Festa da Boa Morte: Identidade, Sincretismo e Música na religiosidade brasileira

Francisca Marques
Laboratório de Etnomusicologia (UFRJ)
Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil)
mosaico9@hotmail.com

Resumo

A Irmandade da Boa Morte é uma confraria católica de mulheres negras e mestiças que descendem e representam a ancestralidade dos povos africanos escravizados, e libertos, no Recôncavo da Bahia.

A atuação das primeiras Irmãs da Boa Morte teve significado político, social e, significativamente, religioso. Segundo Pierre Verger (1992), foi como organização advinda das mulheres adeptas à confraria de Nossa Senhora da Boa Morte que teria sido fundado no início do século XIX o primeiro Candomblé keto de Salvador. A partir de 1820, a Irmandade teria se expandido para a cidade de Cachoeira, local onde ainda hoje preserva seus rituais públicos e secretos.

"Foi uma promessa que os escravos fez na luta, no sofrimento, que eles alcançassem a liberdade que a morte seria desaparecida, porque a morte é o sofrimento e a vida é glória. E a glória é para sempre." (D. Estelita, Juíza Perpétua da Boa Morte em depoimento à pesquisadora; janeiro 2000).


A pesquisadora em trabalho acústico durante a Procissão da Glória, agosto de 2000
(Foto: Tatsuhiro Yazawa)

A polêmica sobre o valor e o significado do sincretismo normalmente se apóia na idéia dominadora de uma religião sobre a outra, como é o caso do cristianismo europeu sobre negro africano, cultural e espiritualmente.

O Candomblé, como religião de ascendência africana, tem predominantemente características particulares de culto e reverência aos ancestrais negros (Orixás), mas nele existem também atribuições indígenas (Caboclos), assim como traz referências cristãs, importantes, senão fundamentais, para o entendimento do universo mítico das religiões brasileiras.

Existe que é justamente essa coisa do sincretismo. Aqui é uma entidade religiosa católica, mas obedecendo ao sincretismo religioso baiano essas santas mulheres nos terreiros de macumba elas adotam e aceitam outro nome que é o de Nanã, de Yemanjá, etc. É realmente uma ligação do sincretismo religioso baiano que já adotado pela Igreja Católica já há alguns anos, e isso as pessoas aqui aceitam na maior naturalidade.[1]  (Valmir Pereira dos Santos, jan. 2000, em depoimento à pesquisadora)

Nessa síntese integradora, o papel das festas populares, como a de Nossa Senhora da Boa Morte, parece manter e organizar a mistura de diferentes identidades e crenças que refletem de modo geral imagens arquetípicas (Jung:1985) expressas, também, no sincretismo da religiosidade popular. 

Essa religiosidade, além de ser uma motivação à atividade religiosa e à devoção, nos parece um ajustamento entre as ações do ser humano à uma ordem cósmica imaginada e projetada no plano da experiência  humana (Geertz 1978: 104). 

Os rituais da Boa Morte tem traços da religião materna peculiarmente enfatizados pela cultura matriarcal do povo de santo. Nossa Senhora tem a face da Morte (é Nanã) e a face da Glória (é Oxum, e para alguns, Yemanjá também)[2].


Oxum (ou Yemanjá)    Ilustração: Caribé

Ruy Póvoas (1999) percebe claramente a Grande Mãe na representação dessas Iabás:

"(...) todo mundo veio da Grande Mãe, passa a vida inteira à sua busca e termina, com a morte, voltando para ela. Ela nos inventa, reinventa, gesta, cria, solta no mundo, vive nas profundezas da nossa essência e depois encolhe os cordéis e nos leva de volta para o seu interior que é a origem  de nossas origens". (Póvoas 1999:232)


Maria  em representação materna[3]

 No nosso entender, esse arquétipo se aplica ao Feminino da psique humana, e assim sendo, é presente mesmo em tradições predominantemente masculinas, como é o caso do cristianismo. Através de Nossa Senhora, e das suas muitas faces, percebemos também o arquétipo da Grande Mãe como protetora, defensora, sustentadora e mantenedora da natureza e da humanidade.   

 "(...) a divindade vem sempre representada pela cultura sob o simbolismo paterno e materno. Este simbolismo está a serviço de dois tipos religiosos fundamentais: um ctônico (telúrico), orientado para a terra, a vida, a geração, os mistérios da morte: é a religião maternal. O outro é mais urânico (celestial), orientado para o céu, a infinitude, a transcendência: é a religião paternal (...)

Apesar desta predominância, encontra-se na Escritura, como já vimos, traços da religião telúrica e materna. Deus é vivenciado também como a Mãe que consola (Is 66,13), que ergue a criança até junto do seu rosto (Is 49,15); Sl 25,6; 115,11) e possui um seio aconchegador (Jo 1,18)." (Boff 2000:97)

Essas imagens da realidade humana, e do mundo, importa frisar, não pertencem unilateral e separadamente a um determinado, e privilegiado, grupo étnico, mas certamente particularizam e evidenciam aspectos de semelhanças e diferenças na identidade dos povos que coletivamente formam a cultura brasileira.

O caráter mítico que envolve os rituais da Irmandade da Boa Morte são singularmente expressos nas rezas, cânticos, danças, gestos, culinária, indumentárias, e obviamente na relação que essas mulheres tem com a morte, a vida e o divertimento (samba de roda).

A Boa Morte não é pra morrer... é uma coisa de força, de poder, de coragem, entendeu?! Nossa Senhora da Boa Morte é uma mãe. É misericordiosa. Ela é poderosa. Ela acode suas filhas na hora da sua necessidade. Que a gente nasceu pra morrer... todo mundo sabe. Mas ali é pra viver. Só vai na hora certa. (Anália da Paz Santos Leite, Irmã da Boa Morte, nov. 2001, em depoimento à pesquisadora.)

Para Ferretti (1999:114), e concordamos com ele, o sincretismo pode ser visto como característica do fenômeno religioso. "Isto não implica desmerecer nenhuma religião, mas em constatar que, como os demais elementos de uma cultura, a religião constitui uma síntese integradora englobando conteúdos de diversas origens. Tal fato não diminui mas engrandece o domínio da religião, como ponto de encontro e de convergência entre tradições distintas".

Na igreja Santo Antonio é Ogum, mas é Santo Antonio. Aqui Nossa Senhora da Boa Morte, ela tem um símbolo dela. Mas são coisas que a gente não tem condição de revelar assim. Só na hora dos cânticos ali. Tem São Jorge, que no candomblé é Oxossi. Tem Senhor do Bonfim que é Oxalá, tem Nossa Senhora das Candeias que é Yemanjá. Cada um tem sua maneira de ser, né. (Anália da Paz Santos Leite, Irmã da Boa Morte, jan. 2000, em depoimento à pesquisadora)

Essa representação de identidades coletivas, ou símbolos de religiosidade, revelam através da música valores que podem ser aplicáveis em princípio e em potência a qualquer tipo de produção humana (Martí y Pérez: 1996).

Pablo Vila (1996), que fala da narrativa como algo "confundido" com a forma tradicionalmente literária, destaca que "a música popular é um tipo particular de artefato cultural que provê a pessoas diferentes elementos que eles utilizam na construção de suas identidades sociais".

Ainda reforçando as idéias de Vila (1996), na arte e na religiosidade das festas populares, são construídas identidades sociais que articulam os sentidos e os atores sociais para a dimensão temporal relacionando, através de uma mesma narrativa, o passado, o presente e o futuro.

A Festa da Boa Morte acontece como realmente acontece há 226 anos. Essa é a única Irmandade acredito eu no Brasil e no mundo que obedece a esses critérios religiosos, porque elas aqui dão um complemento realmente a passagem de Maria, a assunção e morte, e também a assunção com vida. Então é a única Irmandade que faz toda a celebração desde o início, até chegar o dia da assunção. É o dia do sentimento, o dia do velório, a dedicação as almas, depois tem a assunção, depois da assunção tem a dedicação pra vida, onde tem muito samba, muita comida e muito axé para todos os que estiverem presentes. (Valmir Pereira dos Santos, jan. 2000, em depoimento à pesquisadora)

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As Escrituras nada dizem sobre os últimos anos de Maria. Acredita-se que tenha tido morte natural, aos 70 anos, e é provável que isso tenha ocorrido por volta de 48 ou 49dC. Referências sobre o assunto são encontradas apenas em Evangelhos Apócrifos sobretudo no livro de São João Evangelista datado por Tischendorf (1866) como escrito no século IV. Este evangelho teria tido grande difusão entre os bizantinos (Zilles 2001:221).

De acordo com esse apócrifo, Maria, numa sexta-feira, orando no sepulcro, teria recebido a visita do Arcanjo Gabriel para anunciar que era chegado o momento de sua morte. Ao saber da notícia Ela pede à Cristo que lhe envie os apóstolos para que lhe assistam no momento de sua passagem. As suas orações são atendidas por intercessão do Espírito Santo:

E no momento de sua imaculada alma sair, o lugar foi inundado de perfume e de uma luz inefável. E eis que se ouviu uma voz do céu que dizia: "Bendita és tu entre as mulheres!" Então Pedro, e também eu, João, Paulo e Tomé, abraçamos com toda pressa os seus santos pés para que fossemos santificados. E os doze apóstolos, depois de colocar seu santo corpo no ataúde, levaram-no. (Zilles 2001:237).

A morte de Maria está relacionada ao modelo da morte e ressurreição de Jesus Cristo. No entanto, o momento da passagem de ambos traz interpretações diferentes à ars moriendi. Cristo teve uma morte heróica, depois da via crucis, do martírio, com dor e sofrimento. A sua morte para os cristãos é considerada instrumento de libertação e salvação. Maria teve uma morte gloriosa, ou seja, Ela compartilhou do sofrimento e da morte por toda a sua  vida mas não sofreu ao morrer, e assim sendo, diz-se que ela, como o Cristo, venceu a morte. Para os teólogos a finalização da vida terrestre de Maria é descrita "como morte provocada por um "êxtase", um "trânsito" ao céu, uma espécie de "adormecimento" (Strada 1998:117). Boff (2000:178-185) entende que a morte foi um bem perfeitamente assimilado por Nossa Senhora. Para ele, com a morte irrompe a vida liberta como força latente da mortalidade. Através da morte o ser humano vai de encontro à possibilidade de entrega a algo maior que o transcende [Deus] e o realiza sumamente.

Na catequese de João Paulo II (1997) o papa considera que "se Cristo morreu,  seria difícil afirmar o contrário no que concerne à Mãe (...)"; que "os apóstolos se reuniram para enterrar seu corpo"; e que "Cristo a ressussitou do sepulcro".

Segundo Strada (1998:116) a festa do "adormecimento" começa a ser celebrada em Jerusalém no século VI.  Já no século VII se estendia a toda a Igreja bizantina, sob o nome de kóimesis tés theotokv, que quer dizer "Dormição da Mãe de Deus" (Passos 1992:70). Seria no século VIII que o termo apareceria no sacramentário do papa Adriano com o nome de Assumptio, Assunção, quando então foi extendido a todo o ocidente.

Embora o imperador Maurício (599-602) tenha fixado a data de 15 de agosto para celebrar a festa da Assunção de Maria, os textos apócrifos, e uma posterior resolução da Igreja Católica, que se mantém ainda hoje, mantém o domingo fixo à essa comemoração:

"Já sabeis que em domingo realizou-se a anunciação do Arcanjo Gabriel à Virgem Maria, e que em domingo nasceu o Salvador em Belém, e que em domingo os filhos de Jerusalém saíram com ramos ao seu encontro, dizendo: "Hosana nas alturas! Bendito aquele que vem em nome do Senhor", e que em domingo ressuscitou dentre os mortos, e que em domingo, finalmente, baixará dos céus para honrar e glorificar, com sua presença, a partida da santa e gloriosa virgem que lhe deu à luz" (Apud Zilles 2001:234)

A propósito da introdução do culto à Boa Morte pelos jesuítas portugueses no Brasil e a difusão de irmandades leigas na segunda metade dos setecentos em Minas Gerais,  Campos (1995) atribui à mentalidade barroca uma profunda angústia diante da morte e um extremo apego e desgosto pela efemeridade da existência terrena que  levaria à ânsia de salvação eterna. Ao mesmo tempo que tinham "horror declarado à decomposição do corpo, ainda que a cultura oficial insistisse na imortalidade da alma, os cristãos tinham incertezas em relação à sentença que lhes seria proferida no Juízo particular, concomitantemente à morte". Considerando as análises do teólogo Michael Schmaus a pesquisadora salienta:

É a angústia condizente com a separação da família, dos amigos e das formas humanas de existência e, nesse sentido, a morte é solidão para os que ficam e para os que partem. Com ela são definitivamente encerradas as possibilidades de vida pessoal e social, concluindo-se absolutamente o destino humano.

Se, como afirma Bacelar (1989:33), a construção de uma identidade étnica é um jogo de permutas, manipulações e estratégias de diferenças e semelhanças diante de uma etnia dominante, podemos pensar que o negro da Bahia colonial além de oferecer resistência, fazia, também, contestação, e porque não dizer denúncia da realidade da escravidão, do sofrimento e da morte, através das irmandades leigas. A própria nomenclatura atribuída às irmandades, se observarmos atentamente, representa a situação e as necessidades do negro escravo, através da apropriação da mítica cristã (Nosso Senhor Bom Jesus da Paciência, Nosso Senhor Bom Jesus dos Martírios dos Jeje, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e Nossa Senhora da Boa Morte são alguns exemplos).

Se se define a morte na vida que se extingue, contudo, em todos os tempos, se definiu também a crença que não se extingue com ela o princípio de vida que nela se manifestou. A imortalidade da alma e a transição de um mundo material para outro espiritual,  assim como a ressurreição, é uma característica bastante comum aos mais diferentes povos e religiões, inclusive, africanos.

(...) para o Nagô, a morte não significa absolutamente a extinção total, ou aniquilamento (...) Morrer é uma mudança de estado, de plano de existência e de status. Faz parte da dinâmica do sistema que inclui, evidentemente a dinâmica social. (Elbein dos Santos 1996: 221)

(...) O ser que completou com sucesso a totalidade de seu destino está maduro para a morte. Quando passa do aiye [mundo] para o orun [além/espaço sobrenatural], tendo sido celebrados os rituais pertinentes [axexê], transforma-se automaticamente em ancestre (...) e poderá inclusive ser invocado como Egum. Além dos descendentes gerados por ele durante a sua vida no aiyé, poderá por sua vez participar na formação de novos seres, nos quais se encarnará como elemento coletivo.  (Elbein dos Santos 1996:222)

No seu precioso livro Os Nagô e a Morte, Juana Elbein dos Santos (1996: 54) afirma que na mitologia ioruba o aiyé e o orun não foram sempre separados. Ou seja, "a existência não se desdobrava em dois níveis (...)". Tanto os Orixás habitavam o aiyé quanto os seres humanos iam ao orun e voltavam. "Foi depois da violação de uma interdição que o orun se separou do aiyé e que a existência se desdobrou. Os seres humanos não tem mais a possibilidade de ir ao orun e voltar de lá vivos".

Na literatura, vários são os mitos africanos que falam da "transformação da morte - enquanto circunstância individual - e sua transmutação em espírito ancestral coletivizado", ou Egum. Para Braga (1995:100) a dimensão espiritual do culto aos antepassados é a experiência mais dramática da religiosidade afro-brasileira. Segundo ele, os Eguns são reverenciados e invocados no interior de rígidas estruturas religiosas, mas não menciona que isso possa ocorrer fora dos chamados terreiros de Egum.

Para os nagô, existe uma distinção entre Orixá e Egum. Os pais e antepassados de um grupo familiar, ou linhagem, são Eguns porque tem pertencimento a uma estrutura social determinada seja em clãs ou dinastias. Os Orixás pertencem a uma ordem cósmica e universal, são os criadores simbólicos e espirituais dos seres humanos (Elbein dos Santos 1996:104-105).

A festa da Boa Morte é uma festa de Egum. É Nascimento (2002), em seu importante trabalho quem melhor sintetiza, até o momento, a presença do candomblé na Irmandade da Boa Morte:

(...) em cada rito predomina determinados Orixás, de modo que, na medida em que o drama se desenrola, esses Orixás vão saindo de cena. No primeiro rito, por exemplo, predomina a figura de Oiá-Iansã, que cuida dos Éguns; no segundo rito, Nanã, Ogum e Obaluaiyê, sendo possível ainda a presença de Oiá-Iansã; no terceiro rito, Oxum, Nanã, Iemanjá (e Oxalá como elemento de equilíbrio) (...). Notamos que Nanã participa dos dois mais importantes ritos. Isto porque, como vimos, ela atua nos dois domínios da existência, como Exu.  (Nascimento 2002: 128)

Nanã é considerada uma divindade associada aos primórdios da criação, cujo símbolo, em forma de útero, o ibiri, é um cetro de fibras atadas com tiras ornadas de búzios. A sua personificação é de uma velha cujos domínios e mistérios são revelados em cantigas, saudações, e nos mitos de seu culto estritamente ligado à água, à lama e à morte:

[Nanã] (...) ela é relacionada com o nascimento porque ela dá a luz a três entidades relacionadas com a morte [Obaluaê, Oxumarê e Iroco]. E ao mesmo tempo é relacionada com a morte porque ela, por ser da lama, é ela quem, depois da destruição do corpo... o homem vem da lama e da lama voltará... não tem algo assim... Ela é que faz a destruição do corpo, a putrefação é exatamente o domínio de Nanã. Mas ao mesmo tempo a putrefação é que fertiliza, é que aduba para que nascam outras vidas. Então ela também é relacionada à morte nesse sentido.  A lama tem sentido da destruição do corpo, da transformação do corpo em adubo, criando uma outra vida. Então o princípio da Irmandade da Boa Morte é essa figura de Nanã, porque no mito da criação ela tem essas duas funções de vida e de morte.  E Obaluaê, ele é o filho direto, o filho mais preferido dela, é quem cuida da destruição do corpo. Ogum é quem mata. É Ogum quem mata. Para o mito africano, pra crença na religiosidade do Orixá, do Candomblé, ninguém morre porque Deus determinou aquele dia pra ele. Ele morre porque Ogum matou. A pessoa quando acaba de morrer foi ali matada por Ogum. Ele é quem cuida disso. Yansã, ela é relacionada com os Egum. É ela quem toma conta dos Egum. O Egum é o espírito que sobra da minha vida, enquanto eu estiver nesse corpo eu sou um espírito,  uma pessoa. Mas quando eu morro, o meu corpo vai ser matado por Ogum, vai ser destruído por Obaluaê e vai sobrar o meu Egum que vai ser cuidado por Yansã. (Luiz Claudio Nascimento, jan. 2000, em depoimento à pesquisadora)

Nas cerimônias públicas da Irmandade da Boa Morte ficam definidos os cumprimentos às responsabilidades católicas, embora, no mesmo contexto, se estabeleça nitidamente a presença do candomblé inerente à simbologia gestual e dos trajes  em todo processo ritual de forma minuciosamente elaborada, em especial, durante os cortejos fúnebre e glorioso.


A saída do corpo de Nossa Senhora morta, agosto 2000
 (Foto: Tatsuhiro Yazawa)

Segundo informações que recebemos, em cerimônia privativa das Irmãs, é rezado o Ofício de Nossa Senhora e incensada a pequena casa ao lado da Capela de Nossa Senhora da Ajuda, local onde é arrumada e velada a Santa. Só depois é feita a saída do corpo de Nossa Senhora morta. Ela é carregada inicialmente pelas Irmãs que compõem a Comissão da Festa no ano, embora sejam auxiliadas e haja revesamento durante todo o cortejo no translado do corpo por outras Irmãs. Elas todas vestem  branco, tem contas e brincos brancos, ou prateados, usam torço muçulmano também branco e carregam tochas com velas acesas. O traje branco é sinal de luto para o povo de santo.  A missa de corpo presente é feita em memória das Irmãs falecidas, e diz-se que se trata de uma "missa de Egum". Posteriormente, é realizado o velório de Nossa Senhora.

Na seqüência a Irmandade oferece uma Ceia Branca (peixes, pães, alface, arroz branco e vinho) à comunidade. Na ocasião, sexta-feira, dia dedicado a Oxalá, interditam o acesso a dendê e carne. A Ceia Branca é relacionada também aos Orixás Nanã e Yemanjá. Há quem diga que é especialmente preparada para as Irmãs Falecidas, e portanto, é alimento para Egum, e só pode ser comida no interior da Sede da Boa Morte.  Segundo uma Irmã, em uma das festas, anos atrás, alguém teria tentado levar comida embora da Sede e teria levado um murro [de um Egum] e derrubado tudo no chão. Isso foi um sinal de que a pessoa não deveria ter saído do espaço da Sede para comer.

Nossa festa é celebrar a missa para as Irmãs falecidas para daí então comemorar o movimento da festa. Sem fazer a missa delas, faz de conta que é uma oferenda, é uma festa pra elas, nós não podemos fazer. De forma que essa missa que nós fazemos pra eles, a noite dela é pão, peixe e vinho. Faz de conta que é a festa delas que nós estamos celebrando. E aí é que vai ter o enterro da morte. (...) Nós estamos confiadas em Maria e nossa luta, tudo o que nós pedimos e lutamos nós vencemos com a graça dela mesmo. E a gente ficamos orgulhosas com o valor, com o amor e com o mistério de Maria. Estamos aqui Mãe, até o dia que Deus e Vós quiser.  (D. Estelita, Juíza Perpétua da Boa Morte em depoimento à pesquisadora, agosto 2000)

No sábado, na missa e na procissão do enterro, as Irmãs usam seus trajes de gala, as chamadas becas. A cabeça é coberta por um lenço branco denominado bioco. Sobre a camisa branca trazem um pano da costa de veludo preto; na cintura tem um lenço branco sobre a saia preta plissada e calçam chagrins brancos.

Os trajes das mulheres negras provavelmente escapavam ao entendimento  senhorial por constituirem uma linguagem visual própria aplicada a motivos rituais ou profanos de caráter eminentemente africano.


Negra do Partido Alto
Acervo: Dimitri Ganzelevich

A narrativa pictórica de  ilustrações do século XIX (Julião, Rugendas e Debret), ao mesmo tempo que apresentam um padrão no vestuário dessas mulheres, como é o caso da utilização dos turbantes, dos lenços amarrados à cintura e o pano da costa, registra também sinais diferenciadores da condição das negras escravas e libertas (Lara:1997). A utilização das chinelas (chagrins), observadas nas Irmãs da Boa Morte (e nas baianas do Samba de Roda Suerdieck também) é um traço significativo condição de liberta na Bahia colonial. As mulheres da Boa Morte eram chamadas de 'negras do partido alto'.  O termo tem conotação sócio-econômica privilegiada e dava posição de destaque às fundadoras da Irmandade (Nascimento 2002:126; Tavares s/d: 107). 

As festividades de Nossa Senhora da Glória tem um contraste impressionante se comparadas à performance ritual, comportamental e indumentária utilizadas nos dois dias dedicados à Senhora da Morte. A missa e o cortejo antes noturnos, agora passam a ser matutinos; o trajeto da procissão é também diferenciado dos dias anteriores. A Capela de Nossa Senhora passa a ser toda decorada de flores coloridas e vê-se Nossa Senhora antes deitada (morta) em pé.

 
A Juíza Perpétua em representação de Nossa Senhora
Festa da Glória, agosto 2000
(Foto: Tatsuhiro Yazawa)

As Irmãs utilizam a beca com o lenço branco na cabeça, muitos colares, guias, balagandãs, pulseiras e anéis prateados e dourados. O ouro representa a riqueza e a beleza, o vermelho do pano da costa, antes preto, um sinal do sangue (menstrual também), na vida (viva) em Oxum/Yemanjá. Nesse dia o número de pessoas presentes cresce e é bem maior que nos outros anteriores.   

Com suas missas e procissões, os ritos públicos da Irmandade da Boa Morte ecoam aspectos da religiosidade brasileira do século XIX. Os cantos fazem parte do cancioneiro católico popular, sendo que boa parte do  público, tanto na missa quanto nas procissões, os conhece e acompanha cantando. O repertório rememoriza o dogma da  morte e assunção de Nossa Senhora nas letras que podem falar da devoção à Mãe (Guardiã) da Irmandade, ou mesmo pedir guarnição.

Parte também importante da religiosidade, os cantos, rezas e litanias são modalidades narrativas onde o emprego da palavra pronunciada, e cantada, tem força de expressão e manifestação como ato religioso.  Na Boa Morte, elas podem estar contidas também nas saudações entre as Irmãs, em preces coletivas, como a Ave-Maria, ou mesmo na entoação de rezas e cantos específicos contextualizados em cerimônias da Casa.


(Transcrição: Luciana Requião)

Ó Maria, ó Mãe minha
Salvadora dos mortais
Me guiai e amparai
Para as pátrias celestiais
Aos vossos pés estamos nós
Hoje entoando em altas voz
Ó Maria, ó Mãe de Deus
Rogai, rogai, rogai por nós
Rogai, rogai, rogai por nós 
Contra mim do inferno
Embora surge o ferro tentador
Doce virgem nessa hora
Socorrei-me com a dor
Aos vossos pés estamos nós
Hoje entoando em altas voz
Ó Maria, ó Mãe de Deus
Rogai, rogai, rogai por nós
Rogai, rogai, rogai por nós 

Juíza Perpétua: Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo

Irmãs : Para sempre seja louvado e Nossa Mãe Maria Santíssima

Juíza Perpétua: Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo

Irmãs : Para sempre seja louvado e Nossa Mãe Maria Santíssima

Juíza Perpétua: Que a Mãe de Deus abençõe a todos aqui presente e dê benefício de todas as alma dessa Irmandade que esteja presente e que esteja ausente. Que Deus dê força e luz para elas sempre transmitindo aí no espaço.

Irmãs: Que assim seja! (palmas...)

No trabalho acústico acima observamos na alternância da palavra cantada para a palavra pronunciada que o discurso da Juíza Perpétua e das Irmãs apresenta acréscimos à estrutura do responsório católico Louvado Seja ("e Nossa Mãe Maria Santíssima"), como também sugere influências do espiritismo kardecista através de sentenças como "transmitindo aí no espaço" e evidentemente na substituição do "Amém" pelo "Que assim seja!".

O espiritismo é significativo em Cachoeira como opção religiosa de negros e ao que parece foi introduzido contemporaneamente à difusão da doutrina, codificada por Hippolyte Léon Denizard Rivail, Allan Kardec, na França com a edição do Livro dos Espíritos em 1857. Embora existam ainda hoje centros que seguem institucionalizados a doutrina de Kardec em Cachoeira, sabemos que ocorrem mais reservadamente reuniões em casas particulares para sessões espíritas, inclusive coordenadas por Irmãs da Boa Morte.

Conclusão

As origens da Irmandade no contexto histórico colonial e a relação mítica afro-cristã, no nosso entender, servem de suporte ao entendimento da identidade, do sincretismo e da musicalidade predominantes em todo contexto ritual da festa da Boa Morte e Glória. A reflexão que apresentamos é parte de um trabalho etnomusicológico bem mais amplo já desenvolvido. Nosso objetivo, nesse momento, é registrar, apenas, a importância da Irmandade da Boa Morte para o entendimento da religiosidade brasileira.

 

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[1] É perceptível que em Cachoeira, Bahia, grande parte das pessoas aceitam com maior  naturalidade o sincretismo religioso, mas não concordamos com nosso informante de que ele tenha sido "adotado" pela Igreja Católica.

[2] Chamamos a atenção para o fato de que as três entidades do candomblé citadas são ligadas à água.

[3] Não obtivemos referência de autor, obra e data.


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