CONGRESO VIRTUAL 2002 > SIMPOSIO COMUNICACION SOCIAL

O Profano Sacralizado

Autor: Fernando de Tacca

Instituição: Departamento de Multimeios - Instituto de Artes/Unicamp

Resumo:

Em 1951, José Medeiros então fotógrafo da revista O Cruzeiro, fotografou um ritual de iniciação no Candomblé, Bahia. A reportagem foi publicada em 1951 na revista com o título “ As Noivas dos Deuses Sanguinários". Seis anos depois, em 1957, a mesma editora da revista O Cruzeiro publicou um livro chamado " Candomblé" com todas as fotografias publicadas na revista acrescentadas de mais algumas escolhidas por Medeiros. A nova forma de publicação colocou as mesmas imagens em outro formato e em outra valorização imagética. Pretendo nessa comunicação discutir, a partir de um estudo de caso, os formatos de apresentação de material etnográfico nos meios de comunicação de massas e suas decorrentes conseqüências com a invasão de olhar leigo, voyerísta e massificado,  induzido pela mídia  e pelas especificidades da fotografia em relação às cerimônias e rituais de culturas tradicionais.

 

Palavras-Chaves:

Antropologia da Imagem

Fotojornalismo

Foto Documental


O profano sacralizado

Fernando de Tacca [1]

Para visualizar o artigo e as todas as imagens online:

http://www.studium.iar.unicamp.br/sete/4.html

Introdução

                   Em 1951, José Medeiros, então fotógrafo da revista O Cruzeiro, importunado e incomodado por uma reportagem sobre Candomblé publicada na França [2] , resolveu propor uma reportagem mostrando os aspectos inacessíveis ao olhar leigo dos rituais de iniciação dessa religião afro-brasileira. Segundo ele, a reportagem estrangeira abordando somente sua parte pública, o cerimonial visível pelo leigo nas festas preparatórias e no encerramento da festa pública, não mostrava o verdadeiro Candomblé. Como era costume no processo de decisão de pauta no Cruzeiro, os fotógrafos tinham autonomia para propor e conduzir uma reportagem, e assim o fez Medeiros. Aprovado o assunto, partiu ele para a Bahia para tentar uma documentação original dos rituais. A dificuldade de aproximação nos terreiros tradicionais levou-o a procurar alternativas e um guia indicou-lhe uma casa não tradicional na qual estavam em iniciação três Yaôs ( termo que designa as pessoas que estão em processo de iniciação no Candomblé).

                   Medeiros relatou-nos que teve uma experiência desagradável quando freqüentava os terreiros tradicionais tentando primeiras aproximações com o intuito de fotografar, e logo em um deles, e mesmo sem portar o equipamento fotográfico, foi questionado por uma mãe-de-santo em transe que diretamente dirigiu-se a ele e falou: “Você veio aqui para fotografar mas não vai, não!”. Medeiros contou-nos essa passagem com um ar de espanto místico mas, como fotojornalista exemplar, refletiu  internamente que não iria desistir de mostrar o “verdadeiro Candomblé” e voltar para a redação sem o material prometido. Assim, mesmo fora dos terreiros tradicionais já se sabia de seus objetivos, afinal, a chegada de um fotógrafo da revista O Cruzeiro causava alvoroço e gerava comentários em qualquer cidade na época, e ele foi procurado por um guia que o conduziu a um terreiro na periferia, no qual estariam sendo iniciadas três Yaôs: o terreiro da mãe-de-santo Mãe Riso da Plataforma.

                   Contou-nos Medeiros que pagou à mãe-de-santo para fotografar as três Yaôs dentro de sua reclusão e as etapas do ritual de iniciação. Com a carga mística envolvendo sua fala e o fato de estar documentando procedimentos ritualísticos não veiculados pela mídia até então, falou-nos com forte ar de mistério que ainda teve problemas com seu equipamento pois o cabo de sincronismo do flash quebrou. Como o ambiente era muito escuro, fez as fotos com sua Rolleiflex usando B no anel do obturador (esse dispositivo permite sensibilizar a película por quanto tempo desejar o fotógrafo; enquanto estiver apertando o botão disparador o filme está sendo exposto). Assim, acionando e segurando o disparador na posição B, disparou a luz do flash e imprimiu imagens com ótima qualidade tonal no material fotossensível, demonstrando sua capacidade técnica.

                   A reportagem foi publicada no dia 15 de novembro de 1951 na revista O Cruzeiro com o título “As noivas dos deuses sanguinários”, contendo 38 fotografias. Segundo Medeiros, a publicação das imagens, que mostravam cenas de sacrifício de animais, cenas internas da reclusão e detalhes do processo ritualístico, causou muita polêmica no meio do Candomblé na Bahia. Ainda, segundo ele, devido à reportagem, as Yaôs não tiveram sua iniciação reconhecida e assim ficaram marginalizadas dentro da religião, com conseqüências graves para elas, uma suicidou um ano depois e outra foi internada em um hospital psiquiátrico. A mãe-de-santo foi assassinada um ano depois, mas Medeiros não sabia as causas do fato.

                   Seis anos depois, em 1957, a mesma editora da revista O Cruzeiro publicou um livro chamado “Candomblé” com todas as fotografias veiculadas na revista, com um acréscimo considerável de mais algumas escolhidas por Medeiros, totalizando 60 imagens, 22 fotografias a mais. A nova forma de publicação colocou as mesmas imagens em outro formato e em outra valorização. Se na revista o artifício jornalístico era o sensacionalismo para atingir um formato popular direto e ofensivo à religião já a partir do próprio título, no livro as imagens passaram a ser um material etnográfico precioso e único.

                   O material fotográfico coletado por José Medeiros transforma-se em conteúdo de uma primeira publicação marcada por um fotojornalismo sensacionalista para um documento etnográfico na apresentação gráfica e nas marcações das legendas no formato livro. O objetivo desse trabalho é discutir as mudanças de significação do material exposto acima, aprofundando a análise às narrativas nos meios impressos em que foi publicado. Na primeira versão temos uma profanação do espaço do sagrado ao tornar visível ao olhar leigo o que é permitido somente para iniciados, e um olhar leigo massificado pela importância da revista O Cruzeiro na opinião pública da época. Na segunda versão temos as mesmas imagens sem o tratamento sensacionalista mas com uma abordagem que transparece uma aparente neutralidade na explicitação do ritual, tornando-as um documento etnográfico ou científico, coroando-as com uma nova aura para o sagrado profanado. O deslocamento contextual encontra a gênese da fotografia como realidades múltiplas permitindo, desta forma, significações diferenciadas, sagradas ou profanas.

                   Os formatos de apresentação de material etnográfico nos meios de comunicação de massas e suas decorrentes conseqüências com a invasão do olhar leigo voyeur e massificado, muitas vezes preconceituoso e induzido pela mídia em relação às cerimônias e rituais tradicionais de culturas locais não globalizadas, produz significações descontextualizadas muitas vezes pejorativas e elevadas ao campo do exótico. Entretanto, as mesmas imagens descoladas do contexto jornalístico reencontram seu referente vivificado no valor etnográfico das imagens publicadas no livro.


A fricção ritualística

                   Os processos sociais nomeados como rituais de passagem (Gennep, 1978; Turner:1974; Leach:1978) caracterizam uma zona marginal na qual os iniciados em uma religião e inúmeras outras situações sociais, como acentua Van Gennep no próprio subtítulo de seu trabalho (ver bilbliografia), ficam isolados da marcação linear temporal da sociedade vivendo um tempo mágico e um estado social diferenciado. Os ritos de passagem são marcados por cerimônias de separação (preliminares) e de agregação (pós-liminares) que criam no seu interstício, muitas vezes de longa duração, um estado de liminaridade acentuado principalmente nos casos de ritos de iniciação. As características da liminaridade às quais o neófito está sujeito são: submissão, silêncio, ausência de sexualidade e anonímia. São entidades em transição, em passagem, não tendo lugar e posição, pois todos os atributos da ordem social são suspensos e as categorias e grupos sociais dissolvem-se na morte social da liminaridade.

                   Assim Turner refere-se a esse estado do evento social nos ritos de passagem: “O neófito na liminaridade deve ser uma tábula rasa, uma lousa em branco, na qual se inscreve o conhecimento e a sabedoria do grupo, nos aspectos pertinentes ao novo “status”. Os ordálios e humilhações, com freqüência de caráter grosseiramente fisiológico, a que os neófitos são submetidos, representam em parte, a têmpera da essência deles, a fim de prepará-los para enfrentar as novas responsabilidades e refreá-los de antemão, para não abusarem de seus novos privilégios. É preciso mostrar-lhes que, por si mesmos, são barro ou pó, simples matéria, cuja forma lhes é impressa pela sociedade" (Turner:127: 1974).

                   Da mesma forma, utilizando os mesmos procedimentos conceituais, a fotografia pode ser considerada como um ritual de passagem (Tomas: 1982/1983/1988). Tomas parte da estrutura proposta por esses autores para encontrar similitudes no processo entre o ato fotográfico em si, no momento único de sua indicialidade, e seus procedimentos técnicos no processamento da imagem como um ritual de passagem. De forma sintética, para Tomas o rito de separação na cerimônia fotográfica é desprendimento da materialidade e os processos óticos de inversão para um suporte bidimensional. A negatividade e a ausência de luz significariam o momento da liminaridade, a imagem latente não processada quimicamente e seu processo de formação de uma imagem negativa da realidade. A agregação é a criação da condição de positividade da imagem e sua inserção no campo social. A morte simbólica através da redução ótica e na espacialidade do suporte bidimensional transforma-se em "ponte de permanência" de uma cena ou de uma pessoa, ou seja, a ligação entre o fotógrafo e o espectador da imagem criando um "eterno presente".

                   A similitude entre os processos de um ritual de passagem na sua liminaridade e o da imagem técnica da fotografia, também marcada por um processo ritualizado que cria campos marginais com todas as características dos ritos de passagem, transfere o rompimento da linearidade do tempo social, e entenda-se aqui o espaço do sagrado nesses rituais, para outra categoria liminar, agora no campo das imagens técnicas. A superposição das liminaridades justapõe a proibição da visão nas reclusões dos iniciados e na imagem latente da película. A existência de dois campos marginais, ou liminares, cria uma fricção ritualística entre o sagrado contextualizado na cosmologia religiosa e os mecanismos ideológicos no processamento da imagem técnica, ou seja, a metáfora de Turner para a modelagem do barro pela matéria nuclear, a transformação do pó,  aplica-se à modelagem da luz pelos grãos de prata, uma construção imagética social que lhes dá forma existencial além da primeira realidade. A morte social encontra aqui similitude na morte da primeira realidade, já que prisioneira do recorte temporal e espacial do campo fotográfico ressurge na agregação como um conceito, uma imagem conceito (Tacca:2001).

                   Ao trazer ao olhar leigo o campo elegido da magia ou do contato primordial com as divindades, o campo marginal da imagem fotográfica assume e superpõe sua liminaridade ao campo religioso, uma nova magia estabelece-se alterando o conteúdo original do sagrado, na palavras de Flusser: “A nova magia não visa modificar o mundo lá fora, como faz a pré-história, mas os nossos conceitos em relação ao mundo. É magia de segunda ordem: feitiço abstrato. Tal diferença pode ser formulada da seguinte maneira: a magia pré-histórica ritualiza determinados modelos, mitos. A magia atual ritualiza outro tipo de modelo: programas. Mito não é elaborado no interior da transmissão, já que é elaborado por um “deus”. Programa é modelo elaborado no interior mesmo da transmissão, por “funcionários”. A nova magia é ritualização de programas, visando programar seus receptores para um comportamento mágico programático". (Flusser:1980:22)

                   Guardada na escuridão para preservar seu campo liminar, a imagem latente não pode causar danos para o sagrado religioso, mantém-se invisível na escuridão do sagrado fotográfico; temos então o sagrado superposto; entretanto, ao dar-se a ver, e de forma pública, rompe a estrutura própria do segundo campo liminar, expondo a liminaridade inicial, mas ainda somente para os olhos individualizados do fotógrafo ou de seu laboratorista, ou mesmo de algumas pessoas da redação. A publicação das imagens decreta a profanação do sagrado. Aqui nos aproximamos do que Van Gennep chamou de “rotação do sagrado”. A rotatividade do sagrado ou, como diz Da Mata, a relatividade do sagrado. Perde-se a aura original do fechamento social da reclusão após tornar-se imagem massificada, mas cria-se no deslocamento original do profano um nova ordem sagrada, a ordem mágica e programática das imagens técnicas (Flusser:1980).

                   O sagrado desloca-se de seu sítio apreendido na câmara escura, guardiã dos segredos originais quando ainda latente, para se concretizar em imagens visíveis. No relativismo do campo religioso do Candomblé cristaliza-se a profanação; na existência do documento etnográfico único, uma nova ordenação do sagrado existindo no campo imagético; o fotógrafo torna-se feiticeiro, ou melhor dizendo, sacerdote de uma ordem superior da sociedade tecnológica, um embate de duas magias. O fotógrafo/feiticeiro extrapola a "lógica da falácia do bruxo" (Leach: 1978:37-40), pois em vez de cometer o "erro" de transformar um símbolo metafórico em signo metonímico estará epistemologicamente sempre dentro do campo da indicialidade, ou da existência por contigüidade física (Dubois: 1994:94); ou ainda no processo de construção da significação do signo fotográfico que implica em superposição de significante e referente (Barthes:1980:18), mesmo que o operador seja simplesmente um mero "funcionário do programa" (Flusser: 1980:22).

                   Aprofundando a liminaridade fotográfica, lembramos o que dissemos antes, ou seja, a técnica fotográfica manipulada por Medeiros propiciou uma exposição longa, com tempo indefinido na posição B, que atua no tempo extenso do obturador aberto no toque do dedo e na velocidade intensa e rápida do flash para guardar a imagem latente em película e levá-la em liminaridade para outros espaços, o laboratório e, depois, a visibilidade da publicação das imagens nos meios de comunicação.

                   O deslocamento do profano no roteiro revista – livro permite voltar à Van Gennep e o "deslocamento dos círculos mágicos", em que conforme uma posição ou outra na sociedade muda-se o lugar do indivíduo ou de seu status: “Quem passa, no curso da vida, por estas alternativas encontra-se no momento dado, pelo próprio jogo das concepções e das classificações, girando sobre si mesmos e olhando para o sagrado em lugar de estar voltado para o profano, ou inversamente" (Van Gennep: 32: 1977).

                   O referente aderido à imagem fotográfica perde sua carga mítica original descontextualizando o evento religioso, para se transformar em outra magia, uma magia contemporânea que não se propõe a modificar o mundo, e sim nossos conceitos sobre o mundo, ou o que Flusser chama de magia de segunda ordem (Flusser:1980:22); com essa carga intencional, o sensacionalismo urge para os olhares maniqueístas da cultura na categorização de um primitivismo religioso visto pejorativamente pelos valores estabelecidos do "bem" e, desta forma, o fotógrafo substitui com eficácia o feiticeiro/xamã/pai-de-santo criando uma nova ordem imagética e programática na sociedade de consumo de imagens enquanto mercadorias simbólicas.

Bibliografia

Barthes, Roland. A Câmara Clara. Edições 70, Lisboa, 1980.

Dubois, Philippe. O Ato Fotográfico e outros Ensaios. Papirus, Campinas, 1994.

Da Matta, Roberto. "Apresentação". In: Gennep, Arnold Van. Os ritos de passagem. Vozes, Petrópolis, 1978.

Flusser, Vilém. Filosofia da Caixa Preta - Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Hucitec, São Paulo, 1985.

Leach, Edmund. Cultura e Comunicação - A lógica pela qual os símbolos estão ligados - Uma introdução ao uso da análise estruturalistas em Antropologia Social. Zahar, Rio de Janeiro, 1978.

Tacca, Fernando de. “O Feitiço Abstrato”. Cadernos da Pós-graduação, Instituto de Artes, Unicamp, ano 3, volume 3, nº 2, 1999; e Revista Eletrônica Studium: http://www.studium.iar.unicamp.br

Tomas, David. “The ritual of photography”. In: Semiotica. Nº.40-1/2, Mouton Publishers, Amsterdam, 1982.

____________. “A mechanism for meaning - A ritual and the photographic process”. In: Semiotica, nº.46-1, Mouton Publishers, Amsterdam, 1983.

____________ “Toward and anthropology of sight - Ritual performance and the photographic process”. In Semiotica, nº.68-3/4, Mouton Publishers, Amsterdam, 1988.

Turner, Victor W. O Processo Ritual. Vozes, Petrópolis, 1974.

Van Gennep, Arnold. Ritos de Passagem - Estudos sistemático dos ritos da porta e da soleira, da hospitalidade, da adoção, gravidez e parto, nascimento, infância, puberdade, iniciação, ordenação, noivado, casamento, funerais, estações, etc. Editora Vozes, Petrópolis, 1978.



[1] Fernando de Tacca é fotógrafo, doutor em Antropologia (USP) e professor no Departamento de Multimeios, Unicamp.  Autor do livro " A Imagética da Comissão Rondon - Etnografias Fílmicas Estratégicas", Papirus, Campinas, 2001. Contemplado com a Bolsa Vitae de Artes 2002 - Fotografia

[2] José Medeiros concedeu-me uma entrevista em 1988, ocasião na qual relatou os fatos aqui apresentados.


Buscar en esta seccion :