herdeiro de uma luta justa contra a exclusão no estado de Chiapas.

Por outro lado, um grupo significativo de intelectuais prefere apegar-se à teoria “conspiratória” já assinalada acima, destacando os papeis do sub-Comandante Marcos, do bispo de San Cristobal de las Casas e, da organização guerrilheira e, apenas secundariamente o papel dos indígenas.

O historiador Tello, no seu relato prefere assinalar a participação da organização guerrilheira que deu origem ao movimento o ELN (Exército d libertação Nacional), os conflitos internos do Partido no poder (PRI), os “golpes” de Marcos sobre outros militantes influentes e só secundariamente assinalar a composição indígena das bases do movimento. Este autor faz um relato onde ambiguamente os indígenas são postos como os atores e as principais vítimas do movimento.

Os jornalistas La Grange e Rico que escreveram o livro “Marcos um impostura genial”, além de se preocuparem em investigar a dimensão pessoal do drama humano que se vive no México, destacam sobretudo o papel do dirigente, não poupando adjetivos para o líder, que seria um hábil orador, ator de talento, ensaísta etc., com grande capacidade de manipulação. Acentua-se na “biografia” construída de de Marcos por estes jornalistas a participação pessoal de Marcos, do bispo Samuel Ruiz e do antigo candidato à presidência da república Manuel Camacho. A atuação destes “atores” aliada à omissão do governo teriam sido fundamentais para o para a realização da sublevação armada em janeiro de 94. Por outro lado, a capacidade de Marcos em manipular os meios tecnológicos modernos e a imprensa local e internacional teriam hiper-dimensionado o movimento.

Logo, duas perspectivas se opõem, uma busca entender o movimento na sua complexidade, tentando entender seus elementos classistas e étnicos, considerando-o prioritariamente enquanto originário dos povos indígenas, mesmo reconhecendo o papel dos guerrilheiros e da teologia da libertação. Outra destaca atores individuais que teriam catalisado, construído, permitido ou divulgado virtualmente a insatisfação dos indígenas e lhe emprestado um significado irreal.

Algumas considerações finais pessoais

O nosso ponto de partida, no presente texto foi o incômodo que o EZLN provoca no seio dos intelectuais, obrigando-os a posicionarem-se diante da rebelião, ao tempo em que testa a ideologia pós-moderna que não comporta movimentos de caráter revolucionário, herdeiros do pensamento utópico. A análise dos textos, demonstra que de fato, encontra-se um grupo significativo de autores, às vezes até mesmo influenciados, em certos aspectos, pelo debate discursivo modernidade/pós-modernidade que concebem o movimento de Chiapas como um novo capítulo da luta contra a opressão social, compreendida classicamente apenas enquanto subordinação de classe, aportando enquanto novidade a participação dos indígenas enquanto verdadeiros sujeitos sociais, locais e universais ao mesmo tempo.  O ideário do EZLN que não pretende a destruição do estado mexicano mas sim o respeito à autonomia indígena e o fim da exploração e da miséria social, o diferencia dos movimentos nacionalistas europeus e indicam novas possibilidades na resolução dos conflitos originários das formas de subordinação desenvolvidas na sociedade capitalista, por isso estas análises mesmo apresentando, em alguns casos certas incongruências teóricas, são ricas e abrem novos horizontes para o estudo dos movimentos classistas e étnicos.

Por outro lado, o que entendemos como pensamento à direita, nega a dimensão social do movimento e credita a alguns sujeitos e ao Estado mexicano o seu surgimento e permanência, para este a situação poderá ser resolvida com algumas decisões sociais e políticas do governo que favoreçam a melhoria das condições de vida da população indígena Isto deve ser feito sem colocar em risco o processo de integração do México ao processo de internacionalização capitalista. Para esta segunda perspectiva não se trata de buscar novos caminhos, pois eles de certa forma já estariam traçados, logo se trata de resolver as demandas dos grupos indígenas sem colocar em risco a ordem social no México e por extensão em outros países onde se criaram comitês de solidariedade ao EZLN.

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· Este texto foi escrito durante período em que estamos realizando pós-doutoramento na Universidade de Tolouse le Mirail- GRAL (Grupo de Recherche de l’Amérique Latine), Toulouse-France. Para as atividades de pesquisa realizadas neste ano contamos com bolsa de estudos da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) do Brasil.

[1] De certa forma o Sub-Comandante Marcos compartilha de uma certa concepção de globalização que admite que a atual fase de internacionalização do capital é absolutamente distinta do desenvolvimento capitalista anterior. Esta nova fase seria possível devido ao advento das novas tecnologias que permitiria a plena globalização do mercado financeiro. A nosso ver as novas tecnologias apenas imprimiram maior velocidade a um processo já conhecido desde o final do século passado, qual seja: a internacionalização e a financeirização da sociedade capitalista.

[2] Este autor tem nitidamente uma posição de interpretação à direita dos demais autores citados, apresentando uma postura crítica negativa em relação ao movimento, preocupando-se mais em identificar causas de ordem conspiratória que teriam permitido a emergência e o fortalecimento do EZLN. Esta opção de interpretação é compartilhada por Bertrand de La Grange e Maite Rico, que realizaram minuciosa enquete sobre o Sub-Comandante Marcos na intenção de estabelecer sua verdadeira identidade

[3] A exemplo de La Grange e Rico que referindo-se à uma entrevista que Marcos concedeu à uma jornalista dos Estados Unidos, identificando-se com vários personagens excluídos concluíram que o guerrilheiro utilizava-se de artíficos para despistar os jornalistas que investigavam a sua verdadeira identidade.


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