Secularização do Estado, liberdades e pluralismo religioso
Prof. Dr. Ricardo Mariano (PUC/RS)Este artigo discute como o processo de secularização do Estado brasileiro, cujo ato decisivo foi a separação republicana do Estado da Igreja Católica, resultou na liberdade religiosa, no pluralismo religioso e, conseqüentemente, na formação de vasto mercado religioso. Atenta-se especialmente para o fato de que tais fenômenos favoreceram a expansão do movimento pentecostal no Brasil.
A secularização do aparato jurídico-político constitui processo histórico de enorme relevância na formação das sociedades modernas, particularmente das ocidentais. A separação Estado-Igreja não só faz parte desse processo como o impulsiona[1]. Com a separação, o Estado, além de adquirir autonomia em relação ao grupo religioso ao qual se aliava, amplia ainda mais sua dominação jurídica e política sobre a esfera religiosa. A separação praticamente põe uma pá de cal sobre as pretensões dos grupos religiosos em impor suas normas ao conjunto da sociedade. Mais que isso, a secularização do aparato jurídico-político, além de tornar o direito a um só tempo autônomo e supremo em relação às outras formas de ordens normativas, relativiza, relega a segundo plano e, em grande parte, desqualifica as outras fontes de normatividade. Haja vista que a dominação racional-legal do Estado moderno submete os grupos religiosos ao império da lei, domínio secular ao qual todos os agentes sociais, incluindo os dirigentes da burocracia e dos poderes estatais, devem se subordinar.
Ao monopolizar a criação e a imposição das leis e deter o monopólio legítimo dos meios de repressão, o Estado, portanto, assegura direitos, impõe deveres e pune infrações. A esfera religiosa não escapa do soberano poder do Estado. Basta ver que é o Estado - especialmente o moderno Estado liberal e republicano - que assegura o direito à liberdade religiosa, o direito ao livre exercício dos cultos e o direito dos grupos religiosos à isenção fiscal. É do Estado que se reivindica: a pronta repressão à privação de direitos por motivo de crença religiosa, à discriminação, à intolerância e à perseguição religiosas; a proteção dos locais de culto e suas liturgias, como prescreve a Constituição brasileira; a defesa dos que se vêem vitimados ou têm seus direitos fundamentais violados por determinados agentes religiosos. Da mesma forma, nos modernos Estados democráticos de direito, para que um grupo religioso possa reclamar e obter a reparação de um dano causado por um agente social qualquer ou até pelo próprio Estado, é preciso recorrer às instituições judiciais, políticas e policiais desse mesmo Estado. E por estarem sujeitos à lei - seja às normas de edificação municipais, à legislação que estabelece o máximo de ruído permitido nos cultos, às leis trabalhistas etc. -, os grupos religiosos, tal como todo agente social secular, são passíveis de sofrer as sanções decorrentes de qualquer infração legal.
A separação Estado-Igreja e seu corolário - a secularização (do Estado) e a defesa estatal da liberdade religiosa - propiciaram a efetivação de grandes mudanças no campo religioso contemporâneo. Pois, em geral, a separação entre Estado e religião, instaurada sobretudo pelos Estados liberais - cujo ideário político preconiza a neutralidade religiosa do Estado e a restrição da religião à vida privada ou à particularidade das consciências individuais -, desmantela o monopólio religioso, erodindo, senão totalmente ao menos parcialmente, as prerrogativas que a religião oficial usufruía de sua aliança política com o Estado, e resulta na garantia legal de liberdade religiosa, na defesa da tolerância religiosa e na proteção do pluralismo religioso. Quer dizer, com sua secularização, o Estado passa a garantir legalmente a liberdade dos indivíduos para escolherem voluntariamente que fé professar e o livre exercício dos grupos religiosos, concedendo-lhes, pelo menos no plano jurídico, tratamento isonômico. Com isso, os cultos, doutrinas e liturgias das diferentes religiões adquirem o mesmo estatuto legal perante o Estado. De modo que, por força da lei, que rege as ações do Estado democrático de direito, a proteção estatal à liberdade religiosa possibilita tanto a apostasia, ou a mudança de religião conforme as preferências pessoais dos indivíduos, quanto o ingresso e a formação de novos grupos e movimentos religiosos. E a liberdade religiosa propiciada pela secularização do Estado - liberdade individual e institucional assegurada política e juridicamente tão-somente pelo moderno Estado liberal - está na raiz da formação do pluralismo religioso e do mercado religioso concorrencial.
No Brasil, como veremos adiante, a separação Igreja-Estado rompeu definitivamente o monopólio católico, abrindo caminho para que outros grupos religiosos, em especial os mais motivados, militantes e competentes nas artes de atrair, persuadir e recrutar adeptos e de mantê-los religiosamente mobilizados, pudessem conquistar espaço, avançar numericamente, adquirir legitimidade social e consolidar sua presença institucional, mesmo que minoritária, nesse país cujo campo religioso foi durante a maior parte de sua história dominado por uma religião hegemônica privilegiada de diversas formas e incontáveis vezes pelo Estado.
A discussão teórica sobre a desregulação estatal da esfera religiosa insere-se num amplo debate travado na sociologia da religião norte-americana nos últimos anos. Debate de ânimos acalorados em torno de uma inédita interpretação do pluralismo religioso, que, por sua vez, se articula a uma ardorosa crítica à tese da secularização. Por mais instigante que seja esse debate, não se pretende, aqui, analisá-lo. Ao apresentar a perspectiva teórica que associa desregulação estatal da religião com liberdade e pluralismo religiosos, o que se pretende é mostrar que a secularização do Estado brasileiro consiste num acontecimento histórico crucial para a compreensão da atual configuração do campo religioso nacional e do crescimento pentecostal. Contudo, cumpre frisar desde já que nem todas as concepções e conclusões defendidas pelos expoentes dessa perspectiva teórica - Rodney Stark, William Brainbridge, Laurence Iannaccone e Roger Finke - serão automaticamente acatadas, sobretudo as que se opõem à tese da secularização.
Ao discorrer sobre a desregulação estatal da religião, hoje não se pode deixar de considerar o uso desta expressão na obra[2] dos pesquisadores acima mencionados. Em geral, ela abrange a separação do Estado da religião, que implica a secularização do aparato jurídico-político, sua neutralização em matéria de religião. Pressupõe que o Estado, ao separar-se juridicamente de determinado grupo religioso, promove a desmonopolização religiosa, elimina (ou pelo menos minimiza) os privilégios facultados previamente ao grupo religioso ao qual era aliado, concede e garante a liberdade religiosa e deixa de perseguir ou mesmo excluir certos grupos religiosos. A idéia de neutralização salienta a liberdade religiosa e a crescente diminuição da intervenção estatal nas "economias religiosas", fenômenos que resultam do processo de secularização do Estado nos últimos dois séculos. O Estado, nesse contexto, tende cada vez mais a se manter neutro e imparcial na competição religiosa travada entre os diferentes agentes no mercado religioso, evitando imiscuir-se nesse terreno, seja para privilegiar, seja para prejudicar qualquer um deles. A intervenção do Estado nessa área concorrencial se chocaria diretamente com o princípio da liberdade religiosa, que permite aos diferentes grupos religiosos disputar em condições de igualdade jurídica e sob a proteção do Estado o próprio espaço no mercado religioso. Apesar disso, inexistem exemplos históricos concretos de países em que tenha sucedido plena neutralização da ação estatal na economia religiosa. Com relação ao mercado religioso, cumpre observar que esses autores sustentam uma concepção liberal de mercado, o que é problemático, tendo em vista que os diferentes agentes e instituições religiosos ocupam posições muito desiguais no campo religioso, em especial no que se refere a seu tamanho e à posse de poder e legitimidade social.
Stark, Bainbridge, Iannaccone e Finke, pesquisadores cujos trabalhos vêm polarizando o debate acadêmico na sociologia da religião norte-americana[3] desde o início da década de 1990, defendem a idéia de que a "desregulação estatal da religião", seja nos Estados Unidos ou noutros países, favoreceu a expansão do pluralismo religioso e resultou em maior mobilização religiosa dos agentes religiosos e, por conseqüência, da população. Segundo eles, a secularização do Estado contribui para a diversificação institucional do campo religioso ao pôr fim ao monopólio religioso, às perseguições religiosas e aos privilégios legais de determinadas religiões e ao conceder e assegurar ampla liberdade religiosa aos indivíduos e a todos os agentes e grupos religiosos.
Resultante da separação jurídica Igreja-Estado e da secularização dos aparelhos estatais, o pluralismo religioso tende a acirrar a competição religiosa, uma vez que, para conquistar prosélitos, recursos, poder e reconhecimento social, isto é, para defender seus interesses institucionais em face da concorrência, cada grupo religioso se vê crescentemente compelido a mobilizar seus agentes leigos e eclesiásticos, a exigir deles maior fidelidade, empenho, dedicação, eficiência, dinamismo e militância, a empregar métodos e estratégias de evangelismo mais atraentes e eficazes, a fazer concessões aos interesses e preferências dos leigos e virtuais adeptos. E quanto maior for a variedade dos concorrentes no mercado religioso, maior será a probabilidade de que se ampliem a diversificação e o volume de produtos e serviços religiosos oferecidos aos mais distintos nichos, segmentos e demandas do mercado religioso. Por sua vez, quanto mais diversificada e volumosa for a oferta de produtos e serviços religiosos, maior será a probabilidade de que os interesses materiais e ideais e as preferências dos mais diversos estratos sociais sejam contemplados ou mesmo atendidos pelo dinamismo dos provedores religiosos. Em suma, da desregulação estatal da economia religiosa, resultam a desmonopolização religiosa, a liberdade e o pluralismo religiosos. Da liberdade e do pluralismo religiosos, derivam o afloramento e o recrudescimento da concorrência religiosa, a dilatação do ativismo dos agentes religiosos, o crescimento da oferta de novos produtos e serviços religiosos e, como efeito disso, a maior mobilização religiosa da população. Incremento de participação religiosa que, para esses pesquisadores, põe em xeque a tese da secularização. Da secularização da vida privada, talvez, cumpre frisar, mas de modo algum da secularização do Estado, evidentemente.
Antes de essas idéias virem a público, os trabalhos de Peter Berger - Um modelo de mercado para a análise da ecumenicidade (1963) e O dossel sagrado (publicado originalmente em 1969) - constituíam, segundo Stephen Warner (1993a), verdadeiro paradigma na sociologia da religião norte-americana nas décadas de 70 e 80. Amplamente conhecida dentro e fora dos Estados Unidos, a perspectiva de Berger sustenta que o pluralismo religioso possui caráter secularizador por multiplicar o número de estruturas de plausibilidade, relativizar o conteúdo dos discursos religiosos concorrentes, torná-los assunto privado, subjetivá-los e, em razão disso, gerar ceticismo e descrença. Em radical oposição ao que preconizava Peter Berger, esses pesquisadores afirmam em uníssono que quanto mais desenvolvido for o pluralismo religioso maiores serão a mobilização e participação religiosas do conjunto da população.
Ao contrário de Berger, que, como afirma Warner (1993a: 1061), interpreta o pluralismo religioso como evidência de fraqueza da religião na modernidade, Stark, Bainbridge, Iannaccone e Finke defendem categoricamente a idéia de que "a participação religiosa é mais alta onde um número proporcionalmente maior de empresas religiosas competem" (Stark & Iannaccone, 1992: 2031-2032). Os níveis de compromisso e participação religiosos da população, asseguram eles, são mais baixos nas economias religiosas dominadas por monopólios e, inversamente, mais altos onde vigora o pluralismo religioso. A explicação que eles oferecem para defender essa tese é relativamente simples. Com a secularização do Estado, o fim do monopólio e a garantia estatal da liberdade e tolerância religiosas, ocorrem o aumento do número de agentes e grupos religiosos e a diversificação da oferta de produtos e serviços religiosos. Nesse contexto pluralista, as empresas religiosas, para sobreviver e crescer, são compelidas a concorrer, disputar mercado. Para tanto, muitas organizações religiosas, além de reforçar seu proselitismo, estimulando o ativismo do clero e a militância dos leigos, procuram, como forma de atrair clientela e recrutar novos adeptos, conquistar novos nichos de mercado, especializar-se na oferta de produtos e serviços para suprir interesses e preferências específicos de determinados estratos sociais. De modo que o contexto pluralista, por conta de seu estímulo à competição e à diversificação da oferta de produtos e serviços criados e anunciados pelos concorrentes religiosos, aumenta a probabilidade de que os interesses materiais e ideais dos mais distintos grupos sociais sejam contemplados e atendidos. Em contraste, numa situação de monopólio, a multiplicação e a diferenciação dos produtos e serviços religiosos tendem a ser mais limitadas, na medida em que uma religião reúne menor condição de se diversificar internamente o bastante, sem comprometer sua mensagem, para atender, satisfatória e concomitantemente, à heterogeneidade dos interesses e preferências dos mais distintos grupos sociais.
Uma das fontes dessa inovadora interpretação do pluralismo e do mercado religiosos provém da principal obra do pai do liberalismo econômico. Stark e Iannaccone (1993: 243) afirmam que, em vez de começarem, tal como Max Weber e Richard Tawney, pela teologia para verificar seus efeitos na esfera econômica, foram conduzidos, inversamente, a mover-se dos princípios econômicos para os resultados religiosos sob a influência de Adam Smith, que no clássico A Riqueza das Nações asseverou que o auto-interesse motivava tanto o clero como as empresas seculares e que os benefícios da competição, o peso do monopólio e o risco de regulação do Estado eram tão reais na religião como em qualquer outro setor da economia. O apego teórico de Iannaccone a essa perspectiva decorre, em parte, do fato de ele ser economista. Já a adesão dos sociólogos Stark, Bainbridge e Finke a essa perspectiva ocorre por meio da teoria da escolha racional, da qual são entusiásticos apologistas.
Para Warner (1993a), esses pesquisadores firmaram um novo paradigma na sociologia da religião norte-americana: a idéia de que o vigor de parte considerável das instituições religiosas nos Estados Unidos (e nos demais países que desregularam suas economias religiosas) e a elevada mobilização e participação religiosas de sua população resultam sobretudo do fato de as empresas de salvação nesse país operarem atualmente com total liberdade dentro de um mercado aberto, desregulado pelo Estado[4]. Esses estudiosos, vale frisar, interpretam as variações quantitativas na atividade religiosa existentes nas diferentes sociedades como conseqüência direta de variações no vigor dos produtores ou fornecedores de bens de salvação, variações em grande medida resultantes da maior ou menor intervenção estatal nesse mercado, antes do que em razão de eventuais variações na demanda religiosa. Por essa razão, para compreender as variações quantitativas na atividade religiosa de determinada economia religiosa, eles priorizam a investigação da oferta religiosa e de sua maior ou menor regulação pelo Estado, relegando a segundo plano a investigação da religiosidade individual ou das eventuais mudanças nas demandas religiosas da população.
Roger Finke (1997) justifica essa perspectiva, apontando a relevância da análise da oferta religiosa - freqüentemente ignorada - e da regulação estatal da religião para a compreensão das causas da maior ou menor vitalidade das economias religiosas.
Segundo ele, "explicações da mudança religiosa têm focado quase exclusivamente sobre as mudanças na demanda por religião. O modelo de secularização, há longo tempo a teoria dominante na sociologia da religião, é baseado na premissa de que a religião declinará conforme a modernidade erode a demanda por crenças religiosas tradicionais. (...) A maioria das explicações oferecidas pelos historiadores e cientistas sociais supõe que as flutuações na atividade religiosa se devem a mudanças na demanda por religião. A fonte desta nova demanda é com freqüência atribuída vagamente a realinhamentos culturais, a mudanças na psique nacional, ciclos econômicos, ou uma fuga escapista da modernidade, dando-se pouca atenção à mudança nas ofertas. Uma abordagem pela oferta vira esta suposição de cabeça para baixo e afirma que as mudanças mais significativas na religião derivam da mudança na oferta, não da mudança na demanda" (Finke, 1997: 46).
Finke exemplifica: "O Japão pós 2ª Guerra Mundial serve como um dos muitos exemplos. Antes do fim da 2ª Guerra Mundial, o governo controlava estritamente a atividade religiosa no Japão. O estado subsidiava os santuários Xinto e a participação nas cerimônias xintoístas era uma matéria de dever cívico. Religiões alternativas requeriam reconhecimento do governo para existir legalmente, e uma vez reconhecidas, enfrentavam interferência, supressão e perseguição do estado. (...) Mas a derrota japonesa e a Ocupação Aliada em 1945 levaram a uma imediata abolição de todas as leis que controlavam a religião, separando a religião Xinto do estado e concedendo liberdade religiosa sem precedentes. (...) 'Novas religiões brotaram como cogumelos depois da chuva'. (...) Alguns têm argumentado que foi a demanda por religião, não a oferta, que mudou mais dramaticamente na esteira da 2ª Guerra Mundial. Esta explicação (...) sugere que, quando as pessoas estão diante de expectativas frustradas, instabilidade social e uma perda da fé nas instituições tradicionais, elas procurarão novas religiões oferecendo novas respostas. (...) Rejeito este argumento por várias razões. Primeiro, a derrota japonesa não deu início a um processo de expansão do escapismo espiritual: as religiões tradicionais não experimentaram um aumento no número de membros ou na devoção. Segundo, o crescimento de novas religiões continuou muito depois que a economia japonesa se recuperou e continua ainda hoje. Terceiro, a Alemanha compartilhou a derrota japonesa, mas sua economia religiosa permaneceu altamente regulada e não experimentou um boom de novas religiões no pós-guerra" (Finke, 1997: 47-48).
Finke (Ibid.: 49, 51) argumenta que a regulação estatal, seja pela supressão ou perseguição, seja por meio da concessão de subsídios a determinadas religiões, muda os incentivos e oportunidades para os produtores religiosos, restringindo com isso a competição interreligiosa ou o número e a diversidade de opções religiosas disponíveis no mercado aos consumidores religiosos. Já a abertura do mercado religioso - resultante da separação Igreja-Estado ou do processo de secularização do Estado que ocorreu nos EUA, no Japão, na Coréia do Sul e em vários outros países, entre os quais o Brasil - tende, pelo contrário, a expandir o pluralismo religioso, tornando esse mercado mais competitivo e as organizações religiosas mais ativas e eficientes na mobilização de seus fiéis e na conquista de novos adeptos, o que, do ponto de vista desses estudiosos, tende a incrementar as taxas de participação religiosa da população. Tal como o trabalho de Finke, o estudo de Iannaccone (1997: 40) sobre a participação religiosa em 17 nações Ocidentais encontra "taxas de freqüência e crença religiosas significativamente mais altas em países com maior pluralismo religioso". Na investigação da "explosão do protestantismo na América Latina", David Martin (1990: 13), como vimos, também associa a explosão pentecostal à separação da Igreja Católica do Estado e à geral desregulação estatal da religião nesse continente.
Essa perspectiva teórica enfrenta diversas objeções e críticas. Chris Shea (2001)[5] menciona as principais: Steve Bruce, tal como Peter Berger, ambos defensores da tese da secularização, afirma que a concorrência religiosa e o declínio da religião tradicional andam de mãos dadas; a Igreja Católica tem poucos concorrentes religiosos na Polônia e na Irlanda e mesmo assim, contrariando a tese que correlaciona pluralismo com maior participação religiosa, a fé e a freqüência nas missas são altas; Daniel Olson ataca os métodos estatísticos empregados por Finke e Stark; a respeito disso, questiona-se ainda o tratamento estatístico diferenciado dado por esses pesquisadores aos católicos em comparação aos fiéis de outras organizações religiosas; Mark Chaves e Philip Gorski, a partir da análise de 26 artigos acadêmicos sobre pluralismo religioso, mostram que 16 deles não encontraram relação alguma entre pluralismo e compromisso religioso, ou concluíram que o pluralismo é prejudicial ao compromisso religioso. Apesar de não nos determos na análise delas, vê-se que a maioria das críticas procura contestar a correlação entre pluralismo e participação religiosa. Não é o caso de tomar partido quer pela posição que defende quer pela que rejeita a veracidade de tal correlação. No que concerne aos objetivos deste trabalho, o que se propõe - a partir da apresentação dessa inovadora perspectiva teórica sobre desregulação estatal da religião, pluralismo e participação religiosos - é mostrar a importância da separação jurídica religião-Estado, da secularização do aparelho estatal e da liberdade religiosa para a constituição e o desenvolvimento da atual configuração do campo religioso brasileiro, campo cada vez mais tomado pela livre concorrência entre os diferentes grupos religiosos no mercado, dentre os quais sobressai, pela visibilidade, pelo dinamismo e pela expansão numérica, o pentecostalismo.
Segundo Iannaccone (1997: 27), a liberdade de escolha dos consumidores religiosos tende a constranger mais pronunciadamente os provedores religiosos ali onde a religião é menos regulada pelo Estado e o pluralismo e a competição religiosos são maiores. Nessa situação de liberdade, pluralismo e acirrada concorrência, para serem bem-sucedidos, granjear maior aceitação entre os leigos que os rivais, os grupos religiosos são impelidos a moldar o conteúdo de seus serviços e produtos religiosos às preferências dos consumidores. Para sobreviver em ambientes competitivos, segundo Iannaccone (1995: 77), os grupos religiosos não têm escolha a não ser abandonar modos ineficientes de produção e produtos religiosos impopulares em favor de outros mais atraentes. A despeito de Weber não tratar sociologicamente do fenômeno religioso num contexto de mercado religioso, essas idéias - apesar da radicalidade "economicista" da última delas -, em grande parte, reiteram a perspectiva weberiana acerca da necessidade dos grupos religiosos, na defesa de seus interesses institucionais, em fazer concessões às demandas proféticas, tradicionalistas e intelectualistas dos leigos. Deve-se observar que tais constrangimentos e concessões, decorrentes da liberdade de escolha dos consumidores, tanto podem levar os provedores religiosos a diversificar seus produtos e serviços religiosos como podem resultar, pelo menos parcialmente, no efeito inverso. Nesse sentido, constituem indícios de homogeneização, em vez de diversificação, a ênfase na magia e na emoção por parte dos grupos religiosos brasileiros mais devotados à competição religiosa, caso dos pentecostais e da Renovação Carismática Católica.
A liberdade religiosa propiciada pela secularização do Estado, porém, não pode obscurecer o fato de que a escolha de uma religião é perpassada por diversas mediações sociais e religiosas, uma vez que a filiação religiosa não se processa num vácuo social. Como escreve Maria Lucia Montes (1998: 141), "a adesão à fé pressupõe um trabalho mais amplo do social que, anterior aos indivíduos, molda para ele suas 'opções' no campo religioso." Para relativizar o pressuposto metodológico do individualismo possessivo que sustenta a teoria do mercado de bens de salvação, teoria dominada pela lógica do interesse (tal como a teoria da escolha racional) e que enxerga a escolha religiosa fundamentalmente como uma questão de opção individual, Montes (Id.: 139) afirma que "na delicada trama social que sustenta, para os homens, a credibilidade de um sistema de interpretação de sua experiência do mundo, entre o indivíduo e a sociedade interpõe-se uma infinidade de mediações. No caso da religião, como se sabe, as instituições - igrejas, templos, sinagogas, terreiros, centros, e as organizações mais abrangentes de que são parte - responsáveis pela sistematização e transmissão das crenças, assim como das práticas litúrgicas, nos rituais e nos cultos, constituem mediações essenciais. Contudo, elas não são as únicas, já que, para além da organização interna do sagrado, na crença e na prática ritual e devocional, outros sistemas de valores e práticas ritualizadas, ligados a outras dimensões profanas da vida social, com suas miríades de símbolos e signos, dialogam com esse sistema interpretativo, passíveis ou não de ratificá-los ou se mostrar com eles compatíveis. É assim que, nas sociedades, se constituem comunidades de sentido mais ou menos abrangentes: é em função delas que a experiência do mundo se torna interpretável e é no seu interior que também se define o lugar da religião."
Segundo Montes, portanto, outras instituições além das religiosas interpõem mediações sociais que modelam a maioria das preferências pessoais e influenciam, inclusive, as escolhas religiosas individuais (ver Sherkat, 1997: 67). Da mesma forma, Finke (1997: 57) afirma que as subculturas locais podem restringir as escolhas e alterar as preferências religiosas dos consumidores religiosos locais. Além disso, deve-se observar que a quantidade de opções religiosas existentes no mercado limita o número de escolhas possíveis, dada a impossibilidade de afiliar-se a um grupo religioso inexistente, ou geograficamente longínquo. Disto resulta que a escolha religiosa não é limitada somente pelo Estado regulador - isto é, que sustenta um monopólio religioso ou que persegue e suprime os demais agentes e organizações religiosos e, com isso, coíbe a liberdade religiosa -, mas também pela maior ou menor diversidade presente na estrutura da oferta do mercado religioso local e pelas demais instituições e ordens de vida que permeiam a existência, os valores e práticas dos indivíduos. Como se vê, são várias as mediações sociais que moldam e limitam as escolhas religiosas individuais e mesmo coletivas. Conseqüentemente, seja em razão das pressões socioculturais que podem vetar a participação individual em determinado grupo religioso, seja devido à falta de liberdade, seja pela indisponibilidade física da religião de seu gosto, nem sempre a filiação religiosa de um indivíduo corresponderá à sua preferência religiosa. Portanto, para atrair e recrutar adeptos ou defender seus interesses institucionais, os grupos religiosos necessariamente têm de enfrentar tais constrangimentos e limitações impostos ora pelo Estado, ora por instituições sociais defensoras e difusoras de valores e princípios incompatíveis com os seus, ora por concorrentes religiosos detentores de mais poder e legitimidade social, ora por mediações socioculturais diversas, estejam elas ancoradas na tradição ou no processo de modernização.
Para que o pentecostalismo possa exercer suas atividades religiosas e evangelísticas com tanta liberdade, como ocorre no Brasil atual, e em condição de plena igualdade com grupos religiosos tradicionais, mais poderosos e com maior legitimidade social, cumpre analisar e elucidar o evento histórico que possibilitou a esse movimento religioso de base popular granjear tamanha liberdade de ação e total igualdade de direitos. Cumpre investigar, portanto, o acontecimento fundante sobre o qual se assentam os alicerces da vertiginosa transformação da esfera religiosa ocorrida no Brasil durante o século XX: a separação da Igreja Católica do Estado brasileiro em 1890.
Foi este o fato histórico, ocorrido logo nos primórdios da primeira República, que permitiu a quebra de jure e de facto do monopólio religioso católico, o ingresso e expansão de novos movimentos religiosos e, com isso, estimulou a formação e o desenvolvimento de um mercado religioso cada vez mais pluralista e concorrencial. Deve-se notar que este fato histórico - não constitua um "fator interno ao campo religioso" - não é interpretado como responsável pela produção de novas "demandas sociais" cujo atendimento seria realizado pelo pentecostalismo e por outros movimentos religiosos, resultando em seu crescimento. Pelo contrário. A ênfase explicativa contida na interpretação da separação Igreja/Estado recai sobre as mudanças verificadas na "oferta religiosa", não na "demanda". A secularização do Estado está na base da radical transformação da esfera religiosa brasileira porque, além de quebrar o monopólio católico e minimizar os privilégios do catolicismo, instituiu, pela primeira vez em nossa história, ampla liberdade religiosa. Liberdade para a formação e atuação dos diferentes grupos religiosos e para os indivíduos fazerem suas escolhas religiosas. Tais mudanças na relação do Estado com o campo religioso e na legislação que define e regulamenta juridicamente essa relação configuram as precondições fundamentais que permitiram e recrudesceram a ampliação do pluralismo religioso e da livre concorrência religiosa. De modo que a separação jurídica da Igreja Católica do Estado, a progressiva secularização do Estado e a liberdade religiosa constituem fenômenos de extrema relevância na configuração atual do campo religioso brasileiro.
Aliança jurídica Igreja-Estado: o monopólio e os limites à liberdade religiosa
Não obstante o regime de padroado, que impôs severas limitações à ação do clero romano, o duradouro vínculo legal entre Estado e Igreja Católica é, de longe, o principal responsável pela hegemonia religiosa de que o catolicismo ainda desfruta no Brasil e, ao mesmo tempo, pela posição minoritária e subalterna dos demais grupos religiosos no campo religioso brasileiro. Na privilegiada condição de religião dos colonizadores portugueses, cujo objetivo, nas palavras de Camões, era a "dilatação da fé e do império", o catolicismo romano foi imposto às populações indígenas e aos escravos africanos[6]. E, com exceção das curtas ocupações francesa (Rio de Janeiro, 1555-1560) e holandesa (regiões Norte e Nordeste, 1630-1654), durante mais de três séculos expandiu-se livremente sem enfrentar qualquer concorrência religiosa. À frente da expansão marítima e no comando do regime do padroado, o Estado português, além de se devotar à defesa de seus interesses mercantis nas terras conquistadas, incumbiu-se da tarefa de promover a evangelização. Tanto que Tomé de Souza, no regimento de 1548, escreve: "...o principal fim por que se manda povoar o Brasil é a redução do gentio à fé católica" (apud Beozzo, 2000: 110). Desde o início da colonização portuguesa da Terra de Santa Cruz, portanto, o Estado regulou com mão de ferro o campo religioso: estabeleceu o catolicismo como religião oficial, concedeu-lhe o monopólio religioso, subvencionou-o, reprimiu as crenças e práticas religiosas de índios e escravos negros e impediu a entrada das religiões concorrentes, sobretudo a protestante, e seu livre exercício no país. José Oscar Beozzo, padre e historiador, deixa bem claras as implicações religiosas e políticas do regime de padroado:
"O resultado prático desta junção entre 'trono e altar', na esfera política; entre "a espada e a cruz', no campo militar; entre 'estado e trabalho missionário' frente às populações consideradas 'pagãs' e a serem obrigatoriamente convertidas e incorporadas ao seio da Igreja Católica, não é apenas o da união entre a igreja e o estado, mas afeta intimamente a definição de cidadania. A pessoa não se torna fiel da igreja sem que, automaticamente, torne-se súdita do rei e do Estado e vice-versa, um súdito do Estado deve necessariamente tornar-se fiel da igreja" (Beozzo, 2000: 109).
Como no regime de padroado régio o dirigente do Estado colonial chefiava a Igreja Católica[7], dificilmente se poderia esperar que ele assumisse uma posição neutra, eqüidistante em relação a outros grupos religiosos. Sua natural inclinação para discriminar negativamente as demais religiões, porém, se vê agravada com a instituição da Inquisição em Portugal no ano de 1536, nos primórdios de nossa colonização. E é com esse espírito monopolizador que o catolicismo ingressa e se estabelece nas terras do pau-brasil. Nesse contexto colonial em que a Igreja Católica se vale até de um implacável tribunal eclesiástico (o Brasil foi agraciado com as Visitações do Santo Ofício) para punir os hereges e impor suas crenças e práticas religiosas, índios, negros e acatólicos não tinham outra saída senão aceitar a catequese jesuítica ou se submeter à fé católica pela via da coerção judicial e militar. Na condição de única religião legalmente permitida e subvencionada pelo Estado, o catolicismo era praticamente compulsório. Na medida em que não existia alternativa legal a ele, não havia liberdade religiosa nem liberdade de culto. Essa situação de monopólio religioso e de total ausência de liberdade religiosa para os brasileiros perdurou incólume até que a Constituição de 1824 fosse outorgada no princípio do Império.
Alguns anos antes, porém, a vinda da família real portuguesa provocara uma primeira mudança jurídica na relação do Estado com a esfera religiosa. Para a poderosa Inglaterra não bastava que seus aliados portugueses lhe escancarassem os portos brasileiros e rompessem seu antigo monopólio comercial com a colônia: ela também fez com que Portugal assegurasse a liberdade religiosa dos trabalhadores ingleses no Brasil. Assim, em 1810, dois anos depois de o príncipe regente D. João decretar a abertura dos portos, foi assinado o tratado de comércio entre Portugal e Inglaterra, que consolidava juridicamente o domínio inglês sobre o Estado português no Brasil e no qual constava artigo prevendo a liberdade de culto para os estrangeiros residentes na colônia.
Embora a Constituição de 1824, outorgada pelo imperador D. Pedro I, estabelecesse a Igreja Católica como "religião do Império" e, com isso, continuasse a lhe garantir inúmeras prerrogativas legais, ela estendeu o direito à liberdade religiosa às "outras religiões", restringindo contudo sua liberdade de culto ao âmbito do espaço doméstico. Com essa restrição, a nova Carta Constitucional não permitia às outras religiões edificar templos e neles se reunir para cultuar suas divindades. Assim, conquanto não estivesse proibido pela Constituição, o culto público das outras religiões padecia de uma flagrante inferioridade jurídica perante o culto católico, sendo juridicamente obstaculizado em sua competição com o catolicismo. Na verdade, nem se imaginava que essa competição pudesse vir a aflorar, visto que a interpretação corrente sobre a liberdade religiosa prevista pela Constituição era extremamente restrita, abrangendo somente os imigrantes estrangeiros e seus cultos celebrados em língua estrangeira. A Constituição de 1824, no Artigo 179, parágrafo 5º, também assegurava: "ninguém pode ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeite a do Estado, e não ofenda a moral pública" (Scampini, 1978: 22). Com isso, além de só poder celebrar cultos em residências, todo grupo religioso acatólico, no desempenho mesmo de suas funções religiosas, sobretudo no que diz respeito a seu proselitismo, corria o risco de perseguição por desrespeitar a religião do Estado e ofender a moral pública. A liberdade religiosa estabelecida pela Constituição de 1824, como se vê, era das mais limitadas. Em vez de uma efetiva liberdade de culto e religião, constituía uma espécie de extensão da liberdade de consciência religiosa.
Para além desses limites à liberdade religiosa, os membros das outras religiões estavam expostos a diversos outros problemas e constrangimentos derivados do vínculo constitucional entre Igreja Católica e Estado. Dada a debilidade dos recursos humanos e técnicos da burocracia estatal, as autoridades eclesiásticas católicas não só dominavam a educação, a saúde pública e as obras assistenciais, como detinham total exclusividade na concessão de registros de nascimento, casamento, óbito (Romano, 1979: 82). De modo que o registro civil era o batismo católico. O casamento legal era o oficiado pelos padres. E os mortos tradicionalmente enterrados nos templos católicos, nos quais se impedia o sepultamento de acatólicos. Criados em 1828, os cemitérios municipais só passaram a ser utilizados em 1850, mas, como eram benzidos e administrados pelos sacerdotes católicos, permaneciam rejeitando cadáver de herege (Ribeiro, 1973: 108). Da mesma forma, sem a legalidade provida pelos rituais católicos, os casamentos protestantes e os filhos desses religiosos continuavam ilegítimos (Willems, 1967: 59). Diante da crescente necessidade de substituição do escravo pelo imigrante, decorrente da proibição do tráfico negreiro, em 1850, e da lei do ventre livre, em 1871, e da forte pressão exercida pelos políticos liberais e pelos latifundiários, o Estado, a partir da segunda metade do século XIX, passou a fazer mudanças pontuais na legislação, visando à desobstrução desses obstáculos (radicados nos privilégios da religião oficial) à imigração de trabalhadores europeus, norte-americanos e asiáticos acatólicos.
Assim, em 1861, votou-se a Lei 1.144, que permitiu os casamentos mistos[8], embora sob domínio exclusivo da Igreja Católica, e estendeu às outras religiões o direito de celebrar núpcias com efeitos legais. Por sua vez, o Decreto 3.069, de 1863, determinou que o registro de óbitos de acatólicos seria realizado pelo escrivão do juiz de paz e que os cemitérios públicos teriam um "lugar separado" para seu sepultamento (Ribeiro, 1973: 109, 114). Apesar dessa lei, em 1890 ainda era negada sepultura aos acatólicos em muitas localidades do Brasil (Vieira, 1980: 270-271). Na prática, os protestantes, antes mesmo da vigência dessas leis, depois de inúmeros contratempos e constrangimentos, já haviam tomado a decisão de construir seus próprios cemitérios e de se casarem em cerimônias celebradas por pastores ou leigos, nas quais firmavam contratos nupciais sem validade legal (Ribeiro, 1973: 108, 112). Antes do Decreto 3.069, porém, onde não havia cemitério protestante nas vizinhanças, os mortos filiados ao protestantismo eram sepultados "como cães na mata" (Vieira, 1980: 254).
Por mais precária e limitada que fosse a liberdade religiosa estabelecida na Constituição de 1824, não há como negar que ela possibilitou o ingresso e a difusão de novos grupos religiosos no Brasil - leia-se protestantes - e, com isso, provocou as primeiras fissuras no secular monopólio católico.
Na primeira metade do século XIX, o crescimento do protestantismo, que desde então constituía o principal concorrente religioso do catolicismo, limitou-se praticamente à imigração de anglicanos ingleses e de luteranos suíços e alemães. Os primeiros missionários protestantes começaram a se estabelecer no país somente a partir de meados dos anos 1850. Daí em diante, missionários congregacionais, metodistas, presbiterianos, batistas e episcopais conseguiram, por meio da evangelização e conversão de brasileiros, implantar os primeiros templos protestantes[9]. Enquanto os imigrantes alemães fundam a Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil, em 1824, em cidades do Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, as igrejas do protestantismo de missão foram implantadas majoritariamente por missionários norte-americanos sulistas, na segunda metade do século XIX. Em 1855, o escocês Robert Reid Kelley funda, no Rio de Janeiro, a Igreja Congregacional do Brasil. Em 1862, o norte-americano Ashbel Green Simonton, depois de três anos de proselitismo, funda a primeira Igreja Presbiteriana do Brasil, no Rio de Janeiro. Quatro missionários norte-americanos implantam a Igreja Metodista em 1886, no Rio de Janeiro. William Bagby e Zacarias Taylor fundam a Igreja Batista em 1882, na Bahia. Em 1898, dois episcopais, também oriundos dos Estados Unidos, fundam a Igreja Episcopal, no Rio Grande do Sul.
Não obstante a desigualdade jurídica que limitava sua liberdade de ação religiosa, o fato é que na segunda metade do século XIX os missionários protestantes - com exceção da pronunciada resistência que lhe interpuseram as crescentes investidas ultramontanas do clero católico - não se depararam com obstáculos intransponíveis para desenvolver sua missão de conquistar prosélitos[10]. Nesse propósito evangelizador, eles foram favorecidos: pela pressão exercida por Inglaterra e Estados Unidos para que o governo brasileiro garantisse liberdade religiosa aos estrangeiros; pela imperiosa necessidade da grande lavoura de substituir sua mão-de-obra escrava por imigrantes, que não viriam ao país se fossem proibidos de praticar sua religião; pela proteção que diversos políticos liberais lhes ofereceram contra a hostilidade do clero ultramontano; pela nova e mais abrangente interpretação (datada de 1861) do artigo constitucional que regulava a liberdade religiosa. Essas difusas pressões sobre o Estado brasileiro, portanto, forçaram-no a fazer mudanças na legislação e a proteger os protestantes. Embora tais medidas não configurassem claro prenúncio da secularização do Estado, é inegável que elas beneficiaram os protestantes em detrimento dos interesses do clero católico. Deve-se observar, além disso, que os protestantes se favoreceram igualmente do fato de a Igreja Católica encontrar-se institucionalmente enfraquecida pela política regalista do Estado imperial, com um reduzido número de sacerdotes e enfrentando a encarniçada oposição de liberais, maçons e - a partir da última terça parte do século XIX - positivistas e republicanos.
Se, na segunda metade do século XVIII, a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal e a conseqüente ruptura das relações diplomáticas com o Vaticano (1759-1808) provocaram devastadora crise no catolicismo brasileiro, durante todo o século XIX o regalismo imperial não iria se revelar menos prejudicial aos interesses institucionais da Igreja Católica. O Estado regalista manteve-a sob rédea curta e se empenhou em subjugá-la e enfraquecê-la mais e mais. Para tanto, a Constituição de 1824 estabeleceu a soberania do novo Estado brasileiro na administração eclesiástica, inviabilizando legalmente qualquer ingerência do Vaticano e, em conformidade com as diretrizes da política regalista, atribuiu ao imperador a responsabilidade pela nomeação dos bispos e pelo provimento dos "benefícios eclesiásticos". Como forma de deter total controle sobre a Igreja Católica, o novo Estado imperial, ainda na década de 1820, adotou diversas medidas legais[11] para eliminar as ordens monásticas, que eram aliadas do ultramontanismo e, por conseguinte, defensoras, em flagrante oposição ao regalismo, da supremacia papal sobre a igreja (Ribeiro, 1973: 42). O governo monárquico não poupou esforços para minar as bases do clero ultramontano: expulsou frades, extinguiu congregações, proibiu a entrada de monges estrangeiros e - com a Carta Circular de 19 de maio de 1855 - proibiu a aceitação de noviços nas ordens religiosas (Scampini, 1978: 30-31). Tratava-se, pois, de "eliminar os membros independentes do clero", sustentáculos da política ultramontana, compostos em sua maioria pelo clero regular (Romano, 1979: 92).
Já o clero diocesano mostrou-se mais fácil de ser sujeitado aos fins do Estado, uma vez que, além de mal visto, desprestigiado, era pobre e dependia economicamente do governo (Romano, 1979: 93). Soma-se à sua pobreza e dependência financeira do Estado o fato de que, na primeira metade do século XIX, o clero diocesano brasileiro era majoritariamente liberal e parecia acomodado ao estrito controle imperial da administração eclesiástica estabelecido pela política regalista, que, praticamente sem ser antagonizada pela Santa Sé, se mostrava decidida a transformar a Igreja Católica em serva do poder secular ou reduzi-la a mais um departamento de Estado (Haring, 1967: 155). Apesar de o regime monárquico debilitar seriamente a Igreja Católica, ao privá-la de autonomia, desnecessário frisar que o regalismo jamais poderia obter pleno êxito na contenção dos privilégios da filial brasileira da Santa Sé, uma vez que ele pressupunha a sua manutenção como religião oficial, o que, acrescido dos limites impostos pela Constituição de 1824 à liberdade de culto das outras religiões, constituía justamente a principal das prerrogativas legais de que o catolicismo gozava em detrimento das demais organizações religiosas. Embora a nova Constituição pusesse fim legal a seu monopólio religioso, seu privilégio jurídico, na prática, deixava-o quase inalterado.
Neste ponto, cabe fazer um parêntese para salientar que, se a instituição católica se achava tolhida e enfraquecida pelo Estado, o catolicismo festivo e mágico permeava e dominava a religiosidade e a cultura popular. As festas católicas constavam entre as principais responsáveis pela popularidade do catolicismo, sobretudo entre os negros libertos e escravos. Lilian Schwarcz (1999: 292-294) mostra a existência, no século XIX, de inúmeras irmandades formadas por leigos e de um extenso calendário de festas religiosas na capital do Império: procissões, festa do Divino, dia de Reis, cavalhadas, congadas. Da mesma forma, Thomas Ewbank (1976: 18), protestante norte-americano que visitou o Rio de Janeiro em 1846, afirma em seu relato de viagem: "No Brasil, por toda a parte encontra-se a religião ou o que receba tal nome. Nada se pode fazer, nem observar sem deparar-se com ela de uma forma ou de outra. É o mais importante detalhe da vida pública e privada que aí temos. As festas e as procissões constituem os principais esportes e passatempo do povo, e neles os próprios santos saem de seus santuários, juntamente com os padres e a multidão, [e] participam dos folguedos gerais. Não levar tais fatos em consideração seria omitir os atos mais populares e esquecer os protagonistas favoritos do drama nacional". Contudo, visto que nas festas católicas era difícil identificar "onde começava o culto cristão e onde terminava a festa popular" (Schwarcz, 1999: 249), sobravam críticas, em especial dos viajantes estrangeiros, à falta de decoro, à pouca solenidade e à religiosidade do povo que impregnava o catolicismo e suas cerimônias religiosas de vícios, sensualidade, bebida, alegria, música e divertimentos profanos (Ibid.: 247-294). O próprio historiador Sérgio Buarque de Holanda, de certo modo, repercutiria, em Raízes do Brasil, no célebre capítulo sobre o homem cordial, as impressões desses viajantes, ao afirmar que o catolicismo brasileiro - "sem obrigações e sem rigor, intimista e familiar" e avesso ao ritualismo - formava uma "religiosidade de superfície", "quase carnal", atenta ao "colorido e à pompa exterior", cujo culto "só apelava para os sentimentos e os sentidos e quase nunca para a razão e a vontade" (Holanda, 1999: 150). Daí, a seu ver, a incapacidade desse catolicismo, ao contrário das seitas anglo-saxãs, de "produzir qualquer moral social poderosa" (Ibid.: 150). Na sua opinião, o Brasil parecia fadado a carecer de "formas mais rigoristas de culto". Nesse ponto da argumentação, Sérgio Buarque cita Ewbank, que, convicto de que o clima tropical não só "não favorece a severidade das seitas nórdicas" como as degenera, pontifica que "o austero metodismo ou o puritanismo jamais florescerão nos trópicos" (apud Holanda, 1999: 151).
Apesar do regalismo imperial, a partir da segunda metade do século XIX, a Igreja Católica e o clero brasileiros sofreriam uma grande reviravolta: ambos seriam amplamente influenciados pelo movimento católico ultramontano, que preconizava a dilatação da autoridade papal sobre os assuntos da Igreja Católica. De âmbito mundial, esse movimento tinha como principal fonte de inspiração e orientação ideológica o documento Syllabus, publicado em 1864 por ordem do papa Pio IX. Segundo o historiador Clarence Haring (1967: 156), o Syllabus, anexo da encíclica Quanta Cura, reivindicava para a Igreja o controle de toda a cultura, da ciência e de todo o sistema educacional e rejeitava a liberdade de consciência e de culto. Centrado nesse ideário conservador numa Europa em rápido processo de industrialização e sob o impacto político da Revolução Francesa, os defensores do ultramontanismo, na contracorrente, se achavam cercados por diversos "perigos". Para tanto, combatiam "o galicanismo, o jansenismo, todos os tipos de liberalismo, o protestantismo, a maçonaria, o deísmo, o racionalismo, o socialismo e certas medidas liberais propostas pelo estado civil, tais como a liberdade de religião, o casamento civil, a liberdade de imprensa e outras mais" (Vieira, 1980: 33). Além de demandar completa independência da Igreja do controle estatal, o ultramontanismo de Pio IX apregoava o dever do Estado de executar os desejos e instruções do papado (Haring, 1967: 156).
Cada vez mais insuflada pela agressiva política ultramontana, reforçada em 1870 com a proclamação da infalibilidade papal pelo Concílio Vaticano I, a Igreja Católica brasileira acabou provocando o recrudescimento das investidas governamentais (Romano, 1979: 94). Quanto mais o ultramontanismo se fortalecia e, com isso, quanto mais a ala tridentina da Igreja reforçava sua oposição à política liberal e regalista da monarquia, mais severos eram os ataques que ela suscitava contra si por parte da burocracia estatal e das elites políticas e intelectuais, em grande parte secularizadas e anticlericais. Incitados pelos ideais políticos e humanistas em voga na Europa e nos Estados Unidos, maçons, liberais e republicanos consideravam a Igreja Católica uma instituição conservadora, reacionária, passadista. Dado que, de sua perspectiva, a religião oficial refreava o progresso e mantinha as massas supersticiosas e ignorantes (Ibid.: 115), eles não poupavam munição nas críticas e denúncias que desferiam contra o catolicismo. Dedicavam-se a fazer acirrada oposição contra sua riqueza, suas regalias, seu obscurantismo e, entre outras medidas para minimizar o poder e a influência da Igreja na esfera pública, propugnavam a sua imediata separação do Estado.
Embora Igreja e monarquia vivessem às turras, em razão sobretudo do avanço do ultramontanismo, cujo principal objetivo contrariava frontalmente a política regalista do Estado, a união legal entre esses poderes reforçava a oposição liberal e republicana contra ambas, na medida em que o ideário de liberais e republicanos advogava a completa laicidade da esfera pública e a redução da igreja à particularidade das consciências individuais (Romano, 1979: 102-117). Disto resulta que, no último terço do século XIX, apesar do recrudescimento de sua rivalidade, tanto o regime monárquico como a Igreja Católica permaneciam sob fogo cerrado da oposição maçom, liberal e republicana. A aguda tensão entre os poderes religioso e temporal culminou, na primeira metade da década de 1870, com a Questão Religiosa[12], o mais grave confronto ocorrido entre Igreja e Estado em toda a história brasileira. De um lado, a intransigência ultramontana dos bispos D. Vital Maria Gonçalves de Oliveira, de Pernambuco, e D. Antônio de Macedo Costa, do Pará, e de seus aliados[13], empenhados na restauração da disciplina eclesiástica e na reorganização das irmandades religiosas, a fim de livrá-las da insidiosa infiltração maçônica, objetivo coerente e em consonância com a encíclica Quanta Cura, do papa Pio IX, que se opunha radicalmente à maçonaria. De outro lado, os maçons[14], o anticlericalismo dos liberais, os jansenistas e o debilitado regime monárquico - que, por não ter placitado[15] as decisões da encíclica papal em relação às ordens maçônicas e em razão de sua própria fraqueza política - necessitava dar mostras de seu poder, fazendo triunfar suas prerrogativas jurídica e administrativa sobre a religião oficial. Para o governo imperial, tratava-se ao mesmo tempo de impor sua hegemonia sobre a Igreja - que, com as decisões de D. Vital, desafiava a doutrina do placet régio - e evitar que ela, ao se pôr cada vez mais sob a tutela de outro poder estrangeiro, o Vaticano, rompesse sua submissão à política regalista[16]. Dada a intransigência dos bispos e dos dirigentes imperiais - os primeiros baseados em princípios religiosos e os últimos em princípios legais, políticos e históricos seculares, bem como na defesa da governabilidade do regime monarquista, já então em franca decadência -, o conflito tornou-se inevitável.
Na busca de sua autonomia do Estado regalista, os mais ardorosos representantes do ultramontanismo ficaram sob violento ataque, sobretudo da parte estatal. Além do Império, os maçons, a imprensa, liberais, republicanos e anticlerais de toda sorte lançaram forte campanha contra a Igreja Católica. Esta se achava dividida: os bispos mencionados e seus aliados ultramontanos opunham-se ao que restava do clero liberal e jansenista e, em nível local, às irmandades e aos padres que desobedeceram à ordem expressa de excomungar os membros que pertenciam simultaneamente à Igreja e às lojas maçônicas. A Coroa - para a qual apelaram as irmandades cujas funções foram suspensas pelas dioceses dirigidas por D. Vital e D. Antônio - recorreu ao Vaticano, só que para induzir o papado a aconselhar os bispos ultramontanos a se conformarem à Constituição e às leis brasileiras (Haring, 1967: 159). Frustrados os esforços legais e diplomáticos do governo imperial para impor sua soberana vontade, contrária à discriminação dos maçons pela Igreja Católica, ambos os bispos, depois de acusados de violar a Constituição e o Código Criminal, receberam em 1874 a sentença de prisão. Apesar da intransigente oposição de D. Pedro II, em setembro de 1875, os bispos foram anistiados e suas igrejas desinterditadas, por meio da intervenção do ministro Duque de Caxias, como forma de pôr fim às revoltas populares contra o Império (Ibid.: 162). O grave incidente do aprisionamento dos bispos, que resultou na criação de uma dupla de mártires, e a conflituosa relação da hierarquia católica com os dirigentes da política regalista fortaleceram ainda mais o ultramontanismo, que, no princípio da década de 1870, havia suplantado o jansenismo e o catolicismo liberal e dominava a maioria do clero brasileiro (Vieira, 1980: 38). De modo que, da irrupção da Questão Religiosa em diante, a romanização da Igreja Católica, em detrimento do regalismo, só fez avançar. Este processo de autonomia estatal da Igreja culminou na sua separação jurídica do Estado, em 1890.
À margem dos conflitos que marcaram o relacionamento entre Igreja e Império, os protestantes contaram com a proteção e um certo apoio do Estado. Os imigrantes protestantes, assevera Boanerges Ribeiro (1973: 47), "encontraram um governo tolerante e regalista, que lhes assegurou a liberdade de culto, subvencionou seus pastores, evitou muitas vezes a desagregação da fé evangélica, providenciando pastores para comunidades protestantes". Nesse sentido, observe-se que a própria vinda de imigrantes alemães para o Rio de Janeiro, em 1823, fora promovida pelo imperador D. Pedro I, que se prontificou ainda a contratar e prover o sustento do pastor da Igreja Evangélica de Nova Friburgo, a primeira formada por esses estrangeiros no país (Ibid.: 79)[17]. Embora os contratos de colonização propostos pelo governo imperial nos países de maioria protestante geralmente contivessem cláusula que assegurava o sustento de um pastor (Ibid.: 86), na prática, isso não ocorria. Basta observar que os imigrantes alemães, instalados em áreas rurais nos estados da região Sul, ficaram durante vários anos sem qualquer assistência religiosa provida pelo Estado e mesmo por parte das organizações luteranas alemãs (Camargo, 1973: 133).
A partir de meados do século XIX, a tolerância religiosa do clero católico em relação aos protestantes se vê diminuída. Pois daí em diante, além dos imigrantes protestantes, que não se dedicavam à missão de converter os brasileiros, começam a ingressar no país os primeiros missionários das sociedades bíblicas britânica e norte-americana e das juntas missionárias, cujo propósito era justamente a evangelização dos católicos. Em razão disso, eles deparam com a crescente oposição da corrente ultramontana do clero católico, escolada na firme disposição tridentina de defender o catolicismo da heresia protestante. Em 1845, o reverendo metodista Daniel Parish Kidder - que viajou pelo Brasil como agente da Sociedade Bíblica Americana, exercendo a função de vendedor de bíblias - declarou estar convicto de que em "nenhum outro país católico do mundo prevalece maior grau de tolerância ou maior liberalidade de sentimentos para com os protestantes". A maioria de seus pares protestantes, porém, não seria agraciada com a mesma sorte em sua missão religiosa no Brasil (Willems, 1967: 59). Pelo contrário, enfrentaria forte oposição católica, incluindo agressões físicas.
Para a sorte dos protestantes, porém, o Estado imperial mostrou-se intransigente na defesa da liberdade de culto e religião prevista na Constituição, inibindo em grande parte os atos mais hostis dos católicos. De modo que, "se a polícia local algumas vezes deu mão forte aos elementos clericais" em sua sanha contra os evangélicos (Léonard, 1963: 114) e se eram freqüentes as tentativas de intimidação dos pregadores protestantes em nível local, as autoridades superiores do Império, incluindo o próprio imperador D. Pedro II, continuaram a protegê-los de atos mais agressivos da população e do clero católico, contendo a hostilidade nos limites da polêmica, das ofensas e calúnias e, salvo poucas exceções, reprimindo energicamente os atos e as tentativas de agressão física (Ribeiro, 1973: 48, 120).
A despeito da categórica afirmação de Boanerges Ribeiro (Id.: 117) de que "a liberdade de propaganda religiosa acatólica foi testada e confirmada centenas de vezes, na fase de introdução do protestantismo a brasileiros", o fato é que essa liberdade também foi contestada de diversas formas e por inúmeras vezes pelo clero ultramontano. Enquanto permaneceram dirigidos em língua estrangeira e estiveram circunscritos aos imigrantes, situação que perdurou até quase o final da década de 1850, os cultos protestantes praticamente não foram molestados. Contudo, quando os missionários protestantes passaram, ainda que discreta e temerosamente, a pregar em português para os brasileiros e a convertê-los, a reação ultramontana se fez sentir de imediato. Primeiro, apelou-se para a Constituição, uma vez que, até o início dos anos 1860, a interpretação corrente da Carta Constitucional do Império considerava legal somente a atividade religiosa acatólica ministrada em língua estrangeira e para estrangeiros, realizada no lar ou em casas de oração sem forma exterior de templo (Vieira, 1980: 117, 123). Como complemento dessa interpretação da Constituição de 1824, vigorava "a idéia de que um brasileiro não podia mudar de religião", pensamento "muito comum, inclusive entre legisladores de renome, como o senador Cândido de Almeida" (Ibid.: 218). A inversão dessa interpretação ultramontana da Constituição só se firmou em 1860. Ela se deu pela formulação do parecer legal de três dos mais renomados jurisconsultos brasileiros da época (entre eles o pai de Joaquim Nabuco), decorrente da queixa instigada pelo internúncio Falcinelli e apresentada, em junho de 1859, pelo presidente da Província do Rio de Janeiro, Barão de Vila Franca, contra o missionário metodista escocês Robert Kalley (Vieira, 1980: 120), que começara a pregar na língua portuguesa em 1858. A acusação contra Kalley, além de prender-se à restrita interpretação vigente da Constituição, decorria igualmente do escândalo em torno da conversão de duas senhoras da nobreza[18] e da acentuada aversão aos brasileiros que, na época, se convertiam ao protestantismo (Léonard, 1963: 51). Apesar do parecer legal favorável aos cultos protestantes, foi preciso a intervenção pessoal do imperador[19] - que na ocasião visitou Kalley e convidou-o a proferir uma conferência sobre a Palestina para a família real e para a Corte - a fim de fazer valer, ao menos nas altas esferas do poder imperial, a nova interpretação do artigo constitucional referente à liberdade religiosa (Vieira, 1980: 121).
A disposição e a intervenção de D. Pedro II, no entanto, não puseram fim à controvérsia entre liberais, protestantes e o clero ultramontano. Da década de 1860 até o fim do Império, Kalley e outros missionários evangélicos continuaram a sofrer perseguições por parte dos católicos. Inconformados com a recusa do governo imperial de proibir os cultos protestantes proferidos na língua portuguesa, o clero e os jornais ultramontanos propuseram às autoridades o confisco e a destruição das bíblias protestantes, exigiram delas providências para que se impedisse a propaganda protestante, opuseram-se à iniciativa liberal e governamental de incentivo à imigração protestante e, numa atitude mais radical, passaram a defender o direito do povo de fazer justiça com as próprias mãos, punindo os hereges protestantes, cujas crenças e práticas religiosas, a seu ver, ofendiam a Igreja Católica (Vieira, 1980: 127, 146, 219-223).
A despeito dos limites legais à sua ação e da tenaz oposição católica, em 1890, ano seguinte à substituição do regime monárquico pelo republicano, o Censo Demográfico apontava a existência de 142.235 protestantes no país, ou 1% da população (Rolim, 1985: 20)[20]. Esta cifra relativamente alta, decerto, refletia mais a larga presença em solo nacional de imigrantes protestantes - a esmagadora maioria deles composta de alemães luteranos - do que uma ampla e bem-sucedida campanha de evangelização de brasileiros. Basta observar que, segundo Read (1967: 55, 187) em 1886 a Igreja Metodista possuía apenas 219 membros comungantes; em 1890, a Igreja Presbiteriana contava com 3.199 membros comungantes; o número de fiéis da Igreja Congregacional era ainda menor; e a Batista fora implantada no Brasil tão-somente em 1882. Disto resulta que, no ano da separação Igreja-Estado, o número de brasileiros convertidos ao protestantismo não ultrapassa cinco mil fiéis, o que representava cerca de 3,5% do total de protestantes presentes no país. Mesmo com a sanção da liberdade religiosa pelo Governo Provisório da República, que, sem dúvida, favoreceu a ação da corrente cristã reformada, a conversão protestante em massa só teria início mais de meio século depois, período a partir do qual o movimento evangélico já estaria sob o vigoroso impacto da avalanche pentecostal.
Separação jurídica Igreja-Estado e liberdade religiosa
"Desde 1876 que eu escrevia e pregava contra o consórcio da Igreja com o Estado; mas nunca o fiz em nome da irreligião, sempre em nome da liberdade. Ora, a liberdade e a religião são sócias, não inimigas. Não há religião sem liberdade." (Rui Barbosa)
Sancionado pelo Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, o Decreto n. 119A de 7 de janeiro de 1890, de autoria de Rui Barbosa, separou a Igreja Católica do Estado, extinguiu o padroado, proibiu os órgãos e autoridades públicos de expedir leis, regulamentos ou atos administrativos que estabelecessem religião ou a vedassem e instituiu plena liberdade de culto e religião para os indivíduos e todas as confissões, igrejas e agremiações religiosas (Scampini, 1978: 84). Inscritas na Constituição de 1891, a separação da Igreja Católica do Estado e a instituição da plena liberdade religiosa e de culto para todos os indivíduos e credos religiosos propiciariam, no decorrer do século XX, a ascensão de um mercado aberto no campo religioso brasileiro. Isto é, a laicização do Estado brasileiro possibilitou a dilatação do pluralismo religioso, ou o ingresso, a criação e a expansão de novas religiões, e, com isso, deu ensejo à efetivação da livre concorrência entre os diferentes agentes e instituições religiosos. Ao resultar em liberdade, diversificação e competição religiosas, a separação entre Igreja Católica e Estado permitiu o ingresso e a formação de novos grupos religiosos, concedeu plena liberdade à maioria das associações religiosas e, com isso, não só permitiu a constituição de um verdadeiro mercado religioso em solo nacional como abriu passagem para que, no limite, a hegemonia do catolicismo viesse futuramente a ser posta em xeque pela eficiência do proselitismo dos concorrentes.
Influenciada pelo liberalismo da Constituição norte-americana, a Constituição brasileira de 1891 manteve as resoluções do decreto 119A, que tornou laico o recém-criado Estado republicano, desvinculando-o legalmente da Igreja Católica. Além disso, a despeito da pronunciada oposição clerical, regulamentou essa separação em várias esferas da vida social: instituiu o casamento civil, estabeleceu o ensino leigo nas escolas públicas, secularizou os cemitérios, pôs fim à subvenção estatal a todo e qualquer culto ou igreja e concedeu plenos direitos civis e políticos aos cidadãos de outros credos religiosos (Scampini, 1978).
Em face do novo quadro jurídico republicano, o Estado brasileiro se viu legalmente forçado a retirar-se de sua tradicional posição de administrador do grupo religioso dominante e de defensor de seus interesses. Mas os vínculos entre Estado e Igreja não se romperam completa e repentinamente. Apesar de sua laicização e de sua separação jurídica da Igreja Católica, é óbvio que o Estado republicano não passou imediatamente a tratar de forma isonômica os diferentes grupos religiosos. Como frisa Giumbelli (2000: 155), "em nosso regime de 'separação' pululavam os vínculos, compromissos, contatos, cumplicidades entre autoridades e aparatos estatais e representantes e instituições católicas". Na prática, afirma Beozzo (2000: 120), "muito da legislação republicana em matéria religiosa permaneceu letra morta, por conta da anterior tradição e pela ausência da administração do Estado nos vastos interiores do país. O único documento de identidade para muitos continuou sendo apenas a certidão de batismo (...). Em muitas cidades do interior nas zonas de antiga colonização, os cemitérios não foram municipalizados e continuaram sob a administração de irmandades religiosas."
Além do fato de a Igreja Católica não ter perdido efetivamente certas prerrogativas, o Estado brasileiro continuou a discriminar negativamente as religiões afro-brasileiras. Como escreve Beozzo (2000: 120-121) a respeito da separação republicana: "No campo da liberdade de cultos, esta só se tornou efetiva para católicos, protestantes e judeus. Persistiu a discriminação em relação aos cultos afro-brasileiros, cujas casas eram invadidas e destruídas pela polícia, sob pretexto de perturbação da ordem pública, de exercício ilegal da medicina, prática de curandeirismo ou mesmo qualquer motivo aparente, a não ser a tradicional discriminação racial e religiosa. Para gozar de uma precária liberdade, essas casas de culto passaram a tirar alvará de funcionamento junto à polícia, prática impensável em relação a igrejas ou capelas católicas, a templos protestantes ou sinagogas judaicas." Para exemplificar tal intervenção estatal discriminatória, Maggie (1986) mostra as vísceras da repressão institucionalizada ao "baixo espiritismo" pela Delegacia de Costumes no Rio de Janeiro, até os anos 1940, período em que era comum o enquadramento policial e jurídico dos grupos afro-brasileiros por práticas de curandeirismo e charlatanismo. Embora, no estado da Bahia, só muito tardiamente, em 15 de janeiro de 1976, mediante decreto sancionado pelo governador Roberto Santos, o candomblé deixasse de ter de solicitar e pagar licença de funcionamento na Delegacia de Jogos e Costumes (Santos, 2000: 24-25), o fato é que a partir do Estado Novo ele e a umbanda passaram a gozar de crescente liberdade. Mas como esse passado recente de perseguição e discriminação marcava fortemente a memória e a trajetória religiosa de muitos de seus adeptos, não custava nada reforçar juridicamente esta nova situação.
A Constituição de 1988, cem anos depois da abolição da escravatura, inseriria o inciso VI ao artigo 5° - que prescreve: "É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida na forma da lei a proteção aos locais de culto e suas liturgias" - a fim de coibir eventual discriminação aos cultos afro-brasileiros e equiparar suas liturgias e locais de culto aos das demais religiões (Beozzo, 2000: 123).
Escusado frisar que a Igreja Católica não desejava sua separação do Estado, uma vez que não estava disposta a perder as prerrogativas encerradas no vínculo jurídico com a esfera estatal. Com o mesmo ímpeto com o qual pleiteavam a autonomia da Igreja, os bispos católicos repeliam veementemente sua separação do Estado. "Independência, sim; separação, não", proclamavam. "Repelimos", afirmava a Carta Pastoral Coletiva redigida em maio de 1890, "a separação da Igreja do Estado; exigimos a união entre os dois poderes" (Scampini, 1978: 87). A "união" reivindicada pelos bispos católicos, naturalmente, rejeitava o "ferrenho regalismo monárquico ou republicano" (Ibid.: 87). Portanto, ao mesmo tempo que almejavam manter os velhos privilégios encerrados em sua aliança com o Estado, pleiteavam total liberdade da tutela estatal. A Pastoral, com a qual, entre outras reações, os bispos procuravam reverter o avanço liberal na redação da nova Carta Constitucional, também enfatizava a idéia de que a soberania política derivava da soberania divina e que o Estado encontra na Igreja "o mais extremo propugnador de sua autoridade e de seus direitos nas coisas temporais": "Todo poder vem de Deus e quem resiste ao poder, resiste às ordens de Deus: são as verdades ensinadas pela Igreja" (Ibid.: 86). Esta, decerto, constituía uma forma de o clero justificar a união Igreja-Estado: como o poder estatal sobre as "coisas temporais" provém de Deus, cujo representante terreno é a Igreja Católica, nada mais natural do que Igreja e Estado permanecerem aliados, com a primeira cuidando zelosa e autonomamente das coisas espirituais e, em nome de Deus, legitimando a ação do Estado, enquanto este se dedica a governar o plano temporal conforme as "ordens de Deus".
D. Almeida Lustosa comenta que, na Carta Pastoral, D. Macedo lamentava "profundamente que o decreto [119A] colocava a Igreja Católica no mesmo nível das seitas, das falsas religiões, concedendo a todos igual liberdade" (Ibid.: 87). Observa-se que, mesmo separada do Estado, a alta hierarquia católica não cessou de se achar no direito de manter suas vantagens legais e a pregressa situação de quase monopólio; reação atávica de toda instituição religiosa hegemônica de "tipo igreja", sobretudo das que repentinamente se vêem despojadas dos privilégios intrínsecos ao monopólio religioso e à sua aliança jurídica com o Estado (Bourdieu, 1987: 58). Disto resulta que a intransigência ultramontana não regrediu com o advento do regime republicano, nem a Igreja Católica parou de desancar as religiões concorrentes ou de tentar obstar a expansão das novas empresas de salvação no país. Tanto que a perseguição movida contra os protestantes no ano posterior à proclamação da República compeliu-os a criar, em 1890, a Liga Evangélica, associação que visava defender seus direitos civis, que estavam sendo contestados pelo clero católico (Vieira, 1980: 376).
Se, com a laicização do Estado, a Igreja Católica foi repentinamente destituída da maioria de seus privilégios legais, convém observar que, como recompensa, ela logrou plena liberdade da tutela estatal. Para o clero, cujos agentes, em 1888, encontravam-se, segundo D. Macedo Costa, "enfraquecidos, desamparados e ainda por cima presos nas algemas do regalismo" (Scampini, 1978: 81), a liberdade foi louvada como extremamente bem-vinda. Para a Igreja Católica, cuja liderança "via no poder temporal [do Império] a contrafacção insuportável de um protetor que tiranizava o protegido" (Ibid.: 68), o fim da política regalista significou total liberdade para agir conforme os meios e princípios providos e ditados pelo Vaticano, sem a mediação, o controle, a sujeição e a censura impostos anteriormente pelo Estado. Tanto que a Carta Pastoral de 1890, embora repelisse a separação da Igreja do Estado, reconhecia que o decreto 119A assegurava à Igreja Católica "certa soma de liberdades como ela nunca logrou no tempo da monarquia" (Ibid.: 87). Como proferiu D. Fernando de Aquino Corrêa, arcebispo de Cuiabá, no Primeiro Concílio Plenário Brasileiro, em 1939: "Sobreveio a República, e renovou a face da Terra. Muitos males, por certo, ela trouxe à Igreja de Cristo em nossa pátria; mas lhe trouxe, juntamente, um bem, que superou todos os males: foi a liberdade" (apud Romano, 1979: 132).
Livre das seculares amarras estatais, os ultramontanos empenharam-se ao máximo em acirrar e acelerar o processo de romanização do clero, da instituição e do catolicismo tradicionalmente praticado. A imposição e disseminação desse catolicismo romano, papista, intransigente e antiliberal, afirma Flávio Pierucci (1990: 212), além de implicarem o disciplinamento, a profissionalização e a moralização do clero e o enquadramento dos catolicismos populares, efetuaram-se por meio de intensa repressão de "todos os padres liberais, transigentes, pombalinos, galicanos, jansenistas". Embora imprevista pela alta hierarquia eclesiástica, que prosseguia lamentando sua separação do Estado e a perda de seus poderes e atribuições na administração da esfera pública, tamanha liberdade de ação resultou num crescimento numérico, institucional e territorial sem precedentes na história da Igreja no Brasil, especialmente nos 40 anos da República Velha. O princípio republicano da separação, frisa Pierucci (1990: 214), "foi de longe mais benéfico para a instituição eclesiástica no Brasil do que jamais poderiam sonhar, naquele tempo, os clérigos e clericais intransigentes que o repeliam e os anticlericais, não-católicos e católicos liberais que o propugnavam. Com perdão do lugar-comum, foram 400 anos em 40." A Igreja Católica, portanto, pelo menos no plano institucional, tirou enorme proveito do liberalismo republicano: libertou-se da tutela estatal, uniu-se ao Vaticano, organizou-se, romanizou-se, disciplinou e moralizou seus quadros, censurou e reprimiu o clero liberal, enquadrou o catolicismo popular, ampliou sua infra-estrutura, recrutou e formou novos quadros, expandiu sua rede de seminários, paróquias, dioceses e escolas pelo país, prosperou como nunca dantes e se tornou uma grande força social (Pierucci, 1990: 211-219). De modo que o catolicismo dilatado, clericalizado e romanizado que conhecemos não resultou de uma lenta, gradual e perseverante obra de cinco séculos, mas constituiu-se rápida e fundamentalmente a partir da separação Igreja-Estado, com destaque para o período da Primeira República.
Não é à toa que Sergio Miceli (1988: 11) se refere à República Velha como o período no qual se dá "o processo de 'construção institucional' da Igreja Católica brasileira". Pois esse é o momento em que a Igreja Católica trata de reaver seu patrimônio apossado pelo Império e de refazer sua estrutura organizacional a fim de garantir autonomia material, financeira, institucional e doutrinária, para, então, retomar sua influência política (Ibid.: 11-29). Para implementar sua política expansionista, além das medidas acima mencionadas, mantém sua aliança com as classes dirigentes, estadualiza suas dioceses com o objetivo de se aproveitar de sua proximidade com as oligarquias estaduais e investe pesado no mercado de ensino secundário para as elites (Ibid.: 59-79). Na efetivação desse lucrativo negócio de prestação de serviços educacionais para os filhos dos grupos dirigentes, ela conta freqüentemente com subsídios diretos e indiretos dos governos estaduais e locais (Ibid.: 21-24). Essa privilegiada relação com as oligarquias e a abertura de espaço pelo aparelho estatal para a sua atuação no mercado de ensino viabilizam a construção e organização institucional da Igreja. Além disso, deve-se atentar para o fato de que mesmo depois da separação republicana, como afirma Miceli (Ibid.: 28), "a Igreja ainda ocupava espaços consideráveis nas áreas da saúde, educação, lazer e cultura." Quanto a isso, Miceli (Ibid.: 28-29) lista diversas esferas da vida pública e privada onde a Igreja continuava a atuar: "Presidia à organização das festas e comemorações coletivas (procissões, quermesses, etc.), fazendo praticamente coincidir o calendário de festas e eventos religiosos com os momentos fortes de efusão coletiva e doméstica. A administração dos sacramentos, por sua vez, ritmava e sancionava os eventos-chaves do itinerário pessoal e familiar dos grupos dirigentes. Ungia os dirigentes das irmandades, os detentores de mandatos parlamentares e executivos, dispensava diplomas e certificados escolares, sacramentava formaturas, inaugurações, posses e acordos políticos, benzia prédios públicos, residências, fazendas, fábricas, geria hospitais, dispensários, asilos, escolas, marcando presença em quaisquer dimensões da vida social". Como se vê, na prática, a separação não logrou retirar todos os privilégios da Igreja, nem conseguiu desvinculá-la totalmente do Estado, uma vez que não havia contenções religiosas à altura.
A despeito dos diversos problemas e barreiras que enfrentou no regime de padroado, é indiscutível que a Igreja Católica, no decorrer de toda a história da colonização e durante o Império, foi privilegiada pelo Estado brasileiro. Basta considerar o fato de que ela gozou de uma total reserva de mercado cuja duração estendeu-se efetivamente por mais de três séculos, findando legalmente, mas de modo muito parcial, tão-somente com a outorga da Constituição de 1824. Se a separação do Estado em 1890 suprimiu sua condição de religião oficial e muitas de suas prerrogativas - mas nem todas, como vimos -, concedeu-lhe ao mesmo tempo plena liberdade de ação, cujos resultados mais visíveis foram a romanização homogeneizadora e seu amplo crescimento institucional. Decerto, a hierarquia eclesiástica, ante os frutos de sua autonomia, poderia se contentar meramente em se dedicar à administração e resolução dos problemas e à defesa dos interesses internos da instituição, a fim de fortalecê-la e dilatá-la mais e mais. Mas não foi isso que ocorreu, uma vez que os dirigentes católicos, em oposição ao anseio dos liberais, não admitiam que sua religião se reduzisse à particularidade das consciências individuais. De todo modo, após a promulgação do princípio da separação na Carta Magna da República Velha, a hierarquia, em razão da precária situação da Igreja, deteve-se na reorganização da instituição, retardando, em grande parte, a articulação e os esforços coletivos do clero para tentar reverter a retração do catolicismo na esfera pública. Para impulsionar e conduzir a reação católica, a Igreja contou com a eficiente liderança de D. Sebastião Leme. Em 1916, ano de sua nomeação como arcebispo de Recife e Olinda, D. Leme publicou famosa carta pastoral na qual reclamava da fragilidade institucional e financeira da Igreja, da precariedade da educação religiosa, das deficiências das práticas do catolicismo popular, da ausência de intelectuais católicos e da limitada influência política da Igreja (Mainwaring, 1985: 41). Seu clamor visava mobilizar a Igreja para cristianizar as principais instituições sociais brasileiras (Ibid.: 41). Tal mobilização, contudo, no que concerne à retomada de certos privilégios legais por parte da Igreja Católica, só surtiria efeito na Segunda República.
Ancorada num consistente avanço numérico e numa revigorada capacidade para arregimentar multidões de fiéis - como as grandes concentrações que ocorreram no Rio de Janeiro em 1931, por ocasião da inauguração da estátua do Cristo Redentor e da invocação da imagem de Nossa Senhora Aparecida, já então padroeira do Brasil -, a alta hierarquia eclesiástica, mobilizada, tanto quanto as massas, pelo cardeal D. Sebastião Leme, procurou redefinir a relação Igreja-Estado, pressionando os dirigentes estatais e os parlamentares, a fim de recuperar parte de seus privilégios e restabelecer sua influência na esfera pública. Durante a inauguração do Cristo Redentor, D. Leme, acompanhado de cinqüenta bispos, reuniu-se com Getúlio Vargas, chefe do Governo Provisório, para solicitar a introdução do ensino religioso facultativo nas escolas públicas; solicitação obtida por meio de decreto, embora tivesse sua regulamentação retardada (Beozzo, 2000: 121). D. Leme, porém, não se limitou a fazer solicitações. Baseado na "interpretação acrítica, quase mítica, da nação católica", segunda a qual "o Brasil, por tradição, história e fé de seu povo, é essencialmente católico", D. Leme, na solenidade de inauguração, insolentemente ameaçou: "ou o Estado... reconhece o Deus do povo ou o povo não reconhecerá o Estado" (Della Cava, 1975: 11, 15). Não obstante tal identidade entre Igreja e povo brasileiro não correspondesse à realidade, a fraqueza do governo Vargas, sobretudo no seu princípio, induzia os dirigentes estatais a negociar o apoio católico, com o objetivo de converter a soberania espiritual da instituição eclesiástica sobre a "nação católica" em legitimação de seu poder político. Além de advertir a Nova República acerca de sua extensa influência sobre o povo, a liderança da Igreja Católica empenhou-se efetivamente em demonstrá-la, criando a Liga Eleitoral Católica (LEC), por meio da qual deflagrou ampla campanha para inserir na Constituição de 1934 princípios de seu interesse. A pressão política e a campanha eleitoral do episcopado surtiram efeito: a LEC elegeu a maioria dos candidatos que apoiou para a Constituinte em 1933 e esta incorporou suas principais exigências, incluindo o auxílio financeiro do Estado à Igreja e subsídios às escolas católicas (Ibid.: 14-15; Mainwaring, 1989: 48). Foi sob o primeiro governo Vargas (1930-1945), presidente amigo do cardeal Leme, que a Igreja fez mais progressos na retomada de sua privilegiada relação com o Estado.
Como atesta Ralph Della Cava (1975: 10), "com exceção do período da República Velha (1889/1930), o Estado brasileiro - a despeito de sua ideologia - aceitou esse arranjo [a manutenção do catolicismo como religião oficial] e garantiu à Igreja Católica Romana um conjunto de privilégios (especialmente em assuntos educacionais e sociais) de que nenhuma instituição brasileira particular, religiosa ou de qualquer outro tipo, gozou." Suprimidos em 1890, alguns destes privilégios foram recuperados na era Vargas (1930-1945), período no qual a Igreja Católica conseguiu, de acordo com Della Cava (Id.: 13), "significativo avanço, no sentido de ser reconhecida pelo Estado de modo quase oficial". O artigo 31 da Constituição de 1934 vedava à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios "estabelecer ou subvencionar cultos religiosos ou embaraçar-lhes o exercício" e "ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou Igreja, sem prejuízo de colaboração recíproca em prol do interesse coletivo". A expressão "colaboração recíproca", como se pode perceber, era a senha para que, na prática, se efetivasse e se intensificasse a relação entre Estado e igrejas, sobretudo do Estado com a religião hegemônica. De concreto, além de conseguir a admissão de padres como capelães militares e introduzir crucifixos nas repartições da administração pública, a intensa mobilização da elite eclesiástica católica para restabelecer suas prerrogativas granjeou três importantes concessões estatais na Constituição de 1934: "primeiro, o casamento religioso foi inteiramente reconhecido pela lei civil e o divórcio foi proibido; segundo, foi facultada a educação religiosa em escolas públicas durante o período de aulas; terceiro, foi permitido ao Estado financiar escolas da Igreja, seminários, até hospitais e quaisquer outras atividades e instituições relacionadas e legalmente designadas como de 'interesse coletivo'" (Della Cava, 1975: 15). De modo que a "colaboração recíproca", segundo Beozzo (2000: 122), "traduziu-se de modo particular no campo da assistência social em orfanatos, creches, asilos, hospitais; no campo da educação, com subvenções a escolas, colégios e bem pronto a faculdades e universidades confessionais; no campo trabalhista, aos Círculos Operários Católicos que tornaram-se importante correia de transmissão e repasse dos programas assistenciais do Ministério do Trabalho dirigidos às classes trabalhadores". Com isso, afirma Beozzo (2000: 122), "no quadro do populismo, as instituições da Igreja engrossaram a vasta rede do clientelismo do Estado".
Cumpre frisar que as Constituições de 1946 e 1988 mantiveram o princípio de colaboração entre Estado e igrejas. O artigo 19 da Carta Magna de 1988 veda ao Estado "estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público". De todo modo, fora do "quadro do populismo" tal colaboração não reverteria no mesmo montante de privilégios concedidos pelo Estado à Igreja Católica na era Vargas (1930-45).
Para manter o apoio eclesiástico, os governos democráticos do período 1945-1964, assevera Mainwaring (1989: 55), "em troca concederam alguns favores, mas a negociação não era tão favorável nem tão estável como o fora sob o governo de Vargas". Apesar de preservar a proximidade e uma relação de harmonia e cooperação com o Estado, a Igreja foi malsucedida na tentativa de ampliar significativamente seus privilégios. Mais que isso: depois da era Vargas, entrou em crise, teve o monopólio religioso erodido pela acelerada expansão da concorrência religiosa e fracassou nas tentativas de mantê-lo por meio de movimentos leigos e de sua relação privilegiada com a esfera estatal: perdeu quadros e membros e assistiu ao colapso de suas estruturas leigas - Ação Católica Brasileira, Círculos Operários, Liga Eleitoral Católica (Della Cava, 1975).
Incomodada com a nova situação e estimulada pela concorrência, a Igreja reagiu, reformando o catecismo e a educação religiosa. Em 1955, na esperança de se contrapor ao crescente número de missionários evangélicos, recebeu nova onda de missionários católicos em resposta ao apelo do papa Pio XII para a renovação do esforço de evangelização do continente (Stoll, 1990: 26). Ao mesmo tempo, prosseguiu sua ofensiva aos adversários religiosos, co-responsáveis pela erosão de seu monopólio religioso, execrando e combatendo o pentecostalismo, o espiritismo e as religiões afro-brasileiras. Waldo Cesar (1973: 11-12), cita o livro do padre Agnelo Rossi, Diretório protestante no Brasil, de 1938, como "o primeiro 'grito de alarme' (...) que se publica em português contra o protestantismo". O bispo de Campinas, autor de seu prefácio, além de alertar sobre a "séria e perigosa inflitração protestante no Brasil", referia-se "ao 'vírus de uma influência estrangeira' do espírito protestante e ao estrago do Dollar e à impertinência dos sectários protestantes." Proposta no Concílio Plenário Brasileiro, de 1939, e implementada pelo Departamento de Defesa da Fé, a oposição católica ao protestantismo levada a cabo em nome da defesa da "nação católica" tivera início no Estado Novo, que também se pretendia intérprete e promotor dos interesses da nação brasileira (Rolim, 1985: 72, 82). Como a concorrência religiosa, apesar da ferrenha perseguição católica, só fez crescer desde então, em 1953 a Igreja lançou nova ofensiva, criando o Secretariado Nacional para a Defesa da Fé e da Moralidade, cujos objetivos eram os de vigiar "a marcha das falsas religiões, condenar movimentos e falsas idéias" e "a expansão da imoralidade e da amoralidade na vida pública e particular" (Mainwaring, 1989: 54). Renato Ortiz (1983) discorre a respeito de algumas medidas práticas adotadas pela Igreja Católica para enfrentar a forte expansão de pentecostais e umbandistas nas classes populares:
"Pela primeira vez toma-se consciência real da problemática do mercado religioso, e da perda de poder sacral da Igreja junto às classes populares. Inicia-se assim, em 1953, uma Campanha Nacional Contra a Heresia Espírita, que breve se desdobra em movimento contra as heresias 'tout court'. As resoluções da CNBB (1953) integram um verdadeiro programa de marketing religioso: aos passes espíritas e umbandistas, opõem-se a bênção dos doentes e o culto às almas do purgatório; São Jorge (Ogum) e São Cosme e Damião (ibejis) devem ser submetidos a restrições quanto à adoração pelos fiéis; em contraposições às obras sociais kardecistas intensifica-se a ação social dos católicos. Medidas repressivas de caráter religioso e político são adotadas: distribui-se em certas paróquias uma 'carteira de identidade católica'; nega-se o batismo e outros sacramentos aos filhos de adeptos umbandistas; protesta-se junto à política contra a utilização de imagens de santos católicos por outras religiões. Os resultados de uma tal campanha são entretanto inúteis; no meio popular o avanço das 'heresias' é insofismável" (Ortiz, 1983: 30).
A perseguição católica às religiões rivais só arrefeceria a partir de meados dos anos 1960, durante a ditadura militar, com a difusão entre o clero da doutrina do ecumenismo, enunciada pelo Vaticano II, para se extinguir por completo nas décadas seguintes (Della Cava, 1975: 29). Tal perseguição derivava tanto do fato de a Igreja achar-se plenamente no direito de perseguir os concorrentes quanto da separação republicana, que resultara no pluralismo religioso e na formação de um mercado competitivo. Enquanto a concorrência era relativamente frágil e detinha pouca legitimidade social, bastava empregar a velha estratégia de perseguição, que, em si mesma, evidencia como a desregulação estatal da religião produzira a necessidade da Igreja Católica de mobilizar-se para combater e subjugar os concorrentes. No último quarto do século XX, com o acelerado crescimento numérico dos grupos religiosos acatólicos, que então reuniam maior poder para exigir tratamento isonômico por parte do Estado, a hierarquia eclesiástica católica - insuflada pela guinada conservadora do papa João Paulo II e já consciente de que sua hegemonia religiosa estava fortemente ameaçada - pôs de lado o discurso ecumênico e tratou de investir na disputa pelo mercado religioso.
Orientada por seu atávico anticomunismo, por seu tradicional adesismo ao Estado e por seus interesses institucionais, o episcopado católico manifesta oficialmente seu apoio ao golpe militar de 1964. O manifesto emitido pela CNBB, dois meses após o golpe, agradece aos militares e rende "graças a Deus" por eles terem acudido em tempo o angustiado "Povo Brasileiro" e defendido os "supremos interesses da Nação", evitando que "se consumasse a implantação do regime bolchevista em nossa Terra". A libertação militar do povo e da nação brasileiros do "perigo comunista", a seu ver, fora conduzida nada menos que pela própria "Proteção Divina", que, nesse episódio, "se fez sentir de maneira sensível e insofismável". Para demonstrar boa vontade para com o regime, o alto clero pára de apoiar a Ação Católica e o Movimento de Educação de Base (Oliveira, 1989: 5). Mas não recebe nenhuma contrapartida dos militares e tecnocratas, que não dão "ouvidos nem à mais alta hierarquia católica", que, em razão disso, se distancia do governo e diminui "seus aplausos ao regime militar" (Ibid.: 5). Ao mesmo tempo, paulatinamente recrudesce a tensão entre setores católicos progressistas e a linha dura do governo. De modo que a própria Igreja passa a ser "suspeita de estar sofrendo infiltração comunista" (Ibid.: 6). Com isso, rápida e ostensivamente, os órgãos de segurança nacional passam a reprimir agentes e instituições católicos. Ao ter crescente número de membros do laicato e do clero vitimados pela repressão militar, a Igreja em bloco, e não mais apenas as alas tidas como progressistas e radicais, finca pé na oposição à ditadura, opção política que a afasta dos militares, privando-a temporariamente de sua boa relação com o Estado. A conferência episcopal de Medellín acabaria por legitimar e estimular o movimento de resistência à ditadura e de aproximação com as camadas populares (Ibid.: 6-7).
Embora a separação constitucional Igreja-Estado tenha se consumado há mais de um século, é só nas últimas décadas do século XX, especificamente no período mais duro e violento da ditadura militar (1968-1974), que o Estado brasileiro - ao se ver crescentemente desafiado e repelido por leigos e representantes da hierarquia católica, inclusive por integrantes do clero mais moderado e conservador, com os quais até então mantinha relação cordial - se afasta da Igreja Católica e se aproxima dos grupos religiosos em ascensão, a fim de legitimar-se. A edição do Ato Institucional n. 5, em 1968, e a progressiva repressão de leigos e sacerdotes católicos - prisão, expulsão, tortura e até assassinato de agentes pastorais e padres - constituem os acontecimentos determinantes para a deterioração da relação entre os militares e a alta hierarquia católica. Em vez de silenciar, dividir e debilitar a Igreja, a férrea repressão estatal acaba por reforçar a ala "progressista" - à qual se solidariza o clero moderado e conservador - e, com isso, por recrudescer a oposição católica ao regime militar, tanto na base leiga como na cúpula eclesiástica. Crescentemente reprimida, a Igreja Católica, na defesa de sua autonomia e integridade institucional, de esteio do Estado torna-se a principal força de oposição à ditadura (Mainwaring, 1989: 101-134). Na condição de única instituição brasileira capaz de contestar os atos arbitrários dos governos militares, por usufruir de poderosa estrutura internacional e elevada legitimidade moral, a Igreja "bota a boca no trombone": denuncia a tortura, protesta contra a sistemática violação dos direitos humanos, critica o modelo econômico excludente e defende a restauração das liberdades democráticas (Mainwaring, 1989: 124-126). Embora ainda estivesse por se comprometer ideológica e teologicamente com a "opção preferencial pelos pobres", o fato é que, enquanto não teve início a "abertura" política, a Igreja se empenha em tornar pública a "voz dos que não têm voz".
Em face da oposição católica, o Estado de exceção, privado desse apoio na sociedade civil, rompe com sua prática política de privilegiar esse grupo religioso em prejuízo dos demais, passando a costurar alianças com (e barganhar o apoio) de novos interlocutores religiosos, visando à legitimação de sua autoridade e do exercício de seu poder. Os evangélicos destacam-se entre estes aliados, tanto por seu encarniçado anticomunismo, sua inclinação pelo clientelismo, como pela ávida busca - dada sua condição de minoria discriminada - de poder, recursos, reconhecimento social e político[21]. Robinson Cavalcanti, cientista político, bispo anglicano e membro do Movimento Evangélico Progressista (MEP), relata, com loquacidade, as circunstâncias em que ocorreu essa aproximação dos governos militares com os evangélicos.
"Se o movimento de 31 de março de 1964 pudesse ser comparado a uma composição ferroviária que é forçada a seguir por um desvio (em 1968), poderíamos dizer que a Igreja Romana, na maioria de sua liderança resolve descer na primeira estação após a entrada no desvio. Eles vinham ocupando os vagões da primeira classe e os evangélicos os vagões da segunda classe. Quando eles descem, o chefe do trem convida os evangélicos a se mudarem para os vagões da primeira classe (com acesso ao carro restaurante). Estes o fazem com prazer, ficando imensamente agradecidos pela deferência. A viagem pelo desvio dura mais de uma década. Apesar do desconforto de alguns trechos (inclusive ataque de índios) a tripulação não cessa de se esforçar em tratar bem os passageiros. Poucos são os que resolvem descer do trem e seguir viagem por outro curso e outros meios de transporte. Encantados com o 'desenvolvimento' e a 'segurança', bem como com a 'liberdade religiosa', os evangélicos vão se tornando, a partir da década dos 70 (juntamente com os maçons e os kardecistas) em sustentáculos civis do regime. Compreendendo a perda dos 'passageiros' católicos-romanos progressistas, o regime procura investir ao máximo nos protestantes: visitas de cortesia, empregos, convênios, nomeações para cargos importantes, convites para pastores cursar a ESG, etc. Comportamento semelhante ocorre em outros regimes autoritários do continente. Os evangélicos, sempre no passado uma minoria discriminada, que por tanto tempo orara pelo livramento, saúdam de bom grado a nova situação, uma verdadeira 'bênção', e seguem inexoráveis no caminho da constantinização" (1994: 221-222).
Tal aproximação entre militares e evangélicos deu margem a interpretações equivocadas a respeito da expansão pentecostal. O teólogo católico João Batista Libâneo, por exemplo, ressuscitando uma teoria sobejamente conspiratória, volta e meia difundida nos meios eclesiásticos brasileiros, aventa a idéia de que os militares e outros agentes conservadores, como forma de minar a oposição católica, se prontificaram até a "importar" igrejas evangélicas norte-americanas. Assegura o autor: "Na época da repressão, a Igreja Católica significava, em muitos lugares e momentos, uma firme resistência e crítica ao regime militar. Interessou, portanto, a forças conservadoras militares e não militares quebrar essa espinha dorsal de resistência da Igreja Católica. Uma maneira simples e eficaz foi facilitar, incentivar, importar, sobretudo dos Estados Unidos, igrejas que, pelo menos, não assumissem posição crítica do sistema. Melhor ainda se o apoiassem e sacralizassem. Mas, em todo caso, elas serviam para diminuir a presença hegemônica da Igreja Católica" (Libâneo, 2000: 42). Observa-se que a idéia da conspiração militar enunciada pelo teólogo, além de chamar a atenção para a "função política conservadora" dessa religião, de quebra, tenta igualmente explicar o crescimento evangélico: ao mesmo tempo em que deixa entrevada a Igreja católica, o Estado brasileiro facilita e incentiva a expansão protestante, até importando igrejas, que se prevalecem ainda de "fortes auxílios do estrangeiro e especialmente dos EE.UU" (Ibid.: 43).
Apesar de o Brasil nos anos 60 se tornar o país que mais recebia missionários protestantes norte-americanos, provindos majoritariamente das correntes conservadoras evangelical e fundamentalista, a vertente evangélica que mais cresce, a pentecostal, é aquela cujo crescimento menos deve às missões internacionais (Fernandes, 1981: 40-41, 79). Pois as igrejas pentecostais brasileiras, afirma Fernandes (Ibid.: 77), "quase não utilizam missionários estrangeiros", contando, no início dos anos 1970, com apenas 104 deles. E isso não sofreu maiores alterações nas últimas décadas, dado que as denominações que apresentam crescimento mais dinâmico, além de autóctones, não dependem de auxílio de missões estrangeiras.
Com relação aos auxílios financeiros estrangeiros - dos quais, cumpre lembrar, a Igreja Católica é beneficiária de longa data -, já no princípio dos anos 1920 o cardeal D. Sebastião Leme encarava o crescimento protestante como "complô de milionários norte-americanos" (Mainwaring, 1989: 60). Da mesma forma, em meados da década de 40, membros do clero consideravam que a difusão do protestantismo fazia parte de um abominável plano norte-americano para dominar a América Latina e destruir o catolicismo (Ibid.: 54). Vê-se que, há pelo menos oito décadas, os "dólares de Judas" dos protestantes estadunidenses são tidos, por expoentes católicos, como responsáveis pela dilatação numérica dos evangélicos[22]. No começo dos anos 1980, a rediviva teoria conspiratória novamente deu as caras, só que numa versão mais incrementada: a CNBB enviou relatório ao Vaticano acusando os governos de direita (entre eles os militares) e a CIA de estimularem o crescimento dessa religião alienante no continente latino-americano para frear a proliferação da Igreja Católica progressista e suas comunidades eclesiais de base. Ainda na mesma década, Os demônios descem do Norte, de Délcio Monteiro de Lima, livro cujo título já esclarece o conteúdo, poria mais lenha nessa fogueira. Diversas igrejas pentecostais que - por essa época, já viviam exorcizando e satanizando em profusão seus adversários religiosos, inclusive por meio de atos hostis, como a agressão a umbandistas[23] - ironicamente, agora eram retratadas por esse autor como demônios beligerantes e politicamente conservadores oriundos dos Estados Unidos.
A ruptura temporária dos vínculos entre Estado, classes dominantes e Igreja Católica no regime militar levou os dirigentes estatais a se aproximarem de outros grupos religiosos[24], que a partir de então passaram a ser cortejados e beneficiados, primeiro, pelos ditadores, depois, com a abertura política, por candidatos em busca de votos dos currais eleitorais religiosos e por governantes civis à procura de apoio político. A despeito do ineditismo desse tratamento estatal facultado aos evangélicos, diversos líderes pentecostais têm reclamado insistentemente, por meio de seus veículos de comunicação e de seus representantes políticos eleitos para o Congresso Nacional - e de modo cada vez mais acentuado à medida que adquirem mais emissoras de rádio e TV e ampliam o tamanho de seus rebanhos e bancadas parlamentares - da existência de privilégios concedidos pelo Estado, geralmente na forma de recursos financeiros, às obras assistenciais da Igreja Católica, bem como aos hospitais e universidades católicos. Há que se observar que esses líderes evangélicos e seus representantes no parlamento não estão simplesmente cobrando maior neutralidade da parte do Estado em relação às diferentes organizações religiosas. O que eles reclamam do Estado é, fundamentalmente, a supressão dos privilégios católicos. Mas não só isso: ao mesmo tempo, pleiteiam privilégios para si próprios, como os feriados evangélicos (dia da Bíblia, dia do evangélico), a obtenção de concessões de emissoras de rádio e TV, a extensão das isenções fiscais para atividades comerciais que orbitam em torno das igrejas, a revisão das leis de edificações para os templos, a censura de livros e programas de TV contrários às suas crenças e interpretações bíblicas etc.
Apesar da "interessada" atuação dos evangélicos no parlamento, é indiscutível que as cobranças de maior neutralidade em matéria de religião feitas ao Estado por esses e outros grupos religiosos só puderam ser exercidas legitimamente, ou contar com crescente respaldo social e político, a partir do momento em que esse mesmo Estado não se via mais em condições de sustentar jurídica e politicamente - sem provocar enérgicas reações contrárias - qualquer ato que insistisse em privilegiar a religião hegemônica às expensas das outras. O fato é que, no final do século XX, o Estado brasileiro, já redemocratizado, não tinha mais como conservar uma relação abertamente privilegiada com a Igreja Católica - não obstante a permanência de certas prerrogativas católicas -, sobretudo se para isso tivesse que se ancorar na força social e política desta instituição eclesiástica, uma vez que, a essa altura, ela se achava com seus poderes seriamente relativizados, reduzidos e desafiados pela concorrência, cada vez mais visível, numerosa, aguerrida e poderosa.
Se a oposição católica induziu os militares a buscar novos aliados no campo religioso, os evangélicos constituíam a primeira opção por seu tamanho numérico, já expressivo no final dos anos 60, (e sobretudo no caso da vertente pentecostal) seu anticomunismo e seu tradicional conservadorismo político, que, seguindo a epístola aos Romanos (cap. 13) ao pé da letra, apregoava a submissão às autoridades constituídas, porque provenientes de Deus. Isto é, o fato de esse grupo figurar na segunda posição no ranking das religiões no Brasil, rivalizar com a Igreja Católica e, em grande parte, se alinhar ideologicamente à doutrina militar de contenção e repressão do "comunismo" tornava-o alvo imediato e estratégico do assédio dos dirigentes estatais interessados na conquista de novos parceiros religiosos para legitimar o regime.
A despeito dessa aproximação entre governos militares e evangélicos, foi sobretudo depois da redemocratização que esses religiosos passaram a lograr maiores dividendos de sua relação com os dirigentes do Estado. Até porque foi na década de 1980, especialmente na Constituinte, que os pentecostais, já majoritários no campo evangélico, resolveram ingressar de corpo e alma na política partidária, rompendo assim com sua tradicional auto-exclusão da arena política (Pierucci, 1989; Freston, 1993). O marco dessa virada ocorreu com a eleição da famigerada "bancada evangélica" de 32 deputados federais em 1986. Desde então, o jargão "crente não se mete em política" caiu por terra. Pois, num estalar de dedos, o velho preceito fora substituído pelo slogan "irmão vota em irmão" (Sylvestre, 1986; 1988). Como sua participação na política se tornara uma realidade impossível de dissimular, ela não podia mais ser encarada a partir da ótica sectária como algo mundano e diabólico. Tornou-se imperioso justificar tal participação desses irmãos. Para tanto, os políticos evangélicos, com o apoio pastoral e denominacional, passaram a alegar a seu rebanho religioso e eleitoral que sua atividade parlamentar não só se subordina à sua missão religiosa como é exercida em nome dela e para melhor realizá-la. Trata-se, pois, de elegê-los para que esses irmãos, na posição de "cabeça" em vez de "cauda", ocupem os postos de comando da nação - para cristianizá-la "por cima" -, evangelizem os poderosos e defendam a liberdade religiosa, o ideário e os interesses institucionais de suas igrejas. Nas duas últimas décadas, esses religiosos não se limitaram apenas a ampliar sua representação no legislativo. Diante do vertiginoso assédio eleitoral de candidatos dos mais variados matizes ideológicos, passaram também a direcionar o voto de seu rebanho nas eleições majoritárias. Sua inclinação direitista evidenciou-se no segundo turno da primeira eleição direta para a presidência da República depois da ditadura, quando rejeitaram o candidato de esquerda, o petista Lula, e votaram em massa em Fernando Collor de Mello (Mariano e Pierucci, 1992). Na eleição presidencial de 1994, o candidato petista padeceria novamente da maior rejeição eleitoral por parte dos pentecostais (Pierucci e Prandi, 1996, 211-238).
O que importa observar é que a destacada posição ocupada atualmente pela religião pentecostal nas relações de força no mercado religioso brasileiro tornou-a um dado e uma parte ativa do jogo político local e nacional. De seu progressivo poder religioso, derivaram seu crescente poder político e midiático, que permitiram a seus líderes eclesiásticos e representantes parlamentares ampliar e multiplicar seu relacionamento com os dirigentes do Estado e, com isso, obter acesso a certos favores e benefícios do aparelho estatal - fruto muitas vezes de fisiologismo ou de barganhas políticas, caso, por exemplo, do voto de parlamentares evangélicos ao mandato acima de quatro anos para o governo José Sarney -, como concessões de emissoras de rádio e TV, de terrenos públicos para edificação de templos, de verbas para entidades assistenciais. Não obstante os benefícios auferidos por esse grupo religioso de sua crescente participação política e interlocução com os governantes, seria incorreto inferir que a expansão pentecostal resulta disso. Na realidade, é sua crescente inserção na esfera pública política e midiática que deriva de sua expansão demográfica, não o contrário. De todo modo, tal expansão tende a se beneficiar dessas novas formas de inserção social.
Considerando o que nos diz Bourdieu (1987: 90) - que "o tipo de legitimidade religiosa que uma instância religiosa pode invocar depende da posição que ocupa num determinado estado das relações de força religiosa" -, cabe notar que, nas últimas décadas do século XX, o pluralismo religioso, além de crescente, se tornou uma trivialidade, algo "natural" de tão corriqueiro e evidente, e as religiões acatólicas - incluindo as que ainda padecem de certa discriminação, como o candomblé, tradicionalmente associado à "magia negra" - conquistaram legitimidade sem precedentes na história brasileira. Daí sua atual capacidade de se fazer respeitar e de contrabalançar o poder católico. Entre as novas religiões em expansão no Brasil, nenhuma cresceu tanto entre as massas como a pentecostal; e, apesar dos descomunais custos éticos decorrentes da estrondosa irrupção de escândalos financeiros, políticos e religiosos envolvendo principalmente líderes, práticas rituais e métodos heterodoxos de arrecadação da Igreja Universal na década de 90, não há como negar que sua legitimidade religiosa só fez aumentar nos últimos anos. Legitimidade que, em grande parte, se fundamenta em sua já duradoura e conhecida presença entre nós, no expressivo contingente de fiéis, em sua ascendente força política e midiática e numa consistente imagem de promotor de hábitos, costumes e condutas tidos como probos, decentes e afinados com tradicionais valores do cristianismo[25].
A despeito das agruras pelas quais passou na década de 1990, com o fracasso de planos macroeconômicos, seu ajuste neoliberal, as crises internacionais, a volatilidade do mercado financeiro globalizado, o aumento das dívidas interna e externa, a instabilidade política das bases de apoio do executivo no Congresso, o fortíssimo recrudescimento da violência e da criminalidade, o Estado, em particular o governo federal sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso, apesar do comparecimento deste em eventos católicos e evangélicos, parecia pouco inclinado a envidar grandes esforços para carrear e demandar legitimação de natureza religiosa. Entretanto, apesar desse "ensimesmamento" estatal, o "lobby da batina" conseguiu marcar um tento na década de 1990. Pouco satisfeita com a inserção na Constituição de 1988 da obrigatoriedade da oferta de ensino religioso, de matrícula facultativa, nas escolas públicas de primeiro grau - mantendo assim privilégio concedido na Constituição de 1934 -, em julho de 1997, a hierarquia católica - oito meses depois de aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) - conseguiu que o presidente da República, embora ateu de carteirinha, sancionasse emenda retirando do texto original da LDB a expressão "sem ônus para os cofres públicos". Com isso, o ônus financeiro do ensino religioso nas escolas públicas, em vez de ser pago pela Igreja e pelos católicos, pesou no bolso dos contribuintes.
Com a transição democrática e o revigoramento da sociedade civil, o episcopado católico volta hoje sua atenção para o esvaziamento da instituição eclesiástica, que, se avançava aceleradamente desde meados do século XX, se intensificou na década de 1980. Com isso, o fenômeno pentecostal readquiriu lugar de destaque na agenda episcopal. Em 1979, os bispos latino-americanos reunidos em Puebla não só fizeram a "opção preferencial pelos pobres" como reclamaram da "invasão das seitas". Nos anos 1980, a Igreja de Roma, sob o comando do papa polonês, deu início a uma forte guinada conservadora; o ecumenismo refluiu e as teorias conspiratórias sobre o avanço pentecostal reconquistaram espaço na hierarquia católica. Ao visitar os países da América Latina nos anos 80 e 90, João Paulo II invariavelmente se revelou preocupado com a "expansão das seitas" fundamentalistas e ansioso para forjar e aprimorar as respostas pastorais da Santa Sé. Atento à diminuição de seu rebanho durante passagem pelo Brasil em 1991, o papa cobrou dos cerca de 300 bispos reunidos em Natal, por ocasião do Congresso Eucarístico Nacional, "uma ação mais eficaz contra a ignorância religiosa e a carência de doutrina que deixam o povo vulnerável à sedução das seitas"[26]. Ênfase na defesa da fé e instituição católicas que vinha reforçar o empenho da CNBB, que, em seu congresso realizado no ano anterior, debatera justamente "o avanço das seitas evangélicas". Em setembro de 1997, o pontífice repisou a cobrança anterior, enviando carta para o Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), na qual mais uma vez alertou bispos e arcebispos sobre "a rápida expansão das seitas" no continente. Os temas da "expansão das seitas evangélicas" na América Latina e das ações pastorais destinadas a barrar o crescimento dos concorrentes e a recuperar parte do rebanho desgarrado tornaram-se uma constante nas reuniões e discussões da alta hierarquia católica, no último quarto do século XX.
Nos anos 1990, as teorias conspiratórias arrefeceram e a procura de bodes expiatórios (a politização da Igreja, por exemplo) para justificar o encolhimento do rebanho católico cedeu lugar à consciência de que era preciso reagir e com urgência. Pois, como afirmou D. Sinésio, bispo de Santa Cruz do Sul (RS), "não adianta simplesmente dizer que algumas seitas são puro charlatanismo, que só aparecem onde tem igreja progressista, que é imperialismo americano. Temos mesmo é que revisar o trabalho da Igreja Católica. (...) Elas fizeram a Igreja se mexer. Há trinta anos que deveríamos ter reagido"[27]. Embora a reação católica seja de longa data, somente nos últimos anos ela se fez sentir de modo mais pronunciado, especialmente a partir da entrada em cena da Renovação Carismática. De modo que certas estratégias adotadas pela Igreja, apesar da aparência de recentes, são praticadas há décadas, algumas antes mesmo do Vaticano II. Nota-se ainda que a resposta pastoral católica, em parte, se inspira em métodos aplicados pelo bem-sucedido proselitismo pentecostal. Resumidamente, eis algumas das ações empregadas pelo clero para tentar reverter o declínio da instituição: incentivo à leitura da Bíblia; incremento da participação dos leigos nas atividades e celebrações religiosas; ocupação de maior espaço na TV; maximização do uso evangelístico da rede radiofônica católica; revalorização das tradições e práticas do catolicismo popular; apoio às pastorais sociais, sobretudo a de saúde; renovação da liturgia; maior concessão à expressividade emocional dos fiéis nos cultos; aumento do número de padres, cujo sacerdócio deve ser mais acolhedor e atento às necessidades dos leigos; abertura de novos ministérios visando atender e explorar necessidades de determinados nichos de mercado.
Observa-se que, nas últimas décadas do século XX, a Igreja Católica - por força do princípio republicano da separação Igreja-Estado e em razão da diplomacia ecumênica forjada no Concílio Vaticano II - não só descarta a perseguição aos adversários como reconhece a consolidação do pluralismo religioso[28] e o direito (assegurado pelo Estado) à liberdade religiosa dos demais grupos religiosos. E pressionada pelo avanço da concorrência, decide ingressar para valer na aquecida competição no interior desse mercado. A despeito disso, a velha estratégia de recorrer ao Estado para reprimir os concorrentes não escapa de todo do horizonte católico. Tanto assim que Jesús Sánches Hortal, teólogo e reitor da PUC (RJ), assegura que "a tentação mais comum [das lideranças eclesiásticas], diante dessa realidade pluralista, é a de invocar a intervenção das autoridades civis, a fim de que reprimam as 'seitas', como nocivas ao bem comum. Muitos desejariam uma legislação repressora de certos comportamentos que são vistos como enganadores e destrutores da fé" (Hortal, 2000: 87). Portanto, vê-se que ainda hoje a liberdade religiosa - levada, segundo Hortal, "até as suas últimas conseqüências" no Brasil - é encarada, nas palavras do teólogo, como "algo dramático" pela hierarquia católica (Ibid.: 87, 90). Para as outras religiões, ao contrário, não há nada mais sagrado que o princípio constitucional de liberdade religiosa, que lhes permitiu aflorar e crescer em solo brasileiro.
A reação católica à consolidação do pluralismo religioso e ao crescimento pentecostal, no entanto, mostrou-se relativamente pouco eficaz. Até porque suas deficiências não são novas[29], nem poucas nem muito menos de fácil e rápida solução: reduzida quantidade de padres e de novas vocações sacerdotais, baixas taxas de freqüência e participação dos leigos nos rituais, preponderância de católicos nominais não praticantes, grande evasão de fiéis para outras religiões, templos vazios, dioceses deficitárias etc. Acomodada à sua longa hegemonia, a Igreja Católica parece estar longe de poder competir eficientemente no mercado religioso brasileiro, cada vez mais diversificado, concorrencial e empresarial. Muitas lideranças católicas, sobretudo as tidas como progressistas, tendem a não conferir prioridade à competição religiosa. Outras tantas continuam agindo como se sua religião ainda contasse com uma reserva de mercado, como se o mercado religioso brasileiro já não estivesse tomado por ávidos e dedicados competidores, como se a Igreja Católica fosse uma "estatal", ou como se ela estivesse imbuída de um irrevogável direito divino de permanecer majoritária e dominante até o final dos tempos. A maioria do clero, porém, está se ajustando ou tentando se ajustar à atual situação de mercado propiciada pela separação Igreja-Estado e efetivada pela dinâmica concorrencial do pluralismo religioso. Entre as principais reações da Igreja[30], destaca-se a crescente cessão de espaço e incentivo institucionais à Renovação Carismática Católica, cujos líderes e adeptos são tão militantes, empolgados e mobilizados quanto os pentecostais, embora com mensagens, rituais e estruturas organizacionais bem menos diversificados que os destes.
O tradicional insucesso da Igreja Católica em obter maior participação e compromisso religioso da maioria dos que se identificam nominalmente como católicos no Brasil favorece a expansão pentecostal, sobretudo porque a fraqueza institucional do catolicismo brasileiro revela-se ainda mais notória e pronunciada nas classes sociais desprivilegiadas. Classes em que o pentecostalismo prolifera de modo mais acentuado, entre outras razões, por aí encontrar o "terreno" parcialmente livre de concorrência e por se dedicar intensamente à sua evangelização. Haja vista que, no decorrer dos cinco séculos de sua presença no Brasil, a Igreja Católica sempre esteve apegada às elites e às classes dominantes. A fraqueza de sua presença institucional entre os pobres, característica há muito apontada nos estudos sobre o catolicismo (Mainwaring, 1989: 30; Miceli, 1988), foi reconfirmada por survey realizado pelo Datafolha entre católicos praticantes, em 1997[31]. A pesquisa constatou que o perfil do católico brasileiro que freqüenta as missas é de uma pessoa mais velha, com maior escolaridade e renda mais alta do que a média da população. O retrato dos católicos ditos praticantes revela um rebanho envelhecido e elitizado. Dos que freqüentam a igreja, 22% têm nível superior (contra 8% em média da população) e só 41% estudaram até o primeiro grau (contra 63% da população em geral). 18% dos católicos praticantes ganham mais do que 20 salários mínimos por mês, o triplo do que aufere a média da população. Ainda assim, os católicos com renda inferior a 10 salários mínimos, o grosso da população economicamente ativa, são maioria, com 57%. A pesquisa também revelou que 45% das pessoas que freqüentam a missa no Rio de Janeiro e em São Paulo têm mais de 40 anos de idade, sendo que no conjunto da população brasileira esse percentual não passa de 35%. Da mesma forma, os católicos praticantes somam 24% de seus adeptos na faixa etária de 16 a 25 anos, que abrange 31% dos brasileiros.
Centrada nos estímulos institucionais à expansão da Renovação Carismática, a reação da filial brasileira da Santa Sé para reverter a secular debilidade do catolicismo nas bases da estrutura socioeconômica mostra-se, em grande parte, malsucedida. Ao comparar Renovação Carismática Católica e pentecostalismo, Reginaldo Prandi (1997: 162-169), baseado em amplo survey realizado pelo Datafolha em 1994, mostrou que estes movimentos religiosos se dirigem a públicos distintos. As igrejas pentecostais, mais concentradas nas capitais e regiões metropolitanas, arregimentam os estratos mais pobres e menos escolarizados da população, enquanto a Renovação Carismática, mais concentrada nas cidades do interior, com 70% de adeptos do sexo feminino, angaria adeptos especialmente na classe média baixa. Parte do pouco sucesso do evangelismo da Renovação Carismática entre as classes populares talvez se deva aos constrangimentos impostos pela instituição, que tendem a diminuir sua flexibilidade e limitar seu modo de ação. Se a Renovação Carismática tem sido bem-sucedida nas cidades do interior, onde, com o peso da tradição e estrutura católicas, pode vir a minorar o avanço pentecostal, nas capitais e regiões metropolitanas sua penetração é bem inferior, sobretudo nos bairros pobres, periféricos, nos quais pentecostais e afro-brasileiros obtêm seu melhor desempenho. Daí, como escreve Prandi (1997: 161), se a Renovação Carismática tem como um de seus principais objetivos recuperar o terreno perdido para os concorrentes nos estratos sociais mais pobres, "alguma coisa está errada".
Para finalizar, vimos que só aos poucos, a duras penas, de modo lento e de forma nada linear, o Estado passou a limitar sua intervenção na esfera religiosa; o que não quer dizer que seus agentes e instituições, a partir de um determinado momento, se restringiram meramente a encampar a bandeira da tolerância religiosa e a proteger, pelos meios jurídicos, administrativos, políticos e policiais à sua disposição, a liberdade religiosa dos indivíduos e a liberdade de culto das organizações religiosas. Tamanha restrição da ação estatal na esfera religiosa não corresponde à realidade histórica. De todo modo, ante a progressiva dilatação do pluralismo religioso, o acirramento da competição religiosa e a formação de um vigoroso mercado religioso, fenômenos decorrentes da separação Igreja-Estado, da quebra do monopólio católico e da garantia estatal à liberdade religiosa, o Estado brasileiro foi sendo crescentemente compelido, e de forma cada vez mais acentuada no decorrer da segunda metade do século XX, a tratar os diferentes grupos religiosos de modo mais igualitário. Até porque, à medida que os novos movimentos religiosos foram avançando na conquista de prosélitos, de poder midiático e político, fenômeno que se evidenciou mais fortemente no último terço do século XX, ao Estado foi sendo paulatinamente dificultada e restringida a prática, freqüente ou esporádica, de atos políticos ou administrativos que viessem a beneficiar, de modo flagrante, uma determinada instituição religiosa em detrimento das outras, ou que pudessem ferir o direito de liberdade de qualquer grupo religioso, como sói acontecer com as agremiações minoritárias e tidas como controversas, sectárias, "exóticas" e até perigosas ou subversivas. Se nos dias atuais a Igreja Católica ainda parece manter uma relação privilegiada com o Estado brasileiro, ou se este continua a ser mais receptivo às demandas católicas, cumpre observar que o princípio constitucional republicano que assegura a liberdade religiosa dos indivíduos e das religiões não se tornou letra morta, peça de museu, mera formalidade que "não pegou". Pelo contrário. Apesar de certos percalços, como a longa discriminação estatal sofrida pelos cultos afro-brasileiros, a liberdade religiosa, sancionada e assegurada pelo Estado, não só se efetivou plenamente nas últimas décadas do século XX, tornando-se um dado indisputável da realidade brasileira, fato inegável, mas também se situa na raiz do pluralismo religioso e na constituição de nosso dinâmico mercado religioso contemporâneo. Apesar de derivar da separação republicana, o pluralismo, hoje, cumpre o papel de garantir a permanência da separação jurídica entre os poderes temporal e espiritual e da liberdade religiosa, de contrabalançar o poder da religião hegemônica e de restringir ações estatais que discriminem algum grupo religioso ou que privilegiem algum em detrimento dos demais.
Da sanção ao Decreto n. 119A de 1890, que legalizou a separação Igreja-Estado, laicizando a esfera estatal e instituindo plena liberdade religiosa, ao princípio do século XXI, o Estado republicano brasileiro trilhou percurso dos mais acidentados até, recentemente, se tornar formalmente um Estado democrático de direito. O princípio republicano da separação, conquanto fosse abertamente minimizado na era Vargas em prol da Igreja Católica e, no decorrer do século XX, jamais resultasse na neutralização da ação estatal na economia religiosa brasileira, exerceu papel crucial no desmonte do monopólio católico e na diminuição de seus privilégios. Ao lado do princípio da separação republicana, o Estado brasileiro assegurou o direito à liberdade religiosa dos indivíduos e das religiões acatólicas, garantia estatal fundamental para a consolidação do pluralismo religioso. Mesmo durante os regimes ditatoriais, o Estado foi compelido a zelar pela liberdade religiosa e de culto; e cada vez mais à medida que essas religiões, com tamanho, poder e influência crescentes, passaram a exigir, e não apenas pleitear, tratamento isonômico da esfera estatal, na tentativa de, por um lado, obstar sua privilegiada relação com a Igreja Católica e, de outro, conquistar certos privilégios para si próprias. Assegurada constitucionalmente desde 1891 pelo Estado republicano, expressa na Assembléia nacional francesa de 1789 e ratificada na Assembléia Geral das Nações Unidas de 1948, a liberdade religiosa - declarada em ambas as assembléias "direito" universal do homem - é, sem dúvida, a pedra angular da vasta transformação sofrida pelo campo religioso brasileiro, antes monopolizado e, quando muito, sincretizado sob o manto católico, num diversificado e exuberante mercado religioso. Em suma, eis o resultado da separação Estado-Igreja: a secularização do Estado, a liberdade religiosa, a dilatação do pluralismo religioso ou da oferta de religiões, a intensificação da concorrência religiosa, a constituição de um mercado religioso abertamente competitivo. Por fim, cumpre afirmar que, sem a secularização do Estado brasileiro e a garantia estatal à liberdade religiosa, o pentecostalismo dificilmente poderia usufruir das condições necessárias para granjear tamanho sucesso numérico, midiático e político.
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[1]. Flávio Pierucci (1998) mostra que o conceito weberiano de secularização envolve, acima de tudo, o longo processo de racionalização ocidental da ordem jurídico-política, o disestablishment ou a separação da religião do Estado, que, na modernidade, se torna laico, domínio da lei e guardião do direito formal. Direito que, nesse contexto, por ser dessacralizado, se torna legitimamente revisável.
[2]. Entre diversos outros trabalhos, Stark e Bainbridge são autores de dois importantes livros: The future of religion (Berkeley: University of California Press, 1985) e A theory of religion (New Brunswick, New Jersey: Rutgers University Press, 1996). Roger Finke e Rodney Stark publicaram The churching of America - 1776-1990: Winners and losers in our religious economy (New Brunswick, New Jersey: Rutgers University Press: 1992). Em 1997, Lawrence A. Young organizou o livro Rational choice theory and religion: Summary and assessment (New York: Routledge), contendo as principais perspectivas teóricas desses pesquisadores, além de artigos que as criticam. No paper Work en progress toward a new paradigm for the sociological study of religion in the United States, R. Stephen Warner (1993) elabora importante balanço da teoria sociológica desses pesquisadores, entre os quais se inclui o economista Laurence Iannaccone, autor de diversos artigos na área, alguns deles em conjunto com Stark e Finke.
[3]. Cumpre observar que pesquisadores latino-americanos têm se baseado na teoria desses estudiosos norte-americanos. Alejandro Frigerio (1998a, 1998b) e Floreal Forni (2000), argentinos, e Flávio Pierucci (1999) adotam concepções teóricas contidas na perspectiva forjada pelos norte-americanos.
[4]. A desregulação da economia religiosa dos EUA tomou impulso a partir da Primeira Emenda de 1789, que proibiu o Congresso norte-americano from establishing religion. De acordo com Stark e Iannaccone (1992: 2030), a participação religiosa da população norte-americana atualmente é o dobro da que havia em 1860. Com 1.350 denominações e seitas, conforme a Encyclopedia of American Religions, os Estados Unidos constituem uma das sociedades modernas mais pluralistas e com maior participação religiosa. Enquanto 40% dos adultos norte-americanos afirmam freqüentar uma igreja semanalmente, apenas 10% dos ingleses e 4% dos escandinavos declaram tal freqüência (Shea, 2001).
[5]. Quanto às críticas, ver também Collins (1993; 1997), Warner (1993b), Chaves (1995), Ellison (1995), Hadaway, Marler, Chaves (1998).
[6]. Gilberto Freyre (1984: 354) afirma que os escravos africanos "eram tidos menos por homens do que por animais até gozarem do privilégio de ir à missa e receber os sacramentos". De modo que a mesma instituição religiosa que, por meio dos sacramentos, "conferia" a condição humana aos negros sacralizava o regime escravista que perpetrava sua desumanização.
[7]. O vínculo entre império e altar também repousava no fato de D. Pedro I e D. Pedro II terem sido ungidos e consagrados por bispos católicos nas suas respectivas cerimônias de coroação, rituais por meio dos quais restauraram a tradição medieval de proclamar o direito divino dos reis ao trono (Schwarcz, 1999: 255).
[8]. A pedido da coroa, visando ao incremento da imigração de protestantes para suprir a necessidade de mão-de-obra na lavoura, o Vaticano permitiu que a Igreja Católica realizasse casamentos mistos no Brasil, concessão que não foi estendida às nações hispânicas da América (Haring, 1967: 155-156).
[9]. Sobre a implantação do protestantismo de imigração e de missão no Brasil, ver Léonard (1963), Ribeiro (1973), Camargo (1973: 105-116), Vieira (1980), Mendonça (1984; 1989), Mendonça e Velasques (1990: 11-58), Freston (1993: 42-63).
[10]. Além de enfrentar a oposição do clero ultramontano, os missionários protestantes sofreram grandes perdas pela fadiga, por moléstias diversas e especialmente pela febre amarela (Léonard, 1963: 77).
[11]. Nesse propósito, o Estado imperial contou com o apoio do padre liberal Antônio Diogo Feijó, Regente do Império entre 1835-1837.
[12]. Quanto à Questão Religiosa, o historiador David Gueiros Vieira (1980: 13) considera que "a presença protestante no Brasil e seu envolvimento com o grupo maçônico-liberal fora o elemento catalítico das controvérsias locais que culminaram na luta entre os bispos e a Coroa". Em seu meticuloso trabalho historiográfico, Vieira, além de relatar diversos conflitos envolvendo o clero ultramontano (sobretudo os bispos D. Vital e D. Macedo Costa) e os missionários protestantes nos anos imediatamente anteriores à irrupção da Questão Religiosa, fornece inúmeras mostras do relacionamento entre protestantes, liberais e maçons contra os interesses e prerrogativas da Igreja Católica. Além de suas tentativas para implantar o casamento civil e expulsar os jesuítas, Vieira revela que "houve um esforço conjunto maçônico, liberal, republicano, protestante para provocar a separação entre a Igreja e o Estado" (Ibid.: 359). João Dias de Araújo (1977: 28) reforça essa relação, afirmando que "a simpatia dos protestantes para com os intelectuais liberais, os maçons, os anticlericais e os republicanos foi notória nas duas últimas décadas do século passado [XIX]. Era uma simpatia típica de um grupo de minoria".
[13]. Entre os aliados dos bispos, constavam os núncios e internúncios, além das ordens religiosas estrangeiras, que estavam se recompondo no Império. Os lazaristas voltaram ao Brasil já em 1827, os capuchinhos, em 1862, e os jesuítas, em 1866 (Vieira, 1980: 36).
[14]. A maçonaria européia era anticlerical, sobretudo na França, onde estudaram os dois bispos brasileiros que precipitaram a Questão Religiosa. Daí a denúncia do papa Pio IX contra a Ordem Maçônica. Para Clarence Haring (1967: 156), diferentemente de seus pares europeus, os maçons brasileiros, quando estourou a Questão Religiosa, não ostentavam quaisquer arroubos revolucionários, nem se mostravam anti-religiosos ou anticatólicos. David Gueiros Vieira (1980), contudo, mostra que os maçons brasileiros eram fortemente liberais e se opunham abertamente à Igreja Católica e a suas prerrogativas de religião oficial.
[15]. O Artigo 102, parágrafo 14, da Constituição de 1824 atribuía ao imperador, líder do poder executivo, o poder de "conceder ou negar o beneplácito aos decretos dos concílios e letras apostólicas, e quaisquer outras constituições eclesiásticas, que não se opuserem à Constituição; precedendo a aprovação da assembléia, se contiverem disposição geral" (apud Scampini, 1978: 26).
[16]. Apesar de sua ferrenha posição liberal e regalista, D. Pedro II, ironicamente, ajudou a fortalecer o ultramontanismo. No afã de educar o clero, o imperador enviou à Europa grande número de seminaristas que foram doutrinados nas idéias ultramontanas. De volta ao Brasil, eles rapidamente assumiram postos de liderança, com vários deles tornando-se bispos. No Concílio Vaticano I (1869-1870), todos os bispos brasileiros e latino-americanos, num total de 48, eram ultramontanos (cf. Vieira, 1980: 38).
[17]. Segundo Boanerges Ribeiro (1973: 81), pastor presbiteriano e historiador do protestantismo brasileiro, "entre 1824 e 1874, organizaram-se no país cerca de 40 igrejas evangélicas 'de colônia'".
[18]. Os trabalhos de Léonard (1963) e Vieira (1980) mostram que os primeiros missionários protestantes, em busca de proteção e apoio para sua missão religiosa, empenharam-se em estabelecer boas relações com as autoridades do Império e com todos aqueles aos quais, estrategicamente, pudessem se aliar. Nesse mesmo sentido, cumpre dizer que os missionários protestantes conquistaram inúmeras adesões de proprietários de terras, grandes, médios e pequenos, na segunda metade do século XIX. A adesão de fazendeiros ao protestantismo costumava ser seguida pela conversão de boa parte dos familiares, agregados e trabalhadores que os rodeavam. Os grupos protestantes formados pelos moradores e trabalhadores dessas unidades de produção agrícola forneceram excelentes condições para a sobrevivência, defesa e propagação da nova crença (Léonard, 1963: 95-100).
[19]. Além de incentivar a imigração protestante, D. Pedro II manteve boas relações com alguns pastores protestantes. Entre eles, além do médico e missionário escocês Robert Kalley, o principal foi o metodista norte-americano James Cooley Fletcher, que manteve contatos com o imperador por mais de duas décadas e cuja obsessão era converter o Brasil ao protestantismo e ao progresso (Vieira, 1980: 61-94). Dom Pedro II, que apreciava os protestantes por seus conhecimentos e pelos serviços práticos que poderiam prestar ao país (Léonard, 1963: 47-48), também visitou o Colégio Mackenzie e a Escola Internacional, de Campinas (Ribeiro, 1973: 150). Fundados pelos presbiterianos em 1871, ambos os colégios, ao lado de outros prestigiados estabelecimentos de ensino protestantes, contribuiriam para disseminar a propaganda que associava o protestantismo ao progresso educacional, científico e tecnológico (Ramalho, 1976).
[20]. Willems (1967: 66) fornece número diferente de protestantes em 1890: 143.743. Mesmo assim, eles são 1% da população.
[21]. Sobre a aproximação dos governos militares com os evangélicos, ver João Dias de Araújo (1976), Marcos Dantas (1982), Robinson Cavalcanti (1994), Andrew Chesnut (1997: 145-166).
[22]. Até na academia, e isto já em fins da década de 80, havia quem se referisse à "expansão recente de 'seitas' de origem e recursos financeiros provavelmente espúrios" (Menezes, 1989: 32-33).
[23]. Sobre a intolerância pentecostal aos cultos afro-brasileiros, ver Mariano (1999: 109-146).
[24]. Além dos evangélicos, os cultos afro-brasileiros também se tornaram, digamos, alvo da política cultural de muitos governos e governantes. Tanto que a realização de algumas festas e atividades profanas, artísticas e religiosas destes grupos, seja na baixada santista, seja em Salvador e em diversas outras cidades brasileiras, passaram não só a constar do calendário fixo de festividades municipais como a contar com o apoio, o estímulo e com recursos públicos do Estado.
[25]. A legitimação do pentecostalismo vem ocorrendo em vários países latino-americanos. Sobre o processo de legitimação da religião pentecostal na Argentina, ver o trabalho de Daniel Miguez (1998).
[26]. Veja, 23.10.91.
[27]. Veja, 16.5.90.
[28]. Nos anos 1991, 1993 e 1994, a CNBB publica, pela editora Paulinas, três livros intitulados A Igreja Católica diante do pluralismo religioso no Brasil (série Estudos da CNBB, volumes 62, 69 e 71).
[29]. Convém lembrar que, já em 1916, D. Sebastião Leme, em sua famosa carta pastoral, "chamava atenção para a fragilidade da Igreja institucional, as deficiências das práticas religiosas populares, a falta de padres, o estado precário da educação religiosa, a ausência de intelectuais católicos, a limitada influência política da Igreja e sua depauperada situação financeira" (Mainwaring, 1989: 41).
[30]. Sobre a reação católica em face do avanço pentecostal, ver Ari Oro (1996: 92-119).
[31]. Folha de S. Paulo, 4.11.97.
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