EDUCAÇÃO PATRIMONIAL, ARQUEOLOGIA HISTÓRICA E MEMÓRIA EM SÃO MARTINHO DA SERRA, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL.
André Luis R. Soares (1)Saul Eduardo Seiguer Milder (2)
Neli Teresinha Galarce Machado (3)
Cynthia Gindri Haigert (4)
Alexander da Silva Machado (5)
RESUMO:
Este artigo é parte do projeto de pesquisa desenvolvido por professores e acadêmicos do Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, desenvolvido nos anos de 1998, 1999 e 2000, envolvendo atividades de pesquisa arqueológica, educação patrimonial e construção de identidade regional no município de São Martinho da Serra, estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Este trabalho divide-se em 3 partes: a localização do município e sua importância histórica, os trabalhos desenvolvidos em arqueologia e a educação patrimonial decorrente da interdisciplinaridade destas disciplinas. É importante salientar que, ao longo dos dois anos e meio no qual este trabalho foi desenvolvido, atingimos uma parcela significativa da população do município, reafirmando o papel da universidade como parceira de iniciativas que representem desenvolvimento regional e construção de uma identidade local alicerçada no patrimônio da cidade.
Antes devemos esclarecer o conceito necessário à compreensão do que entendemos por Patrimônio, dentro de uma outra perspectiva, que difere das maneiras que normalmente vem sendo empregada.
O Conceito de Patrimônio que Desenvolvemos
A primeira proposta existente de preservação é do decreto-lei n.º 25 de 30 de novembro de 1937, que visava proteger o patrimônio "como sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana". A proteção e conservação propriamente dita vai se materializar na resolução CONAMA n.º 001/86, baseada na lei francesa ("Loi relative à la protetion de la nature") de 10/07/1976, que determinou como modalidades, nos estudos de impacto ambiental, o estudo sócioeconômico, na qual se inserem as condições de vida, economia e sociedade dos ocupantes de determinado local.
No Brasil, a resolução CONAMA I, de 23/01/1986, considera que os estudos de impacto ambiental desenvolverão atividades técnicas (art.6º) nas áreas de abrangência dos projetos, (letra C) "destacando os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comunidade..", considerando ainda que, para efeitos de impactos ambientais, os elementos sócioeconômicos incluem "o patrimônio paisagístico, cultural, histórico e arquitetônico" (RIMA, 1995).
O patrimônio histórico, segundo Rodrigues, "é uma vertente particular da ação desenvolvida pelo poder público para a instituição da memória social" (1996:195), e atualmente o patrimônio tem se estendido a todos os lugares ou atividades culturais levados a cabo por grupos sociais, como terreiros de candomblé, vilas operárias e até campos de futebol de várzea (Magnani e Morgado, 1996:175).
Cabe esclarecer o que entendemos por patrimônio para, a partir destes conceitos, discutir a necessidade de uma Educação Patrimonial. Conforme Varine-Boham (Apud Lemos, 1987), o patrimônio cultural pode ser dividido em três grandes categorias, aqueles pertencentes à natureza (clima, vegetação, acidentes geográficos), aqueles pertencentes às técnicas (o saber fazer) e aqueles pertencentes aos artefatos (aquilo que é construído pelo homem com a natureza e o saber fazer), que então torna-se a própria construção do homem utilizando-se o seu entorno para adequá-lo a sua necessidade através da cultura (Lemos, 1985:9-10).
Na construção de um conceito de patrimônio, seja ele histórico, artístico, cultural ou emocional, estamos frente às situações nas quais a contextualização é fundamental para a existência do objeto, dado o perigo de se realizar 'coleções museológicas' desprovidas de qualquer sentido na preservação da memória. A iniciativa dos "ecomuseus", que mantém em seu habitat as relações sócio-culturais de uma determinada população são propostas ousadas, pouco consolidadas e, por enquanto, em fase incipiente.
Objetos comuns em seus lugares comuns em tempos passados (ou esquecidos) adquirem outro sentido quando nos possibilitam visualizar outros modos de vida, utilização do espaço e do tempo diferentes dos nossos. Podemos citar como exemplo os engenhos de farinha do litoral catarinense (Silva, 1995:417) ou as moendas de cana artesanais que remanescem no interior de nosso estado. A mecanização destas atividades extingue as formas culturais que a população criou para adequar-se a um ambiente de maneira própria ao qual denominamos cultura.
A compreensão positivista de museologia pode ter sacralizado alguns objetos, como a pena que assinou a lei áurea ou o aparelho de chá do proclamador da república. Porém, acreditamos que a noção e o uso do conceito de patrimônio se aplica a universos bem mais amplos que este.
"...o Patrimônio Cultural de uma sociedade, de uma região ou de uma nação é bastante diversificado, sofrendo permanente alterações, e nunca houve ao longo de toda a história da humanidade critérios e interesses permanentes e abrangentes voltados à preservação de artefatos do povo, selecionados sob qualquer ótica que fosse." (Lemos, 1985:21)
Se a preservação nunca existiu de fato, que se dirá da educação para sua preservação. Somente agora existem novos olhares sobre a importância da memória coletiva, transformadas em Patrimônio Histórico e Artístico, mas ainda confinadas à escala de bens materiais e sem uma perspectiva mais abrangente sobre sua Educação.
Ao mesmo tempo, a memória é geralmente preservada por aqueles que desejam manter a diferenciação quanto a sua origem ou classe social. Não é raro notar os quadros dos antepassados importantes pendurados na sala e a busca de brasões de família que legitimem a posse de arcaicos títulos ou bens.
"O patrimônio se destaca dos demais lugares de memória uma vez que o reconhecimento oficial integra os bens a este conjunto particular, aberto às disputas econômicas e simbólicas, que o tornam um campo de exercício de poder. Mais que um testemunho do passado, o patrimônio é um retrato do presente, um registro das possibilidades políticas dos diversos grupos sociais, expressas na apropriação de parte da herança cultural..."(Rodrigues, 1996:195)
A conservação do patrimônio e sua definição ainda está longe de ser esclarecida, mantendo-se o véu de ignorância quanto a diferença entre o grande e o grandioso, valorizando-se as obras e construções das classes ou ideologias dominantes, obscurecendo-se o valor das classes populares e suas construções materiais, seu conhecimento e suas manifestações.
"Assim, preservar não é só guardar uma coisa, um objeto, uma construção, um miolo histórico de uma grande cidade velha. Preservar também é gravar depoimentos, sons, músicas populares e eruditas. Preservar é manter vivos, mesmo que alterados, usos e costumes populares. É fazer, também, levantamentos, levantamentos de qualquer natureza, de sítios variados.." (Lemos, 1985:29)
Não podemos esquecer o aspecto ideológico que envolve a proteção e a conservação do patrimônio de uma sociedade. O cuidado com estes bens está mais voltado a uma exploração econômica, na qual a preservação atende a indústria do comércio e do turismo, uma vez que os bens patrimoniais (culturais, naturais, paisagísticos e arquitetônicos) correspondem a um filão pouco explorado nacionalmente, aumentando as arrecadações sob forma de impostos e ampliando as rendas locais. Sem entrar na discussão da validade deste tipo de visão, devemos observar que, sob esta ótica, não se está procurando conservar os bens sócio-culturais de uma sociedade, mas antes explorá-la em suas características exóticas, que de uma certa forma não é uma valorização e, sim, invenção. É por isso, talvez, que estes recursos são considerados "recursos culturais, termo de conotação econômica e designativo de algo que pode ser usado com proveito por quem assim o denomina." (Arruda,1996:138).
"O patrimônio não é, porém, uma representação de 'todos' (...) Hoje, embora o conceito de patrimônio tenha-se deslocado da nação para a sociedade, esta concepção permanece como um dos traços das práticas preservacionistas... e como um fator de dissimulação das diferenças sociais e culturais"(Rodrigues, 1996:195)
Neste aspecto, a formação de um Núcleo de Educação Patrimonial visou romper com estas práticas segregacionistas, buscando, tanto no resgate como na documentação dos diversos patrimônios da cidade, trazer à tona todos os grupos sociais envolvidos, valorizando e incentivando novas propostas e alternativas de resguardo e ativação da memória.
Mesmo assim é importante salientar que não há nenhum movimento que concilie todos os interesses envolvidos na preservação do patrimônio, seja este natural (como os movimentos ecológicos) ou cultural (como os tombamentos arquitetônicos), de maneira satisfatória.
1. A Localização do Município e sua importância Histórica
São Martinho da Serra(Figura 1) é um município que se emancipou de Santa Maria em 1992. Possui atualmente 4000 (quatro mil) habitantes distribuídos entre um pequeno núcleo urbano e uma extensa zona rural. Sua economia é basicamente agropecuária. Situado no topo da Serra Geral, é o limite físico entre a Depressão central e a Serra Geral no centro do estado do Rio Grande do Sul.
A história do município remonta à fundação de uma Guarda espanhola no século XVIII, localizada em um ponto estratégico - entre a Serra e o vale, um ponto de referência para as coroas ibéricas e um baluarte natural para defesa. Os diversos tratados que desenharam as fronteiras sul-brasileiras no século XVIII passavam obrigatoriamente pelo local do atual município, como o Tratado de Madri em 1750, que resultou na Guerra Guaranítica, o Tratado de El Pardo em 1761 e o Tratado de Santo Ildefonso em 1777.
É neste contexto histórico que a Guarda de São Martinho foi motivo de litígios, pois nesta área cruzavam-se os caminhos que levavam aos Sete Povos das Missões Orientais pela subida do planalto. Outro fator que contribuiu para fazer da região um ponto estratégico e de suma importância foi sua localização geográfica, pois se situava na borda do planalto em cima de um ponto íngreme, naturalmente defensável e local propício à instalação de um ponto de defesa e controle.
A Guarda foi instalada pelo governo espanhol (entre os anos de 1757 e 1763), depois que o general Gomes Freire de Andrade volta de São Miguel e traz consigo mais ou menos 700 famílias missioneiras descontentes com a administração espanhola desde a Guerra Guaranítica. A Guarda de São Martinho foi construída com intuito de barrar a fuga de índios das Missões para o lado português.
Num contexto de atritos, lutas e divergências entre portugueses e espanhóis, temos a região de São Martinho, a qual fica localizada exatamente na fronteira entre as ocupações portuguesas e espanholas, posição que se tornou oficial com o Tratado de El Pardo e posteriormente com o Tratado de Santo Ildefonso.
Quem dominasse a Guarda teria domínio sobre o caminho entre o território português e espanhol pela subida do planalto. Instalada pelos espanhóis serviria como base para os ataques a Rio Pardo, para barrar as incursões dos portugueses, e para garantir posse do principal caminho que levava as Missões pela subida da Serra. Quando os portugueses decidem pela contra ofensiva, o primeiro ponto que eles atacam é a Guarda de São Martinho, pois representava um perigo ao flanco de Rio Pardo e barrava o acesso português as Missões.
Nesse período entre a segunda metade do século XVIII ao início do século XIX, um período em que as fronteiras entre os dois impérios ainda não estão definidos, a Guarda de São Martinho teve importância fundamental, pois a partir do domínio desta Guarda, se poderia garantir o domínio da região central do atual estado do Rio Grande do Sul. É devido a todos esses fatores que São Martinho é considerado a chave das Missões Jesuíticas, por ser o melhor meio de se alcançar os Sete Povos das Missões para quem vinha da Depressão Central do Estado.
Os acontecimentos históricos importantes da região na formação de nosso estado não ficam apenas no século XVIII: adentram o século XIX, principalmente com fatos políticos que resultam na Revolução Federalista. Em 1876 São Martinho se desligou de Cruz Alta e foi elevado a categoria de município, o município de São Martinho de Cima da Serra, sendo extinto em 1901. Esta extinção está ligada diretamente a oposição que os habitantes do município fizeram ao governo da Província, o que seria comparado hoje ao governo do estado. Por causa desta oposição, teve o seu território dividido entre os municípios de Santa Maria e Vila Rica. Este processo é único no país, na qual uma cidade é rebaixada a categoria de distrito.
2 - Os Trabalhos Arqueológicos
Tendo em vista todos esses acontecimentos, a localidade passou a ser um local de pesquisas nos pontos que poderiam ter vestígios de sítios históricos do século XVIII. Foram desenvolvidas algumas escavações arqueológicas (6) realizadas pelo Laboratório de Estudo e Pesquisas Arqueológicas - LEPA da UFSM, que tem como atual coordenador o Prof. Saul Eduardo Seiguer Milder (Gomes, Cezar, Milder, 1997; Milder, Farinatti, Witter e Macedo, 1996; Machado, Milder, 1995). Na campanha de 1994 foi possível localizar as estruturas da Guarda e vestígios arqueológicos de índios guaranis missioneiros, comprovando o local que foi o provável palco das guerras travadas entre índios e ibéricos e também de uma convivência amigável dos mesmos. Também foram encontrados inúmeros vestígios de soldados que montavam guarda naquele flanco e das Guerras pelo domínio da região. Essas conclusões tiradas a partir de escavações arqueológicas servem para reforçar a importância do local para a história do Rio Grande do Sul, reafirmando a idéia de São Martinho da Serra ser a "Chave das Missões Jesuíticas". Embora tenha sido destruído pela reutilização das pedras para outros fins, as fundações do forte permanecem no local.
Além do forte de São Martinho da Serra, outros sítios de importância histórica se destacam na história da cidade. Entre eles podemos citar o cemitério de doze degolados numa emboscada da revolução federalista (1893-1895) e a Casa dos Mello (1812)(Figura 2). Esta foi residência do Capitão João Batista de Oliveira Mello, oficial da infantaria na Guerra do Paraguay, além de clube Republicano, no qual provavelmente foi fundado o Partido Republicano Riograndense (PRR), por Júlio de Castilhos (1886). Além disso, a casa ainda serviu como loja maçônica e câmara de vereadores do município.
As atividades arqueológicas evidenciaram diversas características da cultura material ligadas a história desconhecida da região. As escavações, que começaram na casa em 1998, colocaram a mostra uma contínua e complexa ocupação do local, ainda por ser analisado (7).
Os trabalhos realizados pelo LEPA não conseguiram sensibilizar a comunidade quanto a importância desse patrimônio como parte de sua história. As mostras museológicas ficaram muito além da compreensão da população, mantendo-se o véu de obscuridade sobre os trabalhos arqueológicos e sobre a importância do local para o nosso estado.
Embora imbuído de envolver a população na pesquisa e construir o conhecimento através da cultura material, a comunidade não considerou como sua a história resgatada e nem os objetos como pertencentes a seus antepassados. Desta forma, em setembro de 1998 Secretaria Municipal de Cultura solicitou a UFSM um programa de Educação Patrimonial paralela as atividades arqueológicas, propiciando, assim, um maior envolvimento da sociedade.
"Trabalhar educacionalmente com o patrimônio cultural não pode ser apenas uma tarefa de passagem de informações e discursos pré-fabricados (...) mas levar o aluno ou o aprendiz, no processo de conhecimento, a identificar os 'signos' e os significados atribuídos às coisas por uma determinada cultura, a mergulhar no universo de sentidos e correlações que elas oferecem à descoberta, a procurar entender a 'linguagem cultural' específica utilizada naquelas manifestações e, finalmente, a envolver-se afetivamente com elas, através de vivências e experimentações, de modo a ser capaz de apropriar-se desses 'signos' e 'textos' culturais, incorporando-os ao sistema de sua 'enciclopédia' mental. A Educação Patrimonial pode ser, como propõe Paulo Freire em seu método educacional, um instrumento-chave para a leitura do mundo e para a comunicação com o 'Outro'." (HORTA, 2000: 30)
3. A Educação Patrimonial
Levando em consideração o que afirma Valeska Garbinatto(2000: 43) "Para reconhecer o passado como um patrimônio, temos que nos identificar com ele.", a Educação Patrimonial foi desenvolvida em três etapas, de setembro de 1998 a julho de 2000:
3.1 A assinatura de um convênio entre a prefeitura e a universidade, viabilizando, através de apoio logístico, as atividades arqueológicas e de educação, envolvendo assim o poder executivo nas ações levadas a cabo;
3.2 O envolvimento da comunidade escolar, através dos professores do ensino fundamental e médio, determinando as prioridades e definindo formas de trabalho conjunto;
3.3 A atividade arqueológica com as crianças da 4ª e 5ª séries do Ensino Fundamental, desenvolvido com a totalidade dos alunos matriculados nas referidas séries.
3.1 - O convênio
A partir de setembro de 1998, os contatos entre a prefeitura municipal e a universidade foram ampliados, estreitando-se os trabalhos a serem desenvolvidos considerando a dificuldade de continuar as pesquisas arqueológicas sem o apoio, conhecimento e consciência da comunidade. O envolvimento do poder público era fundamental para garantir a continuidade dos projetos ao mesmo tempo que servir de elo inicial entre os professores e a população, a começar pelos setores administrativos.
Desta forma, e tendo em vista o potencial científico do município nas áreas de patrimônio natural, arqueológico, histórico, paleontológico e cultural, o estabelecimento de um convênio viabilizaria a unificação de esforços tanto dentro da universidade como pelas diversas secretarias do município. O convênio tem como objetivo ajudar na construção ou reconstrução de uma identidade e cidadania própria do município, já que eles se emanciparam em 1992, e ainda não haviam conseguido se consolidar como uma cidade no que se refere a educação, cultura e história, pois tinham a visão de Santa Maria ainda como cidade mãe.
As descobertas realizadas, tanto no âmbito histórico, arqueológico e paleontológico, ficaram restritas aos meios científicos e distantes da população local. A necessidade de um diálogo mais amplo entre o meio científico e as interpretações populares deveriam possibilitar um retorno maior para acadêmicos e comunidade.
3.2 - A comunidade Escolar
A partir da assinatura do convênio, foram realizadas várias reuniões com a administração pública para definir qual o público alvo da ação de Educação patrimonial. Considerando o alto potencial do município e seu caráter rural, a decisão recaiu sobre a comunidade escolar, professores e alunos. A escolha por professores e alunos foi devido ao caráter que atribuímos ao projeto, um trabalho que pudesse ter uma continuidade por um tempo mais longo, mesmo que sem o auxílio direto da universidade, e com um alcance de toda a comunidade. Para atingirmos toda a comunidade, decidimos por trabalhar com os alunos das escolas públicas, que levariam as noções de patrimônio aos seus pais e familiares, abrindo um canal de discussão e melhor aceitabilidade dos trabalhos desenvolvidos.
No primeiro momento, deveríamos fazer um perfil dos professores da rede escolar, estadual e municipal, a fim de obter um quadro claro sobre o envolvimento de cada docente para, depois, avaliar as necessidade de um programa de educação patrimonial entre os professores(Figura 3). A idéia norteadora foi incluir os professores no processo, como ativos e partícipes da educação, levando para a carga horária das disciplinas as noções de patrimônio, o resgate, a valorização e a proteção do mesmo.
Foram realizadas reuniões mensais com todos os professores da rede municipal e estadual que atuam no município, através da seguinte pauta, discutida com os professores e a secretaria de Educação:
A- conceitos, definições e tipos de patrimônio: cultural, natural, histórico, arqueológico e paleontológico, sob forma de palestras;
B- identidade regional e patrimônio cultural; formas de inserir esses patrimônios no currículo escolar, com reuniões e discussão com os professores;
C- atividades lúdicas e didáticas possíveis de serem desenvolvidas em sala de aula que envolvam a questão patrimonial;
D- Exposição do material arqueológico do material escavado em campanhas anteriores, com linguagem para crianças da faixa etária de 7-10 anos, durante a semana do município (Figura 4 e 5);
E- Ciclo de vídeos sobre os patrimônios locais e a forma de sua exploração em outros municípios, com vídeos sobre o município de São Martinho da Serra, arqueologia, missões jesuíticas, etc.
F- Elaboração de um Guia sobre Educação Patrimonial e de um caderno didático trazendo a História do município, por solicitação dos professores.
Estas atividades foram desenvolvidas entre outubro de 1998 e dezembro de 1999, com reuniões que variavam entre mensais e quinzenais, conforme a disponibilidade dos professores. Foram preparados mais de quarenta professores de séries iniciais e ensino médio, abrangendo praticamente toda rede escolar do município.
Nestas reuniões, além dos temas propostos, ainda foram discutidas as formas de ensino e avaliação, as dinâmicas de sala de aula e a educação patrimonial como mediadora de diversas atividades escolares. A experiência da educação patrimonial foi encarada como uma alternativa as aulas tradicionais e pouco atraentes aos alunos, levando em conta esses fatores podemos afirmar que o interesse dos alunos superou nossas expectativas e também a dos professores, evidenciando que os problemas em sala de aula, na sua maioria, estão relacionados com a metodologia empregada pelo professor. Quando realiza-se um trabalho, onde os alunos se sintam partícipes de todas as atividades, com certeza a dinâmica da aula é outra, aumentando a capacidade de construção de conhecimento, de atenção e de assimilação dos conteúdos trabalhados.
Em nossas atividades salientamos a importância da utilização dos patrimônios locais no processo de aprendizagem, contrapondo a visão que o livro didático nos passa, desvinculado das realidades regionais e locais dos alunos.
Levando-se em consideração que a utilização do livro didático na maioria das escolas brasileiras tem sido uma constante, método este generalizante e massificante, pois não prioriza as especificidades de cada região e não busca uma reflexão da realidade, tornando o ensino da história uma forma de alienação. Estes livros são distribuídos gratuitamente pelo Governo Federal, por isso o seu uso freqüente pela maioria de educadores, que mesmo inconscientemente estão tornando a aprendizagem de seus educandos deficiente. A escola, da maneira que vem se portando, está servindo de acordo com os interesses da classe dominante, no momento em que esquece as especificidades de uma determinada região e que não questiona as informações dos livros didáticos que usa.
"A escola é um instrumento pelo qual se transmite a ideologia da classe dominante, que se procura introjetar principalmente nos trabalhadores livres. O livro didático é uma forma usada para que os padrões de comportamento e o modo de pensar de uma classe seja transmitido para a outra"(CORBELINI, 1983, In: LEWIS, 1992)
3.3 - A Experiência Arqueológica com as Crianças
O contato com as crianças foi iniciado logo após o início das reuniões com os professores, através do envolvimento na exposição durante a semana do município, realizada em março de 1999. A partir daí os alunos foram solicitados a participar através do conhecimento dos artefatos expostos, sua utilização e finalidade, uma vez que os materiais da Casa dos Mello referiam-se ao final do século XIX.
Posteriormente, na mesma semana do município foi disponibilizada uma palestra sobre os patrimônios existentes no município e o conhecimento da população a respeito deles. Proporcionamos, a partir da visão estereotipada de patrimônio, a construção coletiva de um novo conceito que abrangesse o caso específico desta cidade.
Em junho do ano 2000 iniciaram-se os preparativos para a escavação da Casa dos Mello por parte das crianças. Considerando que os fundos da casa serviu de lixeira por mais de século, sabíamos que este espaço apresentava a maior concentração de cultura material disponível. Ao mesmo tempo, o último morador da casa utilizava o local como horta, revirando assim os diversos lixos desde a fundação da casa. Desta forma, uma escavação sistemática por níveis naturais ou uma decapagem em grande área não seria necessário ou útil, pois as camadas arqueológicas vem sendo reviradas e a ausência de estruturas permitiam um resgate dos artefatos, sem contexto espacial ou estratigráfico.
Assim, a atividade das crianças foram desenvolvidas em áreas quadriculadas que permitissem a atividade conjunta de dez crianças, sob supervisão e auxílio de professores e acadêmicos do Laboratório de Arqueologia da universidade(Figura 6, 7 e 8).
Inicialmente, uma breve palestra de vinte minutos era proposta para as crianças(Figura 9), sob forma de diálogo, sobre a atividade que seria realizada, quais seus objetivos e a importância deste material. Foi utilizado retroprojetor, mostrando imagens e artefatos referentes ao município, visando tornar as explicações mais próximas dos educandos e já os preparando para o que encontrariam no local de escavação. Através do questionamento das crianças e a interação sobre o tema, as técnicas e o material oportunizavam interesse e curiosidade sobre a escavação.
A palestra inicia com as seguintes perguntas, a serem respondidas pelos alunos:
* Por que vocês acham que estão aqui? (a resposta invariavelmente recaía sobre a escavação, pois os professores já haviam mencionado quais os trabalhos que ocorreriam, o que viabilizava outra questão);
* O que vocês acham que nós vamos escavar? (o leque de respostas ampliava, mas mesmo assim poderia-se retirar elementos para realizar ganchos com o passado);
* Por que é importante estudar e buscar compreender o passado? ( neste sentido, tentávamos resgatar a importância da memória e das questões de tradição familiar);
Assim, uma série de questões que serviam inicialmente para envolver os alunos, ao mesmo tempo fornecia subsídios para a escavação que ocorria posteriormente. No local de escavação, eram colocados para os alunos as técnicas de escavação, os materiais passíveis de serem encontrados e que eles ficassem à vontade para a realização de perguntas, o que viabilizaria a construção do conhecimento a partir das analogias com os objetos contemporâneos. A área escavada era composta de quadrículas e trincheiras(Figura 10) de dimensões variadas, perfazendo um total de 18 (dezoito) metros quadrados.
Desta forma, ao invés de apresentar o conhecimento de forma pronta e acabada, buscamos construir os conceitos básicos em arqueologia e educação patrimonial, como 'artefato', 'patrimônio', uso e função', entre diversos outros. A escavação, que ocorria na parte da tarde, durava em média três horas e meia, divididos por uma pequeno lanche oferecido pela prefeitura, que também encarregava-se oferecer almoço aos alunos.
O almoço e o intervalo eram necessários por que as escavações ocorriam em turno inverso ao das aulas, e mesmo não sendo uma atividade obrigatória, não houve evasão por parte dos alunos. Durante a atividade os alunos eram questionados sobre o que estavam encontrando, para que servia, se ele conhecia, etc., a fim de relacionar a cultura material pretérita com as possíveis interpretações arqueológicas. Por exemplo, as louças encontradas eram relacionadas as questões de uso-função (pratos, xícaras, sopeiras e molheiras), status econômico (louça inglesa, chinesa ou nacional), reciclagem (vidros de remédio, perfume, drogas e venenos) entre outras possibilidades a partir dos artefatos.
À medida que a escavação avançava, diversos artefatos eram descobertos, sendo os mais comuns os ossos (bovino e ovino), vidros (garrafas, frascos de remédio, perfume, veneno), louças (cobertas de mesa, conjuntos de chá) e metais (trincos, argolas, pedaços de arame) que suscitavam a curiosidade e oportunizava o diálogo que induzia a descoberta. Desta forma podíamos, brevemente, indicar que desde que a casa fora construída foram consumidos gado vacum e ovino, quais as peças que utilizavam, que remédios tomavam, reconstruindo brevemente parte do cotidiano.
No final do trabalho de escavação, um pequeno questionário era repassado às crianças para preencherem em casa, com os aspectos mais marcantes da atividade desenvolvida, bem como os aspectos que gostou ou não gostou. Embora fosse uma atividade extra-curricular e que seria coletada na semana seguinte pelos professores, houve a participação de quase a totalidade das crianças envolvidas. Envolvidas na atividade de descoberta sobre um sítio arqueológico verdadeiro, ao contrário de simulações, o espírito da descoberta era alimentado por acadêmicos e estudantes, construindo juntos as interpretações sobre a área e o material escavado, pois inclusive os acadêmicos e os arqueólogos se surpreendiam com os artefatos descobertos, fornecendo um maior estímulo aos alunos.
No final dos trabalhos, o material escavado foi recolhido ao LEPA e prossegue em etapas de análise. A etapa seguinte, de lavagem e numeração do material, foi inviabilizado por falta de espaço físico no laboratório.
Como avaliação da atividade os educandos responderam a um questionário, isto após uma avaliação oral. A mostra dos materiais escavados pelas crianças seguirá uma mostra itinerante pelas escolas do município, com a produção de textos, reconstrução de época e re-interpretações por parte das crianças, compondo assim um museu itinerante construído em todas as etapas pelas crianças e professores da rede de ensino do município.
São poucos os municípios que contam com museus construídos quase que exclusivamente por moradores, algo que está sendo realizado em na cidade de São Martinho da Serra- RS, fazendo com isso que a população se sinta mais partícipe dos acontecimentos regionais, criando um "espírito" de coletivo, de cidadania.
O que de certa maneira alcançamos com estes trabalhos foi a construção de uma identidade local e de uma cidadania dos martinhenses, e para isso partimos da educação patrimonial, com auxílio da arqueologia histórica.
Bibliografia:
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ATAÍDES, Jézus Marco; MACHADO, Laís Aparecida; SOUZA, Marcos André Torres. Cuidando do Patrimônio Cultural. Goiânia, Ed. UCG, 1997.
ITAQUI, José. Educação Patrimonial. A Experiência da 4ª Colônia. José Itaqui e María Angélica Villagrán. Santa Maria, Pallotti, 1998.
JAPIASSU, Hilton. A questão da Interdisciplinaridaade. Paixão de Aprender, Porto Alegre, Secretaria Municipal da Educação, 1994, pg. 48-54.
LEMOS, Carlos. O Que é Patrimônio Histórico. São Paulo, Brasiliense, 5ª Edição, 1987.
PILLES, Peter. Participação Popular e o Projeto Elden Pueblo. Floresta Nacional de Coconino, Arizona. In. Workshop de Métodos Arqueológicos e Gerenciamento de Bens Culturais (2; 1993;Florianópolis). 2ª Ed. Rio de Janeiro, IPHAN, Depto. de Promoção, 1994.
RIMA. Relatório de Impacto Ambiental: Legislação, elaboração e resultados. Organizado por Roberto VERDUM e Rosa Maria MEDEIROS. 3ª Ed. Ampliada. Porto Alegre, Ed. Universidade /UFRGS, 1995.
SILVA, Osvaldo Paulino. O Levantamento Arqueológico de Sítios de Engenhos da Parte Sul da Ilha de Santa Catarina. Anais da VIII Reunião Científica da SAB. Org. Arno Kern, Porto Alegre, EdiPUCRS, 1996, vol. 2. Pgs.417-431.
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HORTA, Mª de Lourdes P. Fundamentos da educação patrimonial. In.: Revista da FAPA, nº 27, (jan/jun.2000), pp. 25-35.
GARBINATTO, Valeska. Ensino de história e patrimônio histórico: pontes para a construção da memória e cidadania. In.: Revista da FAPA, nº 27, (jan/jun. 2000), pp.37-47.
ANEXOS:
Figura 1: Casa dos Mello, Fundada em 1812, local de nossas escavações com os alunos
Figura 2: Foto da Zona Urbana de São Martinho da Serra em 2000
Figura 3: Materiais encontrados em outras escavações, utilizados para
a exposição.
Figura 4: reconstrução das sociedades a partir dos artefatos. Exposição
para o ensino fundamental.
Figura 5: Reuniões pedagógicas com o grupo de professores para a implementação
do projeto nas escolas.
Figura 6: Escavação arqueológica com os estudantes do município de São
Martinho da Serra, junho de 2000. Explicação sobre os materiais escavados.
Figura 7: Escavação arqueológica com os estudantes do município de São
Martinho da Serra, junho de 2000. Exercício de decapagem.
Figura 8: Escavação arqueológica com os estudantes do município de São
Martinho da Serra, junho de 2000. Interação entre acadêmicos do LEPA e
os alunos.
Figura 9: : Escavação arqueológica com os estudantes do município de São
Martinho da Serra, junho de 2000. Interação entre acadêmicos do LEPA e
os alunos.
Figura 10: Palestra inicial com noções sobre arqueologia e escavação,
através de uma linguagem acessível aos alunos.
NOTAS
1 Universidade Federal de Santa Maria, Centro de Educação, Departamento de Metodologia de Ensino. E-mail: alsoares@ce.ufsm.br.
2 Universidade Federal de Santa Maria, Centro de Ciências Sociais e Humanas, Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas - LEPA. E-mail: milder@ccsh.ufsm.br.
3 Universidade do Vale do Taquari - UNIVATES, Departamento de História
4 Universidade Federal de Santa Maria, Centro de Ciências Sociais e Humanas, acadêmica do Curso de História do 7º semestre, bolsista do Fundo de Incentivo a Pesquisa - FIPE-UFSM.
5 Universidade Federal de Santa Maria, Centro de Ciências Sociais e Humanas, acadêmica do Curso de História do 7º semestre, bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul - FAPERGS.
6 As primeiras pesquisas arqueológicas na região de São Martinho da Serra são de autoria de José Proenza Brochado (1969), Romeu Beltrão (1979) e Vitor Hugo da Silva (1984).
7 A escavação da Casa do Mello é tema de uma tese de doutoramento, por Neli Gallarce Machado na Universidade de São Paulo (USP), em andamento.
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