O GASODUTO BOLÍVIA-BRASIL E O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO BRASILEIRO:
Pesquisas realizadas no ano de 1993 em Mato Grosso do Sul


Jorge Eremites de Oliveira

(Arqueólogo da UFMS)


Introdução

O presente trabalho tem por objetivo maior expor as experiências e apresentar os resultados das pesquisas concluídas durante o período de outubro a dezembro de 1993, em parceria com o arqueólogo José Luis dos Santos Peixoto (ver Oliveira & Peixoto, 1993). Destinou-se a implementar os Estudos de Impacto Ambiental sobre o traçado do Gasoduto Bolívia-Brasil no Estado de Mato Grosso do Sul, conforme as exigências da legislação brasileira de proteção ao patrimônio cultural, através da atuação decisiva do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), 14ª Coordenação Regional e 11ª Sub-Regional II. É necessário explicar que o Gasoduto Bolívia-Brasil, empreendimento ainda não concluído, destina-se ao transporte de gás natural proveniente da Bolívia até os Estados de Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, totalizando cerca de 3.000 km de extensão. No Mato Grosso do Sul sua extensão será de 702 km, em sua maior parte próxima à linha da rodovia BR 262, que liga o município de Corumbá ao de Três Lagoas. Será construído com dutos de aço carbono de 28" de diâmetro que serão enterrados numa vala de, no mínimo, 1 x 1,5 m. Terá uma faixa de 20 m de largura onde serão desenvolvidos os serviços necessários à sua construção e, posteriormente, à sua manutenção. Seu monitoramento será feito 24 horas por dia através de satélite (Informativo do Gasoduto Bolívia-Brasil, 1993).

O trabalho foi financiado pela empresa Petróleo Brasileiro S. A. (PETROBRAS). Anteriormente a ele, havia sido elaborado, por outro profissional, um diagnóstico arqueológico para o Estado, embora sua avaliação não condissesse com a realidade regional, uma vez que trabalhos de campo não foram realizados. Por este motivo, a realização do trabalho ora apresentado justificou-se, dentre outras razões, pela constatação de que na época muito pouco se conhecia sobre a Arqueologia sul-matogrossense; se bem que, os poucos trabalhos existentes, particularmente para a região do Pantanal, acrescidos da bibliografia histórica e etnológica regionais, indicassem uma grande potencialidade de Mato Grosso do Sul quanto à ocorrência de sítios arqueológicos, destacadamente de culturas indígenas pretéritas, por toda a extensão da dutovia. Em função dessa realidade, eram maiores os riscos de destruição do patrimônio arqueológico do Estado durante a execução do empreendimento, uma vez que esse patrimônio era, em grande parte, desconhecido e não poderia ser acusado previamente sem o necessário levantamento realizado através de trabalhos de campo.

Nesta perspectiva, foi elaborado um projeto de pesquisa com os seguintes objetivos: 1º) localizar, identificar e registrar os sítios arqueológicos constatados in loco ao longo do traçado do gasoduto ou em áreas próximas a ele; 2º) avaliar o estado de conservação dos sítios; 3º) determinar as áreas que demandam maior ou menor atenção devido ao impacto da dutovia nas mesmas; e 4º) estabelecer prioridades e estratégias, propor medidas mitigadoras e/ou compensatórias, para que sejam tomadas as providências necessárias para a preservação e/ou salvamento do patrimônio arqueológico.

A área de estudo compreende o trecho do traçado desde o km Zero do gasoduto, no município de Corumbá, fronteira do Brasil com a Bolívia, até o km 350, no município de Terenos, abrangendo grosso modo dois ambientes distintos: o Pantanal (km Zero-260) e o Planalto da Borda Ocidental da Bacia do Paraná (km 260-350). Segundo o Gasoduto Bolívia-Brasil: Estudos de Impacto Ambiental – EIA (1993), a área do Pantanal abrange três macro-unidades ambientais: "Pantanal" (km Zero-210), "Morraria de Urucum" (km 10-50) e "Depressão do Alto Paraguai" (km 130-180 e km 210-260). A área do Planalto da Borda Ocidental da Bacia do Paraná (km 260-350), por sua vez, corresponde a ¾ da macro-unidade ambiental homônima (km 260-380). Esta subdivisão foi feita "com base em dados observados em imagens de satélite e em informações bibliográficas referentes à geologia, à geomorfologia, aos solos e à vegetação" (Gasoduto Bolívia-Brasil: Estudos de Impacto Ambiental – EIA, 1993, v. 2/4, p. 5-1). Nota-se que algumas macro-unidades ambientais estão contidas, total ou parcialmente, em outras maiores. O trecho que compreende desde o km 301 ao km 702 foi estudado pelo arqueólogo Gilson Rodolfo Martins e sua equipe.

De momento, espera-se que as experiências e os resultados aqui apresentados, somados a outros trabalhos publicados nestas Atas do Simpósio, também possam contribuir para a realização de futuros trabalhos de consultoria em Arqueologia, sobremaneira nos casos em que os empreendimentos sejam semelhantes ao do Gasoduto Bolívia-Brasil.

Procedimentos metodológicos

Nos casos em que trabalhos como este são realizados, as estratégias de levantamento arqueológico devem ser compatíveis, pertinentes e adequadas aos objetivos propostos, bem como ao tempo disponível para a execução dos trabalhos. Isso porque muitas vezes profissionais (e empreendedores) são chamados um pouco tarde para aplicar metodologias mais refinadas, o que evidentemente não serve de justificativa para trabalhos de baixa qualidade.

Neste caso particular, para a definição das estratégias de levantamento arqueológico foram aproveitadas basicamente as experiências adquiridas pelo Programa Arqueológico do MS - Projeto Corumbá, que propiciaram um indispensável conhecimento sobre os tipos de sítios arqueológicos que ocorrem na região do Pantanal Matogrossense. Contudo, também foram úteis nesta etapa dos trabalhos, experiências de outros arqueólogos, especialmente daqueles que recorreram a um levantamento probabilístico, dentre os quais Hilbert et al. (1993) [através das aulas de levantamento arqueológico junto ao Mestrado em Arqueologia da PUCRS], Neves (1984) e Redman (1979).

Decidiu-se primeiramente percorrer todo o traçado do gasoduto, exceto as partes do terreno em que as condições ambientais impossibilitassem o acesso e o trânsito por parte dos pesquisadores, priorizando os sítios arqueológicos evidenciados na superfície dos terrenos. Para tanto, entendeu-se por sítio arqueológico qualquer local que apresentasse evidências materiais da presença ou atividade humana pretérita (independentemente de sua classificação funcional), onde o termo pretérito não necessariamente se restrinja a tempos pré-históricos.

A utilização de sondagens pedológicas, a partir de espaçamentos regulares, foi proposta, em princípio, para pontos designados na literatura arqueológica, etnológica e histórica ou através de informantes, desde que estivessem em áreas favoráveis a assentamentos humanos, não apresentassem visibilidade das evidências arqueológicas e realmente estivessem dentro da área de estudo delimitada ou em suas proximidades. No entanto, durante os trabalhos de campo não foi necessário recorrer a esta técnica.

O pressuposto básico para a definição da estratégia de levantamento arqueológico foi entender o traçado do gasoduto como um transect que atravessa uma grande área, compreendida por diferentes ambientes, constituindo uma verdadeira linha de percurso a ser esquadrinhada, isto é, uma linha de caminhamento orientada. Nesta perspectiva, foi delimitada como área de pesquisa a faixa de serviço do gasoduto, incluindo, no mínimo, mais 40 m de cada lado, totalizando assim 100 m de largura. Em segmentos com considerável densidade de sítios arqueológicos foi necessário ampliar a largura da área de levantamento, delimitando uma área piloto de acordo com a realidade local, com o propósito primeiro de fornecer subsídios à orientação de possíveis desvios do traçado do gasoduto, em função da preservação do patrimônio arqueológico.

Faz-se oportuno esclarecer que metodologias como esta são válidas especialmente para empreendimentos como dutovias, rodovias e ferrovias, onde se tem uma linha de caminhamento orientada, e não em áreas de empreendimentos com recortes naturais da paisagem, como é o caso de hidrelétricas.

O percurso do traçado foi precedido pelo estudo detalhado das correspondentes cartas topográficas do exército (1: 100.000) e das cartas de traçado do Gasoduto Bolívia-Brasil (1: 50.000). Também foi indispensável o estudo aerofotogramétrico do traçado através de imagens de satélite Landsat 5 (1: 100.000) e, em parte, de fotografias aéreas, em sua maioria datadas de 1966 (1: 60.000), bem como da bibliografia referente ao meio ambiente. O uso desses recursos foi fundamental para a revelação dos aspectos físicos da área a ser percorrida, incluindo, em algumas ocasiões, sítios arqueológicos. Possibilitou conhecer com antecedência características da área a ser estudada, tais como: vias de acesso, sedes de fazendas próximas à dutovia, relevo, tipo de solos, afloramentos rochosos, distância do traçado em relação ao nível das águas próximas, vegetação, diques lacustres, diques fluviais, diques marginais, terraços fluviais etc. Trata-se de uma metodologia que também utiliza variáveis ambientais para a detecção de bens arqueológicos em áreas pouco conhecidas, tendo por base a interdisciplinaridade. Mas ela somente foi possível porque os autores já dispunham de estudos anteriores sobre os ambientes a serem percorridos, especialmente para a porção do Pantanal, os quais possibilitaram, posteriormente, a conclusão de suas respectivas dissertações de mestrado (vide Oliveira, 1995 e Peixoto, 1995).

Os trabalhos de campo ocorreram durante o mês de outubro de 1993, tendo sido necessário realizar cerca de 250 horas de levantamento arqueológico, numa média de, no mínimo, 12 km diários. Antes de percorrer um determinado trecho do traçado, realizavam-se novos estudos sobre o meio ambiente físico, no intuito de planejar as atividades, detectar as vias de acesso e identificar áreas onde, em nível de hipótese, são mais prováveis a ocorrência e a visualização de sítios arqueológicos pré-históricos ou históricos: áreas próximas a cursos d’água, as que tiveram o solo revolvido para cultivo, as erodidas (com voçorocas por exemplo) e aquelas áreas com afloramentos rochosos. Não raras vezes foi preciso contar com um guia da região para orientar os pesquisadores sobre as vias de acesso ao trecho a ser levantado, principalmente para a região do Pantanal. Contudo, não se deve pensar que somente as áreas que hipoteticamente apresentavam maiores probabilidades de se encontrar sítios arqueológicos foram as percorridas. Como já foi dito anteriormente, mas vale a pena lembrar novamente, foi feita a opção inicial por percorrer todo o traçado da dutovia. Entretanto, quando se levantam variáveis que dizem respeito à complexidade dos sistemas sócio-culturais inerentes ao levantamento de bens arqueológicos, constata-se que raramente uma metodologia, como a utilizada, poderá detectar a totalidade dos sítios existentes numa área. Logo, a estratégia de levantamento arqueológico empregada para este trabalho não teve a pretensão de ser a exceção.

A complementação dessa metodologia deu-se, essencialmente, através de uma pesquisa bibliográfica exaustiva sobre os trabalhos arqueológicos realizados anteriormente nas diversas esferas ambientais do trecho Corumbá-Terenos. Dentre os principais, merecem destaque os de Martins (1987), Passos (1975) e Schmitz (1993). Sem embargo, realizou-se ainda um estudo bibliográfico sobre a história e a etnologia das áreas a serem percorridas, fundamentalmente em obras como Corrêa Filho (1969), Loukotka (1968), Nimuendajú (1981) e Susnik (1972 e 1978). Fichas de sítios arqueológicos cadastrados junto ao IPHAN também foram utilizadas. No entanto, por mais exaustivo que fosse o levantamento bibliográfico, não seria possível a partir dele conhecer preditivamente a realidade arqueológica da região, muito menos avaliar o impacto da dutovia sobre o patrimônio arqueológico de Mato Grosso do Sul, uma vez que se tratava de uma região ainda pouco pesquisada.

Em campo, os sítios arqueológicos identificados foram plotados nas cartas de traçado com auxílio de um GPS (Sistema de Posicionamento Global), documentados fotograficamente e registrados previamente em uma ficha de registro de sítios arqueológicos elaborada para a ocasião dos trabalhos e adequada às especificidades regionais, tendo como base a proposta de Wüst, Lima & Neves (1989). Nos sítios arqueológicos também foram realizadas coletas de material de superfície, evitando maiores intervenções que pudessem comprometer a incolumidade dos estratos arqueológicos e com o propósito de viabilizar futuros estudos que pudessem contribuir ao conhecimento da Arqueologia regional. Os sítios localizados através de levantamento bibliográfico também foram plotados nas cartas de traçado, desde que estivessem localizados nas áreas por elas abrangidas.

Em laboratório, os sítios arqueológicos foram definitivamente plotados nas respectivas cartas de traçado e descritos igualmente nas fichas de registro. Em ambos os casos receberam uma sigla específica utilizada para designá-los, obedecendo à seguinte seqüência: sigla do Estado, sigla da sub-bacia hidrográfica e ordenação numérica. Para a identificação das sub-bacias hidrográficas utilizou-se o Referencial Hidrográfico de Mato Grosso do Sul (1990). Todo o material recolhido dos sítios arqueológicos foi devidamente limpo, averiguado, catalogado e depositado nas instalações do Instituto Anchietano de Pesquisas para posteriores estudos.

Vale a pena mencionar ainda que a participação de técnicos da PETROBRAS em algumas atividades de campo foi importante para que, através deles, os empreendedores tomassem conhecimento dos trabalhos realizados e, principalmente, dos tipos de sítios arqueológicos encontrados, da sua importância e das avaliações a serem feitas para sua proteção. Isso porque, muitas vezes, empreendedores supõem aprioristicamente que somente grandes monumentos arqueológicos, a exemplo das pirâmides egípcias, merecem ser preservados. Por isso, em certas situações, é preciso que os pesquisadores desmistifiquem algumas idéias equivocadas que se têm a respeito da Arqueologia, muitas das quais veiculadas pela mídia.

Resultados dos trabalhos de levantamento arqueológico

Constataram-se in loco 41 aterros com vestígios de ocupação cerâmica, em sua maioria conservados e situados na planície de inundação do Pantanal. São facilmente visualizados pela densa cobertura vegetal que os destaca nos campos, justificando as denominações regionais de capões-de-mato e cordilheiras, sendo igualmente localizados através da aerofotogrametria. Atualmente é possível afirmar que a tecnologia cerâmica das populações indígenas que ocuparam esses aterros pertencem a uma nova tradição denominada Pantanal. Em Oliveira (1996) há maiores informações sobre a ocupação indígena da planície de inundação do Pantanal, inclusive a respeito dos aterros.

Aqui cabe uma explicação: cordilheiras são elevações do terreno que separam lagoas, em sua maioria, temporárias – são formações areno-argilosas com 1 a 2 m de altura, caracterizadas por uma densa vegetação que as destaca na paisagem como verdadeiras ilhas de vegetação, podendo ser comumente alongadas; capões-de-mato, por sua vez, são semelhantes às cordilheiras, distinguindo-se dessas basicamente pelo fato de apresentarem formas circulares e subcirculares, muitas vezes de tamanho menor e não necessariamente separando lagoas.

O material coletado da superfície desses sítios geralmente são fragmentos de vasilhas cerâmicas, restos de alimentação (basicamente ossos de répteis e mamíferos, vértebras de peixes e conchas de moluscos) e ossos humanos. Raramente encontrou-se material lítico lascado ou polido, pontas de flecha ósseas e contas de colar feitas de conchas de moluscos.

Foram observadas três áreas onde ocorrem aterros: a primeira (km 10-35) compreende a área de influência da Lagoa do Jacadigo; a segunda (km 50-55) corresponde ao rio Verde e adjacências; e a terceira (km 75-130) está inclusa na fazenda Bodoquena, localizada nas sub-regiões de Nabileque e Miranda, que possui 203.828 ha de terras utilizadas para atividade de pecuária extensiva de corte.

No segmento correspondente ao Planalto da Borda Ocidental da Bacia do Paraná (km 260-350) foram identificados dois sítios arqueológicos, sendo um abrigo-sob-rocha e um sítio lítico a céu aberto. O primeiro, sítio MS-MA-37 (UTM 7740000-640500), encontra-se conservado e localiza-se na Serra do Paxixi, município de Aquidauana, na localidade da Fundação Centro Educacional Rural de Aquidauana (CERA), onde ocorrem isoladas figuras rupestres em branco e isolados petroglifos, ambos com motivos zoomórfos. Encontra-se a 8,7 km de distância da dutovia e foi investigado apenas para se conhecer como se apresentam os abrigos-sob-rocha que ocorrem nessa região serrana. O segundo, sítio MS-PA-01 (UTM 7723700-692410), situa-se numa pequena colina, próximo a um córrego intermitente onde aflora basalto, a 200 m da dutovia, estando parcialmente destruído pela ação antrópica recente. Trata-se de uma oficina lítica caracterizada principalmente por material de refugo em arenito silicificado vermelho: núcleos, seixos lascados, lascas unipolares (com córtex), lascas unipolares secundárias e lascas unipolares secundárias com retoque.

Em nenhum desses segmentos foi encontrado qualquer sítio arqueológico histórico.

Avaliação do impacto sobre o patrimônio arqueológico

O segmento do Pantanal (km Zero-260) corresponde à área de maior risco de destruição do patrimônio arqueológico, devido à grande densidade de aterros identificados ao longo dos primeiros 350 km do traçado do gasoduto e proximidades, especialmente na área abrangida pelo rio Verde (km 50-55) e parte da fazenda Bodoquena (km 80-l20). Esses sítios, em sua maioria, encontram-se conservados e devem ser preservados. Nesta ótica, cada aterro deve ser entendido como parte indispensável de um conjunto de dados materiais culturais que se consolidou ao longo de gerações, constituindo um importante registro para a história quaternária do homem no continente sul-americano. Tal história, por sua vez, ainda está longe de ser amplamente conhecida.

Ressalta-se ainda que é errôneo e apriorístico interpretá-los como simples réplicas de um tipo de sítio arqueológico, como se todos os aterros apresentassem um único conteúdo ou repetidas informações culturais. Portanto, para cada aterro a ser atingido pela construção do gasoduto será necessário o devido e antecipado salvamento arqueológico, sendo de fundamental importância advertir para a existência de um aterro conservado, o sítio MS-MA-22 (UTM 7826850-493970), que se encontra exatamente sobre a linha do traçado do gasoduto, no km 103. Também é importante deixar claro que, em princípio, todos os capões-de-mato e cordilheiras que ocorrem no segmento do Pantanal devem ser entendidos, para fins de diagnóstico arqueológico, como sítios arqueológicos, no caso, aterros.

Nas áreas onde ocorrem os aterros, a possibilidade de ser encontrado algum sítio arqueológico enterrado no solo é praticamente nula. Isso porque esses sítios provavelmente configuram-se como os únicos lugares protegidos das cheias periódicas que atingem as porções mais baixas do segmento do Pantanal. Dessa forma, podem ser considerados como os únicos pontos favoráveis a assentamentos humanos em áreas onde as demais porções do terreno permanecem periodicamente inundadas. Os recentes estudos de Oliveira (1996) comprovam que, no caso do grupo étnico Guató (lingüisticamente Macro-Jê e último remanescente de todos os grupos que ocuparam a planície de inundação desde antes da Conquista Ibérica da região platina), os aterros são ocupados especialmente durante as cheias periódicas que atingem a planície de inundação, quando se torna possível a mobilidade em áreas até então inacessíveis através da canoa.

Alguns dos aterros localizados nos segmentos km 50-60 e km 105-120 não foram devidamente investigados por encontrarem-se em pontos de difícil acesso, dadas as condições ambientais desfavoráveis. No entanto, poderiam ser facilmente localizados através de fotografias aéreas ou imagens de satélite em escala igual ou inferior a 1: 60.000, recursos estes não colocados a disposição dos pesquisadores por parte do empreendedor, apesar de solicitados com antecedência.

Na região dos relevos residuais do planalto de Urucum (km 10-50), inclusos na área do Pantanal (km Zero-260), a bibliografia examinada indica um número considerável de sítios cerâmicos a céu aberto e igualmente sítios com inscrições rupestres. Entretanto, não foi constatada a presença de algum sítio arqueológico que ainda não tivesse sido registrado anteriormente. Assim, a probabilidade de destruição de algum sítio ainda desconhecido é mínima, porque nesta parte do traçado do gasoduto os solos são geralmente rasos e cascalhentos, o que facilita a visualização de possíveis sítios e dificulta a existência de algum abaixo da superfície dos terrenos.

Nos últimos 70 km do segmento do Pantanal, no município de Miranda (km 190-260), os riscos de destruição de sítios arqueológicos são maiores que nas áreas anteriores, em conseqüência da grande quantidade de pastagens artificiais e, principalmente, de matas naturais que dificultam a visualização dos remanescentes materiais de culturas passadas. Muitas vezes a própria dificuldade de acesso e mobilidade nessas áreas impossibilita a identificação dos sítios. Esta avaliação também justifica-se através da literatura etnológica, que aponta esse trecho e/ou proximidades como uma área de ocupação indígena, notadamente durante o período colonial, por populações lingüisticamente Arawak e Tupi-Guarani.

O Planalto da Borda Ocidental da Bacia do Paraná (km 260-350) é área de menor risco de destruição ao patrimônio arqueológico, em relação ao Pantanal (km Zero-260). Dos dois sítios identificados apenas o MS-PA-01 encontra-se próximo do gasoduto. As possibilidades de destruição do patrimônio arqueológico nessa área restringem-se a sítios que possam estar abaixo da superfície dos terrenos ou em áreas de pastagens e matas naturais onde há pouca visibilidade dos remanescentes culturais. A própria etnologia também justifica esta idéia, porque indica o médio curso do rio Aquidauana e/ou proximidades como uma área de ocupação Terena/Layana.

Verificou-se que o impacto da dutovia sobre o trecho Corumbá-Terenos (km Zero-350) limita-se basicamente à limpeza do terreno para a construção da faixa de serviço de 20 m de largura e à escavação das valas de, no mínimo, 1 x 1,5 m, onde serão enterrados os dutos de 28" de diâmetro. Durante essas atividades haverá grande circulação de pessoas e maquinários diversos pela área a ser impactada. Neste sentido, propõem-se as seguintes medidas preventivas e/ou mitigadoras a serem adotadas pela PETROBRAS, empresa responsável pelo empreendimento:

1) Viabilização de estudos que possibilitem desviar o traçado do gasoduto dos sítios arqueológicos identificados, especialmente do sítio MS-MA-22. Caso contrário, tornar-se-á indispensável propiciar as condições necessárias para o conseqüente salvamento arqueológico;

2) Em caso de desvio do traçado do gasoduto, em função da preservação, ou não, do patrimônio arqueológico, torna-se imprescindível o acompanhamento de outro parecer arqueológico favorável;

3) Mapeamento de todos os capões-de-mato e cordilheiras dos segmentos km 50-60 e km 95-120, numa faixa mínima de 1.000 m de cada lado da área de serviço. Este trabalho possibilitará detectar possíveis aterros que não foram identificados em campo nessas partes do traçado. Justifica-se esta avaliação em virtude das condições ambientais desfavoráveis ao acesso e à mobilidade dos pesquisadores nos referidos segmentos. Outrossim, porque o empreendedor não tornou possível contar com imagens de satélite ou fotografias aéreas numa escala igual ou menor que 1: 60.000, que tornam mais segura a identificação dos sítios arqueológicos. Esta medida poderá também indicar possíveis desvios do gasoduto, de acordo com as especificidades técnicas do empreendimento e com o objetivo primeiro de evitar a destruição de aterros;

4) Plotação, nas correspondentes cartas de traçado, dos sítios que foram identificados em campo, bem como aqueles que foram arrolados pela pesquisa bibliográfica;

5) Divulgação, junto às empresas responsáveis pela construção da obra, da localização dos sítios arqueológicos e da necessidade de evitar a sua depredação por parte de quaisquer pessoas participantes dos trabalhos, que por ventura venham a querer coletar material arqueológico ou perturbar as camadas dos sítios arqueológicos. Com isso objetiva-se proteger os sítios arqueológicos principalmente dos caçadores de tesouros ou enterros;

6) Acompanhamento de um arqueólogo em cada frente de trabalho durante a construção do gasoduto. Isso para que, caso se encontre, durante a escavação da vala, algum sítio não previamente identificado, se possa realizar o devido resgate dos remanescentes arqueológicos. Nesta perspectiva, observa-se um impacto positivo da dutovia, uma vez que ela também possibilitará melhor conhecer a Arqueologia da região e, dificilmente, sua vala destruirá grande parte de um sítio arqueológico;

7) Quando do contato com os proprietários e moradores das localidades a serem atingidas diretamente pelo empreendimento, torna-se necessário participar a eles, através de um informativo (a exemplo do Informativo do Gasoduto Bolívia-Brasil, 1993), a ocorrência de sítios arqueológicos ao longo do traçado do gasoduto e a importância de sua preservação;

8) Colocação de placas de advertência nos sítios situados num raio mínimo de 200 m de distância de cada lado da faixa de serviço do gasoduto, informando que aquele local é um sítio arqueológico, sendo proibida sua depredação.

Em complementação a essas medidas preventivas e mitigadoras, propuseram-se alguns procedimentos básicos para um possível salvamento arqueológico, seja para o sítio MS-MA-22, seja para quaisquer outros aterros que possam ser detectados no mapeamento dos capões-de-mato e cordilheiras dos segmentos km 50-60 e km 95-120. Os procedimentos propostos não devem ser entendidos como uma camisa-de-força para um eventual salvamento arqueológico, mas considerações a serem ponderadas na elaboração do projeto de salvamento. São os seguintes:

1) Objetivos: Resgatar e analisar de forma sistemática os remanescentes culturais evidenciados na área do(s) aterro(s) a ser destruída pela construção do gasoduto, evitando ao máximo maiores intervenções nos estratos arqueológicos;

2) Delimitação da área: A escavação limitar-se-á à largura da área a ser atingida pela vala do gasoduto (1 m) acrescida de, ao menos, 50 cm de cada lado, totalizando assim uma trincheira de 2 m de largura que atravessará o(s) aterro(s), servindo desde então de vala para enterrar os dutos. Esta proposta somente terá validade caso não haja circulação de maquinário pesado nos limites do sítio, preservando-o para pesquisas futuras. A delimitação da área a ser escavada deverá ser preferencialmente antecedida dos respectivos serviços de topografia que precederão à construção das valas, pois o rastreador de satélites do sistema GPS apresenta uma pequena margem de erro de alguns poucos metros que, neste caso, pode ser crucial para os trabalhos de salvamento arqueológico. Durante os trabalhos de levantamento arqueológico na área do Pantanal (km Zero-260), foi realizado um croqui da área de dois sítios, visando embasar possíveis salvamentos e/ou desvios do traçado da dutovia. Faz-se necessário não restringir a escavação aos limites visíveis do(s) sítio(s), mas também escavar fora do aterro para verificar se ali existem evidências de ocupação ou atividade humanas pretéritas;

3) Procedimentos metodológicos: Os processos de resgate dos remanescentes culturais deverão estar de acordo com as características morfológicas do(s) aterro(s), principalmente quanto à extensão e à altura das camadas culturais. Em campo, será indispensável delimitar a trincheira a ser escavada e realizar o levantamento topográfico do(s) sítio(s). Para a escavação torna-se pertinente obedecer a níveis artificiais de 10 ou 5 cm até atingir a camada estéril do(s) sítio(s), coletando e documentando sistematicamente todas as evidências arqueológicas, restos faunísticos, sepultamentos e amostras de rochas, minerais, carvão, solo e pólen (atualmente penso ser mais pertinente realizar uma escavação através da decapagem dos níveis naturais dos aterros, apesar da dificuldade de identificá-los em muitos casos, e não a partir de níveis arbitrários de 5 ou 10 cm de espessura). Em laboratório, os materiais arqueológicos (cerâmico, lítico, ósseo e outros) deverão ser analisados de acordo com as normas padronizadas, buscando compreender as tecnologias evidenciadas nos remanescentes culturais. A análise das amostras de restos faunísticos, sepultamentos, rochas, minerais, carvão, solo e pólen será norteada por uma perspectiva interdisciplinar, tendo como objetivo último tratar da relação existente entre sociedades humanas e seus ambientes de vida (por exemplo, problemas pertinentes a assentamento e subsistência). A apresentação dos resultados, com as necessárias explanações das etapas dos trabalhos, deverá ser feita sob forma de relatório final a ser publicado em sua íntegra;

4) Duração dos trabalhos e recursos necessários: A duração dos trabalhos, o cronograma das atividades e os recursos materiais e humanos necessários serão apontados pelos arqueólogos designados para a realização do salvamento, caso este venha a ser necessário. Sugere-se que os trabalhos de campo sejam realizados preferencialmente no período da seca do Pantanal.

Considerações finais

Os dados apresentados comprovam a grande potencialidade de sítios arqueológicos, principalmente de culturas indígenas passadas, do Estado de Mato Grosso do Sul, especificamente da área de estudo aqui abrangida.

O segmento do Pantanal (km Zero-260) destaca-se com uma considerável quantidade de aterros, geralmente conservados e que se sucedem na planície de inundação. É possível inferir que o Pantanal constitui-se numa das regiões de maior concentração de sítios arqueológicos, notadamente de aterros, do território nacional. Sua relevância arqueológica dá-se, principalmente, pela incolumidade da grande maioria dos sítios ali existentes, e estes, por sua vez, devem ser indicadores de uma considerável densidade de populações indígenas que habitaram a região em tempos pretéritos. Por outro lado, constata-se a necessidade urgente de definição de estratégias para sua preservação, enquanto patrimônio cultural, devido a sua relevância para os estudos sobre a ocupação indígena da América do Sul, bem como para a história e a cultura da população sul-matogrossense.

Nota-se ainda que a construção do Gasoduto Bolívia-Brasil não ocasionará um grande impacto ao patrimônio arqueológico brasileiro se comparado a outros empreendimentos, como rodovias, ferrovias, hidrelétricas e hidrovias. Além dos impactos negativos abordados, possui um impacto positivo importante ¾ a vala construída para enterrar os dutos. Trata-se de um impacto de fundamental importância para o conhecimento da ocupação indígena pretérita de Mato Grosso do Sul. Também será importante para o conhecimento da geologia e geomorfologia regionais, que propiciará um melhor entendimento da história quaternária do Pantanal e do Planalto brasileiros, da qual fazem parte muitas sociedades humanas ainda pouco conhecidas ou praticamente desconhecidas.

A partir dos resultados obtidos torna-se crucial o cumprimento das medidas preventivas e mitigadoras apontadas neste trabalho, a fim de prevenir ou compensar a destruição do patrimônio arqueológico em questão.

Referências bibliográficas

CORRÊA FILHO, Virgílio. História de Mato Grosso. Rio de Janeiro : MEC/Instituto Nacional do Livro, 1969. 741 p. (Cultura Brasileira – Estudos, 2).

GASODUTO BOLÍVIA-BRASIL: ESTUDOS DE IMPACTO AMBIENTAL ¾ EIA. Rio de Janeiro : PETROBRAS/Engevix, 1993. 4 v.

HILBERT, Klaus P. K. et al. Levantamento Arqueológico da Praia de Imbé, RS. Relatório de Campo. Porto Alegre : Curso de Pós-Graduação em História –Área de Concentração em Arqueologia/PUCRS, 1993. (não publicado).

INFORMATIVO DO GASODUTO BOLÍVIA-BRASIL. Rio de Janeiro : PETROBRAS, 1993.

LOUKOTKA, Cestmír. Classification of South American Indian Languages. Los Angeles : Latin American Center of University of California, 1968. 453 p. (Reference Series, 7).

MARTINS, Gilson Rodolfo. Relatório de Registro dos Sítios Arqueológicos MS-AQ-01 e MS-AQ-02 no Município de Aquidauana, MS. Relatório de Pesquisa. Dourados : UFMS/CEUD, 1987. (não publicado).

NEVES, Walter A. A evolução do levantamento arqueológico na bacia do Alto Guareí, SP. Revista de Pré-História. São Paulo : Instituto de Pré-História da USP, v. 6, p. 225-234, 1984.

NIMUENDAJÚ, Curt. Mapa Etno-Histórico de Curt Nimuendajú. Rio de Janeiro : IBGE/Fundação Nacional Pró-Memória, 1981. 97 p.

OLIVEIRA, Jorge E. de, PEIXOTO, José Luis dos S. Diagnóstico de Avaliação do Impacto do Gasoduto Bolívia-Brasil ao Patrimônio Arqueológico do Estado de Mato Grosso do Sul: trecho Corumbá-Terenos (km Zero-350). Trabalho de consultoria científica em Arqueologia destinado à PETROBRAS S. A. Porto Alegre, 1993. 96 p. (não publicado).

OLIVEIRA, Jorge E. de. O impacto do Gasoduto Bolívia-Brasil ao patrimônio arqueológico do Mato Grosso do Sul. Histórica. Revista da Associação dos Pós-Graduandos em História da PUCRS. Porto Alegre : APGH-PUCRS, v. 1, p. 93-100, 1996.

OLIVEIRA, Jorge E. de. Os Argonautas Guató – aportes para o conhecimento dos assentamentos e da subsistência dos grupos que se estabeleceram nas áreas inundáveis do Pantanal Matogrossense. Dissertação (Mestrado em História, Área de Concentração em Arqueologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1995. 210 p.

OLIVEIRA, Jorge E. Guató – Argonautas do Pantanal. Porto Alegre : Edipucrs, 1996. 179 p. (Coleção "Arqueologia", 2).

OLIVEIRA, Jorge E. de. Levantamento arqueológico, para fins de diagnóstico de bens pré-históricos, em áreas de implantação de dutovias. In: CALDARELLI, Solange B. Atas do Simpósio Sobre Política Nacional do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural. Goiânia : Universidade Católica de Goiás – Instituto Goiânio de Pré-História e Antropologia/Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia, 1997. P. 28-33.

PASSOS, José Afonso de M. B. Alguns Petroglifos em Mato Grosso com apêndice sobre outros do Paraguai e Bolívia. Tese (Livre-Docência em História, Disciplina de Pré-História) – FFLCH, Universidade de São Paulo, 1975. 79 p.

PEIXOTO, José Luis dos S. A Ocupação Tupiguarani na Borda Oeste do Pantanal Sul-Matogrossense: Maciço do Urucum. Dissertação (Mestrado em História, Área de Concentração em Arqueologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1995. 127 p.

REDMAN, Charles L. Multistage, fieldword and analytical techniques. American Antiquity. v. 38, n. 1, p. 61-79, 1973.

REFERENCIAL HIDROGRÁFICO DE MATO GROSSO DO SUL. Campo Grande : Seplan-MS/Fiplan-MS/Coordenadoria de Geografia e Cartografia, 1990.

SCHMITZ, Pedro Ignacio. Programa Arqueológico do MS - Projeto Corumbá. In:

SCHMITZ, Pedro Ignacio (Org.). Trabalhos apresentados no VI Simpósio Sul-Riograndense de Arqueologia: Novas Perspectivas (PUCRS, 2 a 4 de maio de 1991). São Leopoldo : Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, 1993. 47 p. p. 40-47.

SUSNIK, Branislava. Dimenciones Migratorias y Pautas Culturales de los Pueblos del Gran Chaco y de su Periferia (Enfoque Etnológico). Suplemento Antropológico. Asunción : Universidad Catolica, n. 1-2, v. 7, p. 85-107, 1972.

SUSNIK, Branislava. Etnologia del Chaco Boreal y su periferia (siglos XVI y XVIII). Asunción : Museo Etnográfico "Andrés Barbero", 1978. 156 p. (Serie "Los Aborígenes del Paraguay", 1).

WÜST, Irmhild, LIMA, Tânia A., NEVES, Walter A. Ficha de registro de sítios arqueológicos. Brasília : Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Fundação Nacional Pró-Memória, 1989. (não publicado).


1er Congreso Virtual de Antropología y Arqueología
Ciberespacio, Octubre de 1998
Organiza: Equipo NAyA - info@equiponaya.com.ar
http://www.equiponaya.com.ar/congreso

Auspicia:


Buscar en esta seccion :