PESQUISA ARQUEOLÓGICA COMO FERRAMENTA NA MUSEALIZAÇÃO DE SOBRADO COLONIAL PAULISTA DO MUSEU DA ENERGIA- NÚCLEO DE ITU/SÃO PAULO
Ana Silvia Bloise (1)
Resumo:
O Museu da Energia da Fundação Patrimônio Histórico da Energia de São Paulo preserva edivulga um acervo que está relacionado à história da energia paulista e a um vasto universo de conhecimentos a ela inter relacionados. O museu foi concebido como um Programa da Fundação, que atua, através de uma política museológica comum, de maneira descentralizada, através dos núcleos museológicos implantados nos municípios de Itu, Rio Claro, Salesópolis, Jundiaí e na capital do estado. O Sobrado que abriga o Museu da Energia - Núcleo de Itu é um dos edifícios históricos mais importantes daquela cidade, construído em taipa, no século XVIII, foi, durante quase 100 anos, sede e agência de empresas de energia elétrica. Com a finalidade de restaurá-lo e revitalizá-lo foram feitas extensas pesquisas, entre os anos 1992 e 1999. Quando da realização do projeto do Museu da Energia - Núcleo de Itu, em 1998, decidiu-se por considerar o edifício em si mesmo um objeto museológico. Após um ano de atividades do Museu, avalia-se que a museografia da prospecção arqueológica, realizada no quintal do Sobrado em março de 1999, é um dos pontos de maior interesse espontâneo do público visitante. O presente artigo procura relatar esta experiência.
MUSEU DA ENERGIA
Apresentação
O Museu da Energia é um Programa permanente da Fundação Patrimônio Histórico da Energia de São Paulo. A Fundação Patrimônio Histórico da Energia foi criada em março de 1998, em conseqüência do processo de privatização do setor energético paulista, para garantir a preservação do rico patrimônio histórico e cultural vinculado às empresas de energia elétrica e de gás e disponibilizá-lo para a sociedade. Seu acervo, que reúne documentação arquivística, bibliográfica, museológica e arquitetônica, está vinculado à história da energia e a um vasto universo de conhecimentos a ela inter-relacionados: história empresarial, uso e desenvolvimento de tecnologias e processos de energia, desenvolvimento industrial e urbanização.
O Museu foi concebido para atuar em todas as unidades que compõem o patrimônio da Fundação, nos municípios de Itu, Jundiaí, Rio Claro, Brotas, Santa Rita do Passa Quatro, Salesópolis e na capital do estado de São Paulo. Sua ação se realiza, na prática, de maneira descentralizada, através dos núcleos regionais já em funcionamento ou em fase de implantação: Museu da Energia - Núcleo de Itu situado nos município de Itu, Museu da Energia/ Usina Parque de Salesópolis, situado no município de Salesópolis, Museu da Energia/Usina Parque de Corumbataí, situado no município de Rio Claro e Museu da Energia - Núcleo de Jundiaí, situado no município de Jundiaí e na sede da instituição, no bairro do Cambuci, capital paulista. O "fazer museológico" é visto como um processo continuo de aperfeiçoamento, alimentado por um lado pelo conhecimento científico e por outros pelos interesses detectados nas comunidades que dele participam e usufruem. O seu princípio de atuação está baseado em três aspectos a serem contemplados: a comunidade onde o Museu atua, o meio ambiente onde o mesmo se insere e o acervo da Fundação.
O universo deste o acervo era, antes da privatização, exclusivamente limitado a historia empresarial e tecnológica da eletricidade e do gás canalizado. Desde então tem sido realizado um trabalho para ampliar as coleções históricas, documentando principalmente o uso de outras fontes de energia importantes, utilizadas em nosso país, a partir de 1850.
Exposições
As exposições no Museu da Energia têm como princípio orientador: divulgar o acervo da Fundação e pesquisas a partir dele realizadas; incorporar elementos da história da energia regional ou local, através do uso de documentos históricos tradicionais e de registros orais ; incluir como tema o uso racional da energia e dos recursos ambientais, devido à sua grande relevância para a sociedade atual e para o nosso futuro global. A meta é propiciar a melhor interação do acervo com o visitante, de maneira intelectual, sensorial, motora ou emocional, levando-o a obter uma experiência pessoal positiva.
Desta maneira procura-se agregar ao ambiente das exposições o apoio de registros sonoros, maquetes, cenários, modelos, experimentos, jogos e brinquedos especialmente concebidos para tal. Ampliamos o conceito de objeto museológico. Partimos da idéia de que toda expressão material ou não do patrimônio histórico sob a guarda da Fundação poderia e deveria ser musealizada (BRUNO, 1998). Assim, no Museu da Energia - Núcleo de Itu, o Sobrado que abriga o Museu foi tratado como objeto museológico na concepção expositiva.
Educação no Museu da Energia
A partir da implantação de seus núcleos,o papel do Museu enquanto instrumento de educação informal vai sendo priorizado. A educação, neste contexto, é vista como a facilitação de aprendizados através de situações e vivências adquiridas no espaço do Museu ou através dele. O corpo docente das escolas públicas e privadas é incentivado a participar conosco do trabalho com os estudantes, fazendo com que a transdisciplinaridade e a contextualização preconizadas na Lei de Diretrizes e Bases - L.D.B. também possam ser exercidas e vivenciadas nos diferentes ambientes do Museu da Energia.
Participam diretamente deste trabalho o educador do núcleo, auxiliado por monitores/facilitadores e voluntários da terceira idade. Os monitores são estagiários que trabalham em conjunto com voluntários da terceira idade, todos moradores dos municípios onde se localizam os núcleos do Museu.
Várias formas de visitação e atividades paralelas já estão disponíveis a visitantes individuais e a grupos. Dentre elas destacamos as oficinas pedagógicas no Museu da Energia - Núcleo de Jundiaí e a pesquisa nas bibliotecas multimidia e videotecas localizadas em São Paulo, Jundiaí e Itu, especializadas na difusão dos temas História Regional, História da Energia, Energia e Meio Ambiente e Ciência básica da Energia.
HISTÓRICO DA OCUPAÇÃO DO SOBRADO DE ITU
O sobrado, que abriga atualmente o núcleo de Itu do Museu da Energia está situado à Rua Paula Souza, 669, no perímetro do sitio histórico da cidade de Itu, Estado de São Paulo. É um exemplar remanescente do ciclo econômico do açúcar, com planta e tipologia arquitetônica características do período, sendo datado de 1847 conforme atesta inscrição existente na bandeira da porta principal (Zanettini, 1999:2). Entre 1847 e 1908 foi utilizado como residência da família Corrêa Pacheco. A partir daquele ano sua história estaria ligada à das empresas distribuidoras de energia elétrica, tendo abrigado o escritório da Companhia Ituana de Força e Luz (primeira companhia de geração e distribuição energia elétrica para a cidade e arredores). Em 1927 tornou-se escritório e agência local da empresa The San Paulo Tramway Light & Power Co. Ltd. Em 1981 este edifício foi incorporado ao patrimônio da empresa Eletropaulo, empresa estatal sucessora da Light , pertencente ao governo do estado de São Paulo. Em 1994 foi inaugurado no local um pequeno Museu da Eletricidade da Eletropaulo por iniciativa do Departamento de Patrimônio Histórico daquela empresa. Em 1998 o sobrado é doado à Fundação Patrimônio Histórico da Energia de São Paulo pela empresa Bandeirante Energia S.A.. Em 14 de dezembro de 1999 foi inaugurado no sobrado o Museu da Energia - Núcleo de Itu ( Ferraz, 2000: 25-26).
Fachada atual do Museu da Energia - Nucleo de Itu. Foto: Salomon Cytrinowicz
A RESTAURAÇÃO DO SOBRADO
A primeira etapa deste processo foi iniciada em 1992, quando foi realizado um projeto de restauração e revitalização, de acordo com um programa de necessidades que já contemplava um museu no pavimento superior. Deste trabalho, realizado pela firma Aresta Arquitetura e Restauro Ltda. com apoio técnico na área de prospecção pictórica da firma Júlio Moraes Conservação e Restauração SC.Ltda. resultou um minucioso levantamento métrico-arquitetônico das técnicas construtivas e das decorações das paredes.
Quando da incorporação do imóvel ao patrimônio da Fundação, foi dada prioridade à sua restauração e revitalização, tendo em vista a constituir o primeiro núcleo do Museu da Energia. O embasamento para tal projeto surgiu de intensas pesquisas de fontes documentais tradicionais, s quais somaram-se depoimentos orais e prospecções arquitetônicas e arqueológicas (Ferraz, 1999: 6).
Os trabalhos de restauração arquitetônica foram conduzidos pelos arquitetos Edméa Fioretti Mateu e Lucas Otávio Rota e equipe do Programa de Patrimônio Arquitetônico da Fundação. Revelara-se no trabalho muitos detalhes da história arquitetônica do edifício: sua transformação em sobrado, possivelmente no ano de 1847; a taipa como principal técnica construtiva do imóvel, registrada em suas paredes através de diferentes variantes, da taipa de pilão a vários tipos de pau - a - pique (História ..., 2000: 11).
A prospecção arqueológica foi realizada em março de 1999, pelo arqueólogo Paulo Zanettini e equipe. Através de sondagens no jardim e abertura de trincheiras no interior do edifício, surgiram outras informações importantes na reconstrução da história do Sobrado, como a descoberta de indícios de outros dois jardins, subjacentes ao existente na época da escavação. Áreas de descarte de lixo, de antigos quintais, revelaram-nos dados importantes sobre materiais construtivos, hábitos alimentares e uso de utensílios domésticos. Evidenciaram-se vestígios de antigas ocupações que podem recuar, talvez, ao século XVII. Das áreas prospectadas foram coletados mais de 3 mil e oitocentos artefatos , dentre fragmentos a objetos praticamente inteiros : cerâmicas, elementos construtivos, vidros , metais , conchas e ossos , dentre outros (Zanettini, 1999).
Em síntese, o trabalho arqueológico se constituiu em valioso material para a museologia do Sobrado: surgiram testemunhos de sua história construtiva, evidências e provas de seus diferentes usos no tempo, formularam-se hipóteses sobre usos e costumes de seus moradores. Existe ainda um grande potencial para novos trabalhos interdisciplinares.
O jardim redescoberto durante a prospecção arqueológica
no Sobrado do Museu, 1999. Foto Paulo E.Zanettini.
A MUSEALIZAÇÃO DO SOBRADO
Quando da realização do projeto museológico, decidiu-se que o edifício não seria visto apenas como invólucro material das exposições e atividades a serem oferecidas pelo Museu, mas em si mesmo como um objeto museológico. Objeto a ser conhecido, possibilitando a fruição de seus componentes estéticos, o estudo e a redescoberta de sua história que, tanto no passado como no presente, está vinculada à história da energia. Dentre os vários aspectos deste processo de musealização selecionamos alguns mais diretamente relacionados ao tema deste trabalho.
Em diversos ambientes do edifício podemos encontrar testemunhos de sua história: a memória arquitetônica está materializada nas paredes das salas, onde estão visíveis trechos dos diferentes tipos de taipa (3).No piso térreo, um esteio feito de tronco de madeira talhada revela uma evidência da transformação da casa em sobrado, em meados do século XIX. Duas maquetes mostram o método construtivo tradicional da taipa de pilão e do pau a pique. (História...2000). A "Sala Dourada", que serviu no passado como salão social para receber visitas, foi inteiramente restaurada (4) e mobiliada. Nas suas paredes o visitante usufrui de um exemplo das pinturas murais e adornos que caracterizaram a decoração de residências na segunda metade do século XIX.
A Sala Dourada do Museu da Energia. Foto Leandro Lopes.
O que apresentar sobre os antigos habitantes do Sobrado? Um livro artesanal intitulado "O sobrado e suas histórias" pode ser manuseado pelos visitantes do Museu. Fartamente ilustrado, representa o resultado das pesquisas realizadas em cartórios, bibliotecas, museus e arquivos e conta um pouco da história dos personagens, ilustres e anônimos, que por lá passaram.
Na museografia era preciso ainda evidenciar os resultados das pesquisas arqueológicas. Assim do material arqueológico foi selecionado um conjunto de 87 itens, entre objetos e fragmentos, representando as principais tipologias. O material está exposto em duas vitrines-baú que se encontram normalmente fechadas e às escuras. A intenção é que o visitante ao abri-las "redescubra" os objetos, podendo sentir um pouco da emoção de uma verdadeira descoberta arqueológica.
No exterior do edifício, o trecho do antigo jardim, datado provavelmente da segunda metade do século XIX, agora está visível novamente. Ele encontra-se preservado, recoberto por um piso de vidro transparente, despertando a curiosidade do visitante que por ele caminha. O reservatório de água no centro do espaço dá margem a indagações: teria sido uma fonte ou um reservatório para peixes ?
Grupo de estudantes da pré-escola no jardim do Sobrado . Foto Salomon
Cytrinowicz.
Era necessário ainda que o material arqueológico, enquanto resultado de um trabalho, estivesse ligado à metodologia de pesquisa empregada, no entanto as sondagens realizadas no quintal não puderam ser preservadas. A solução encontrada pela curadora da exposição, Glaucia Amaral, foi a criação de uma maquete que representa, em tamanho próximo do natural, com diferentes tipos de terra, o perfil estratigráfico de uma das sondagens. Um espetáculo de luz e som, cujo tema é o Sobrado, apresenta com sua linguagem multimídia, outras informações que auxiliam o visitante na compreensão deste processo.
Ao centro, livro artesanal " O sobrado e suas histórias".
Ä direita maquete do perfil estratigráfico de uma das sondagens realizadas.
Ao fundo as paredes revelam diferentes momentos da história arquitetônica
daquela edificação.
Foto Salomon Cytrinowicz.
RESULTADOS
A visitação realizada ao Museu da Energia - Núcleo de Itu, tem trazido resultados positivos. No ano de 2000 mais de 7 mil pessoas visitaram o Museu, sendo que mais da metade deste número foram estudantes que participaram de visitas monitoradas. Tais visitas percorrem não apenas a exposição intitulada "História, Energia e Cotidiano" mas exploram o próprio sobrado como documento de uma época de nossa história.
Com este trabalho educativo são construidas as relações entre o público e um acervo que retrata as profundas transformações da nossa sociedade. Acreditamos que o interesse demonstrado pelos artefatos encontrados no quintal do Sobrado e pelo seu antigo jardim poderá levar o visitante a reconhecer diferenças, perceber processos, identificar-se através desta herança (BRUNO, 1998). É uma oportunidade ainda para melhor compreender o papel do arqueólogo e da arqueologia como fonte de informação e produção de conhecimento sobre nossa história cotidiana e cultura regional.
Agradecimentos:
A Renato de Oliveira Diniz, historiador e superintendente de Gestão Técnica da Fundação pelo permanente incentivo e orientação ; a Ana Elisa Antunes Viviani pelos comentários e sugestões ao texto, ambos da Fundação Patrimônio Histórico da Energia de São Paulo.
NOTAS
1 - Ana Silvia Bloise é museóloga coordenadora do Programa de Museologia da Fundação Patrimônio Histórico da Energia de São Paulo. museu@fphesp.org.br
2 - Itu é uma instância turística paulista cuja história está intimamente ligada aos ciclos econômicos do açúcar e do café e à gênese do movimento republicano no Brasil.
3 - A taipa é um método construtivo que caracteriza grande parte das construções paulistas, em período anterior à difusão dos tijolos cerâmicos.
4 - Restauração pictórica realizada por José Mauro de Mello Ribeiro.
Bibliografia:
BLOISE, Ana Silvia. Museu da Energia: uma utopia torna-se realidade. Memória Energia, São Paulo, n. 27, p.81-91, 2000.
BRUNO, Maria Cristina Oliveira. Museologia para professores: os caminhos da educação pelo patrimônio. São Paulo: Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza, 1998. 112 p. Apostila de curso.
FERRAZ, Vera Maria de Barros. História e Energia. In: História, energia e cotidiano:exposição inaugural do museu da energia - Núcleo de Itu - 14 de dezembro de 1999. São Paulo: 1999. p. 5-6.
FERRAZ, Vera Maria de BARROS. Museu da Energia - Núcleo de Itu. In: História & Energia 8: patrimônio arquitetônico da Fundação Patrimônio Histórico da Energia de São Paulo. 2.ed. São Paulo: Fundação Patrimônio Histórico da Energia de São Paulo, 2000, p. 22-7.
HISTÓRIA , ENERGIA E COTIDIANO:exposição inaugural do museu da energia - núcleo de Itu - 14 de dezembro de 1999. 2 ed. São Paulo: 2000, 46 p.
ZANETTINI, Paulo Eduardo. Prospecções arqueológicas no quintal do Museu da Energia itu - São Paulo. São Paulo: Fundação Patrimônio Histórico da Energia de São Paulo, 1999, 58 p. Relatório. Buscar en esta seccion :